António Mesquita
Escrevo sobre um filme que vi recentemente e a ópera que inspirou o conto de José Cardoso Pires que, por sua vez, esteve na origem do filme de Mário Barroso.
"Lavagante" é a história duma abdicação por amor. Durante a ditadura, Cecília (Júlia Palha) conhece um médico de esquerda - o polícia diz que "não é comunista, mas ajuda" -, Daniel (Francisco Froes), e enamora-se a ponto de sacrificar a sua reputação, para o libertar quando é preso pela PIDE. Quem o prende, Salaviza (Diogo Infante), é de há muito tempo um velho amigo da família de Cecília e tem-lhe uma paixão pouco secreta. Adivinha-se a que espécie de sacrifício pucciniano Cecília está disposta em favor do seu amante.
Daniel viu, primeiro, uma traição no jogo de Cecília, mas a política não tem aqui qualquer papel. Por fim, rendido à ideia do sacrifício por amor, não deixa de se sentir inconformado e céptico quanto àquela espécie de amor.
Num dos últimos planos do filme, vê-se a cabeça desta Floria Tosca, com o cabelo solto ao vento, num rochedo que faz de parapeito do Castelo de Sant'Angelo, a sugerir o suicídio. O desfecho não podia ser mais supérfluo. Está ali só para ligar a história à ópera.
A sua simplicidade é, contudo, enganadora, porque tudo se passa como se Cecília, ao contrário da heroína de Puccini, sempre movida pelo ciúme, não precisasse para nada dum amante real e lhe bastasse a ideia duma imolação narcísica. Isto sim, é que não é lógico, nem razoável, mas está dentro dos cânones do romântico.
A "Tosca" não é bem isto. Nem a música que nos empolga, em árias como "Recondita armonia", "Vissi d'arte, vissi d'amore" ou "E lucevan le stelle" nos transmite qualquer sentimento de ambiguidade. Os excessos "lacrimejantes" que alguns críticos vêem nesses dramas líricos, não são afinal mais que a assinatura dum tempo que só tem este modo de voltar. Como diz Nietzsche: "A música, justamente, não é uma linguagem universal, intemporal, como já se disse tão frequentemente em sua glória; ao contrário, ela corresponde exatamente a uma certa medida do tempo, um certo grau de calor e de sentimento, que uma cultura bem distinta e determinada, definida no tempo e no espaço, reconhece por lei interior; a música de Palestrina teria sido perfeitamente inacessível a um grego, e, em sentido inverso, o que Palestrina escutaria na música de Rossini?"
Palestrina não está aqui por acaso."O Concílio de Trento, sabe-se, prescrevia aos compositores que fizessem corresponder a cada sílaba uma nota, a fim de que os rextos sagrados fossem inteligíveis, e Palestrina reformou a música do seu tempo aplicando este método" (André Tubeuf). O que se adequa aqui ao argumento (era preciso que fosse cantado) não é, evidentemente, a música mas o enredo. Mas apraz-nos pensar que o cinema poderia encontrar aquela espécie de correspondência de que se serviu Palestrina. Não entre as imagens e as palavras (o que é comum), mas entre as imagens físicas e as mentais.
"Lavagante", o filme, só podia ter sido feito neste tempo de revisitações alucinadas. Daniel não é Caravadossi. Não esconde um amigo, nem é fuzilado como ele. E Cecília não mata, nem tem a virgindade feroz de Floria Tosca. Também Cecília é dum individualismo moderno com outras ilusões que não as do século XIX.
1 comentário:
Tenho tido curiosidade de ver como o tema é tratado em "Lavagante"Depois de ler a tua apreciação , geraram-se-me dúvidas. Se me decidir ir espreitar e tiver oportunidade de o fazer, dir-te-ei se a minha visão será semelhante *a tua, Mas, confesso, o entusiasmo esfriou, mas a curiosidade teimosa permanece. Hoje estou no dia de dirigir cumprimentos, que não tenho dado, aos teus escritos, sempre de grande qualidade, mas cuja escolha dos temas gostaria que viessem mais directamente ao espírito dos comuns mortais, como eu. Mas continuas a ser um grande e bom pensador. Obrigada a ti, pela tua coerência.
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