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01/12/17

CONCERTO DE NATAL

Manuel Joaquim

Órgão de Tubos da Igreja da Lapa, no Porto, comemora 20 anos


A situação internacional continua muito tensa, a miséria, a fome, a doença, vai-se alastrando, povos inteiros são escorraçados das suas terras, quase sempre cobiçadas pelas suas riquezas, mas, o mês de Dezembro, que agora começa, para quase todas as pessoas, é um período de harmonia, de paz, de fraternidade. É o mês do Natal, que é festejado em muitos lugares com concertos musicais, realizados por coros e orquestras. 

A cidade do Porto tem o privilégio de registar a realização de muitos concertos durante todo o ano mas, na quadra natalícia, a Igreja da Lapa realiza concertos de classe mundial, não só pelos programas mas também pelos músicos e cantores, quase sempre jovens portugueses.  

No próximo dia 14 vai realizar-se o Concerto de Natal, pelas 21H30, com um programa de alto nível, com musica de Handel; Bach; Mendelssohn-Bartholdy; Canção Tradicional de Natal e Adeste fideles, este atribuído a D. João IV, ambas com arranjos de David Willcocks. É uma oportunidade para ouvir Sara Braga Simões, Ângela Alves, Ana Calheiros, André Lacerda, Job Tomé, o Coro da Escola Superior de Educação, o Coro Polifónico da Lapa, Orquestra Sine Nomine, com a direcção geral de Filipe Veríssimo. É uma oportunidade para ouvir o Grande Órgão de Tubos da Igreja da Lapa, que já fez 22 anos, pesa 32 toneladas, tem 15 metros de altura, 10,5 metros de largura e cinco metros de profundidade, e tem uma história interessante, desde o nascimento da ideia de o obter até à sua inauguração, que foi um grande acontecimento na cidade.

O livrinho que conta a sua história, na abertura, tem a seguinte frase:

“O HOMEM TEM NECESSIDADE DA CULTURA E DA ARTE, COMO DE PÃO PARA A BOCA”




COREIA DO NORTE

Mário Faria







Fazia um périplo sobre a minha biblioteca pessoal, na busca de um tema para o Periscópio porque, por estas bandas, a seca de ideias é severa e grave. Foi de cócoras a folhear dezenas de documentos, que tomei conhecimento que “Trump reagiu ao novo míssil da Coreia dizendo que os EUA vão tomar conta do assunto. Kim Jong Un declarou por terminado o seu programa nuclear, garantindo que o míssil balístico disparado (o primeiro lançado desde Setembro) tem capacidade para atingir Washington”.

Divagava sob a Coreia e as ameaças nucleares que pairam no ar, quando me caiu no bornal um artigo do Público de 2003, com o título “Empresa de Rumsfeld vende reactor à Coreia do Norte”. Li, achei curioso e pronto a servir de tema para o mês de Dezembro. No meu entendimento, a preguiça valeu a pena e o que se segue faz parte do que foi noticiado naquele diário.

Donald Rumsfeld, secretário norte-americano da Defesa, era um dos directores de uma empresa que, há três anos, vendeu dois reactores nucleares de água leve à Coreia do Norte, noticiou o The GuardianO contrato foi assinado no âmbito de um acordo entre Washington e Pyongyang, numa altura em que o então presidente Bill Clinton defendia uma política de aproximação ao regime. Agora, pelo contrário, o governo americano não só inclui a Coreia num eixo do mal, como tem vindo a colocar a hipótese de mudar a liderança do país, invocando o desenvolvimento de armas de destruição maciça.

Entre 1990 e 2001, Rumsfeld fazia parte da direcção da ABB, com base em Zurique, quando este gigante da engenharia conseguiu ganhar um contrato de 200 milhões de dólares para conceber os dois reactores nucleares. O seu salário era então de 190 mil dólares anuais. Deixou o cargo para se juntar à actual Administração do Presidente George W Bush. 
O negócio dos reactores fazia parte de uma política de aproximação entre os dois países: os EUA comprometiam-se a construir os reactores de água leve e as autoridades coreanas suspendiam os seus reactores de água pesada, capazes de produzir plutónio enriquecido, com aplicações militares.

Rumsfeld, questionado sob o tema, afirmou que não se lembra de o negócio ter sido abordado pela direcção em nenhuma altura. Ao invés, membros da actual administração de Bush consideram que os interesses pessoais tiveram precedência sobre a política de não proliferação de armamento nuclear.

Já membro do Governo americano, Rumsfeld afirmou que o regime coreano é um regime terrorista à beira do colapso. E depois das ameaças de Pyongyang de que poderia reactivar o seu programa nuclear a qualquer momento, o chefe da defesa avisou que os EUA são capazes de combater duas guerras ao mesmo tempo: contra o Iraque e contra a Coreia do Norte.

14 anos depois, como estamos? Para além da mudança de actores que torna a situação ainda mais instável, e que teve como efeito, para já, a militarização do Japão, o que muito incomodará a China, o que perspectiva que este jogo de guerra ainda fica mais complicado. Porém, o perigo maior vem dos EUA: é de temer que a perda da sua influência no xadrez mundial a favor da China, possa empurrar Trump para uma deriva militar de consequências imprevisíveis. O mundo está perigoso. Como sempre.





NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

(Baalbek)


Os dias apareciam idênticos no desenrolar dessa rotina que automatiza os gestos e encolhe o pensamento. O sol surgia tardio nessa fadiga que somava nas longas noites outonais e iluminava o espaço terreno nesse vagar de quem não tem pressa. Havia um ruído de muitas vozes, conversas trocadas, frases soltas, palavras que pouco diziam. Quase não se notou quando apareceste, uma presença que se deslocava rápida e sem ruído. Sentia-se a frescura do novo na tua passagem, silenciosa e invisível. A tua mão descia acompanhando a curvatura do corpo e deixava a chávena sobre a mesa. O gesto repetia-se a cada jornada. Um dia com a mão a descer veio também o teu olhar em viagem, breve é certo, mas suficiente para perceber uns olhos abertos plenos de curiosidade. E acrescentaste o olhar aos gestos diários. Ao teu corpo de linhas certas juntaste uns olhos irrequietos. Um momento curto, um breve instante, mas ficava um delírio de cores inundando a planície onde nascem os sonhos. Como a vida não é perfeita, um dia quebrou-se, o espelho mágico que reflectia o sol, o encanto que nascia à tua passagem. Não estavas mais, deixaste de estar, e os dias passaram. E este crepúsculo também não vieste, nesse entardecer em que as cores fantasiam a perfeição no horizonte universal. Digo-o porque não sei onde caminhas e vou escrevendo o futuro no presente porque há muitos crepúsculos que não voltas. Deixaste de caminhar para o sol e não procuras nas ondas do mar o afago de outrora. Está fria esta casa onde se abriga o meu pensamento. Está fria porque já não tem crepúsculos, o anoitecer tornou-se um momento sombrio e a multidão de cores que visitava o mar, encolheu-se na memória do tempo. Fecho a porta da minha alma para te esquecer e tanto necessitava dos teus braços para me proteger dos fantasmas nocturnos. Mas a porta não encerra. Procuro o obstáculo que a retém e encontro o teu sorriso, aquele sorriso aberto no esplendor dos dias onde ficaram os meus olhos perdidos em tantos infinitos, promessas de viagens incumpridas. Desisto e procuro refúgio no pequeno canto do quarto onde me procuravas com o ruído de uma festa. Sou agora apenas um náufrago e tu um veleiro flamejante. Uma ténue lembrança passeia-se por aí, esvoaça na minha memória, mas não levanta voo. Gostava tanto de voar contigo, mas não nasci com asas, era com as tuas que me perdia entre estrelas e planetas. Eras a minha Via Láctea. A minha casa continua fria neste Outono. Procuro encerrar a memória, soltar as amarras, voltar a sonhar. Quero regressar às quimeras, às miragens de um amor sem destino que me visite aos crepúsculos, mas deixaste tão fria esta casa! Não consigo deixar de seguir a tua viagem. Vou como se fosse descobrindo o mundo viajando clandestino nos teus olhos. Sinto a tua fadiga ao deixares Beirute. Não, a cidade ainda não tinha a divisão religiosa do presente, o colonialismo não marcara com o ferro em brasa a separação humana em nome dos deuses. É natural o cansaço, após tantos dias percorrendo o deserto, as montanhas rudes e escarpadas como dizes. A travessia do Monte Líbano com a sua aspereza, as suas neves invernais e o sol escaldante de verões que tingem o Mediterrâneo de um azul puríssimo, o vale de Baalbeck onde estacionou o exército sírio muitos anos depois da partida dos otomanos e dos colonizadores franceses. Aqui e ali, uma sombra de verde, crescem os cedros, os ciprestes e os juníperos. Por vezes, nessas manchas que se misturam com a terra amarela e sedenta corre um fio de água, mas o que ficou dessa beleza após a passagem dos caças dos judeus despejando labaredas de ódio e de vinganças? É na estrada de Alepo que o cansaço, não o desânimo, mas esse momento de abandono do corpo e da mente que nos deixa leves no correr do tempo, que te surge esse momento extraordinário de reflexão, de imobilização da memória para revisitando o passado o projectasses no futuro. A cidade milenar que conheceste já não existe. Alepo sucumbiu à miséria humana, à miserável presença dos que utilizam o nome de Deus para orgias de sangue e terror. Deixaram a sombra do medo a sobrevoar a terra dos alauitas. A cidade está exangue, tenta recuperar da tragédia, do sufoco do que viveu, mas não sente forças para tão épico esforço. Talvez tenha sobrevivido a cidadela, não me lembro, pois perante o horror até os meus olhos se encerraram tanto que deixei de ver. É nesse estertor da grande cidade síria que me detenho nas tuas palavras reflexivas. Não podias saber que ao visitares o futuro com o conhecimento do caminho percorrido, estavas a projectar o meu presente. “Na vida corrente, que com frequência se repete durante anos e ganha em estabilidade, tudo parece decerto mais sólido e mais duradouro; a consciência do ‘episódico’ perde-se; é mais fácil acreditar que cada dia contribui para se construir um futuro e esquece-se que esse futuro inelutavelmente terá fim um dia ou uma noite. Mas quem sabe o que, então, nesse momento, contará ainda? É o estado do mundo que nos proporciona uma consciência assim dos perigos, dos acasos e das restrições que intervêm no curso de uma vida breve. Sabemos que o mundo está na véspera de alterações inevitáveis e profundas, mas ignoramos como enfrentá-las. Por isso, experimentamos reconhecimento por cada episódio atravessado sem emboscadas e numa paz relativa.” Que palavras sábias, as tuas.

(“Inverno no Próximo Oriente, Annemarie Schwarzenbach, Relógio de Água, Março de 2017)

Ouço-te com aquele desplante que te conheço, a palrar para a televisão. Foram-te buscar para dizeres de tua justiça, e tu disseste, sim eu fiz a lei mas era para ser usada com bom-senso. Antes de prosseguir, tenho de confessar que nunca gostei de ti. Não sei bem porquê, não gosto e, pronto. Talvez pela tua cara de fuinha, não que a minha seja melhor, mas a dos outros arrepia-nos sempre mais, ou será por aqueles vidrinhos que desenham circunferências concêntricas que parecem rodar eternamente e lá no fundo, bem no meio, aparecem uns olhinhos de rato. Ou quiçá, seja porque o teu partido nunca conseguiu distinguir cultura de agricultura, ou tudo junto, sei lá. Por todas essas razões foi a ti que foram buscar quando foi necessário fazer da cultura um pequeno excremento do orçamento. E que bem desempenhaste o papel que te coube. Foi como uma missão ao reino da estupidez. Quando te pediram dinheiro, então concebeste aquela lei em que cada um podia procurá-lo, ao dinheiro, através de muitas iniciativas, comezainas, casamentos, enterros, festivais da canção, uma espécie de vale tudo desde que faça dinheiro. Mas cobardezinho como os teu olhinhos dizem que és, deixaste aquela porta traseira aberta para poderes fugir, o tal bom-senso no uso. Foi aí que entrou a isabelinha e como para ela o tal bom-sendo é um cacilheiro a atravessar o Tejo, lá fez o seu dinheirito numa grande comezaina, os mortos não estavam presentes, disse a isabelinha. Pela hora, deviam já estar deitados. É assim o teu país jorginho. Só me resta a esperança que durante algum tempo te dediques a outros afazeres, para que os mortos não tenham de te ouvir.   
  
  

MUDAR DE CORPO

Mário Martins




Iremos controlar a vida? Penso que sim. Todos sabemos como somos imperfeitos. Por que razão não nos tornaremos um pouco mais capazes de sobreviver? É o que faremos.”

James Watson

Co-autor do modelo de dupla hélice para o DNA

Não quero viver para sempre através das minhas obras. Quero viver para sempre não morrendo!”  
Woody Allen
Cineasta


A notícia apanhou-me desprevenido: 50 anos depois do primeiro transplante de coração, está agendado para este mês o primeiro transplante de cabeça. De quê!? Depois da operação, quem é quem? Na Internet mais de dois anos que se fala nisso: um neurocirurgião italiano, liderando uma equipa de 150 assistentes, propõe-se fazê-lo, talvez na China, a um candidato russo de 32 anos, com uma doença rara de progressiva atrofia muscular que já só lhe permite mover as mãos, a um custo proibitivo de 31 milhões de dólares!

Em rigor, não se tratará de um transplante de cabeça mas sim de um corpo. O procedimento será cortar a cabeça do candidato vivo e instalá-la no corpo, igualmente guilhotinado, do dador recém-morto. O leitor poderá consultar os detalhes técnicos na Internet.

Admitindo que, agora ou no futuro, esta operação venha a correr bem, o receptor vivo usará, sentirá, tocará, como seu, o corpo estranho de um cadáver. E o dador morto, terá gozado em vida a sensação de o seu corpo continuar, de algum modo, a existir depois de morto, agora subordinado a outro eu… 

Se este é um projecto aparentemente louco, o que dizer da visão do austríaco Hans Moravec, perito em robótica e inteligência artificial, que imagina (num futuro distante, quando formos capazes de manipular individualmente os neurónios) uma fusão biónica entre seres humanos e máquinas? O cérebro poderá ir sendo substituído, peça a peça, por uma massa mecânica de neurónios electrónicos. Depois de completo, o cérebro robô possuirá todas as recordações e padrões intelectuais da pessoa original, mas estará alojado num corpo mecânico de silício e aço, capaz de viver para sempre…*

Na sua obra inquietante mas profética, escrita em 1932, “Admirável Mundo Novo”, o escritor inglês Aldous Huxley descreve ficcionalmente uma época em que os líderes mundiais decidem estabelecer uma Utopia baseada na felicidade e na estabilidade, em vez de em conceitos que se revelaram instáveis e confusos por natureza, como democracia, liberdade e justiça. Ser infeliz é infringir a lei e a chave para este paraíso tornado obrigatório pelo Estado é a biotecnologia. As crianças são produzidas em massa em enormes fábricas de embriões e clonadas de modo a produzir um sistema de castas de seres humanos. A felicidade é assegurada por lavagens ao cérebro incessantes, por entorpecedores e pelo acesso ilimitado a drogas e sexo estupidificantes. Na década de 50, Huxley escreveu: “Situei o romance 600 anos depois do nosso tempo. Hoje em dia, parece bastante possível que o horror caia sobre nós num espaço de cem anos*

*In Visões, de Michio Kaku.

O PODER INDESEJÁVEL

António Mesquita


Tibério (42 a.C a 37 d.C)


“Desde o começo do principado, o Senado renunciou energicamente a governar; em vão Tibério pretendia consultá-lo sobre todas as coisas e até sobre o exército e a guerra, que eram prerrogativa sua: o Senado não acreditava nisso e tinha razão, porque Tibério, não menos dividido que ele, ‘detestava a lisonja, mas não receava menos o franco-falar’. Estas contradições reduziram o príncipe à neurastenia e o seu reino terminou num banho de sangue; houve conflito entre o Senado e o príncipe, não porque o Senado quisesse a sua parte do poder, mas porque não a queria.”

“Le pain et le Cirque”   (Paul Veyne)


Se renunciava a governar, o Senado esperava pelo menos que não lhe faltassem as honras devidas e que, entre o povo e os senadores, César  preferisse sempre a “sua família”.

Tibério, que sucedeu a Augusto, um verdadeiro “príncipe perfeito”, tinha tal como seu predecessor  veleidades republicanas, as quais não podiam ser levadas a sério pelos mais interessados. É ainda a história do “com o teu amo não jogues as peras”. Aos senadores bastava que o príncipe “tivesse tacto suficiente para não lhes fazer a duvidosa e temível honra de lhes pedir a sua opinião, e que fosse suficientemente bom príncipe para esperar as suas aclamações sem as exigir: elas não tardarão nunca.” (ibidem)

O Senado parecia assim um órgão supérfluo, um monumento vivo a lembrar os tempos idos das liberdades cívicas. Registavam as decisões do príncipe e punham o seu selo. Como as agências de rating conferiam o seu AAA aos gigantes falidos… É que o dinheiro também impõe a sua tirania.

02/11/17

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Quando as imagens nos alcançam deixam-nos naquela estupefacção de não conseguirmos compreender o que os nossos olhos vêem. Num primeiro instante, pareciam desenhos animados, uma cena de ásterix, de bonecos ou desenhos atirados ao ar, personagens puxadas pelos cabelos e vergastadas por todo o lado. Só quando a luz incide com mais clareza compreendemos que havias aberto o teu canil privativo e soltado os teus perritos sem açaime, com o grito «vamos a eles». A violência gratuita foi sempre o símbolo dos covardes, daqueles que utilizam o autoritarismo do poder para desencadear a imposição das suas ideias, das suas verdades, dos seus ódios, das suas desigualdades. No fim do dia lá apareceste tu, marianito, a falar de democracia com aquela cara de imbecil a que nos habituaste. Falavas de democracia e a memória trazia-me as palavras poéticas de violeta parra, “miren como nos hablan de libertad/ cuando de ella nos privan en realidad”. E na tua infinita estupidez falavas do teu país azul, de que são todos azuis, daqueles que só queriam perturbar a convivência entre todos os azuis, que essa nação azul nunca se vai fragmentar, injuriavas o nacionalismo dos azuis-escuros, enquanto exaltavas o nacionalismo dos azuis-claros, dizias que o país azul é uma nação onde vivem todos os azuis e eu sentia como a tua parvoíce ia aumentando na mesma dimensão da tua ignorância. Marianito, porventura, sabes o que é uma nação? Sabes que o teu país azul pode ser um Estado, um país, mas não é uma nação? Não sabes, nem necessitas de o saber, afinal o teu Partido Podre não precisa de explicar nada, as suas acções são demasiado esclarecedoras. A ordem e a constituição, bolçavas tu, marianito, como algo intangível e sagrado. Compreendo. O teu Partido Podre foi uma invenção do fraguita, onde se puderam acolher todos os criminosos, assassinos e torturadores que tiveram uma vida farta, à sombra do excremento ferrolano. Foi assim, com pactos de silêncio, é «melhor esquecer o passado, pois mexer-lhe é como abrir uma ferida que não mais vai curar», que cobriram, taparam com um manto vergonhoso os seus crimes, que ao longo de 40 anos, o regime violento e torturador que o vermezito sedicioso implantou sobre um milhão de mortos, passeados, fuzilados, torturados e explorados. É esse o teu país azul, marianito, que herdaste e prolongas, com as tuas audiências nacionais, essa tua justiça, a tua moderna inquisição, enquanto vais tirando do armário os esqueletos que a ditadura acumulou e foi guardando. Afinal, o teu país azul arrasta às costas um dos maiores genocídios da história. Resolves a política com a justiça, a mesma que mandou fuzilar e condenar o que produzia a tortura carcerária. Não, nada está esquecido e a prová-lo vem aquele senhor casado do teu Partido Podre dizer que se necessário voltam a fuzilar os azuis rebeldes. É este o teu país onde queres que sejam todos azuis, tu depois te encarregarás de separar os azuis-claros dos azuis mais escuros. Tu, marianito, falas da constituição, mas qual? A que vós derrubastes num golpe violento e criminoso, até hoje impune, ou a que, há 40 anos, cobriu com o tal manto de silêncio, os crimes amontoados? E falas de democracia num regime monárquico constitucional? Os teus azuis, são súbditos ou cidadãos? Uma democracia com um rei é uma democracia castrada, não passa disso. O teu reizinho quando fala para os azuis, fala em nome de quem? Quem lhe concedeu o direito de falar em nome de todos os azuis, pese embora sejam eles a pagar-lhe todas as extravagâncias, a ele e à sua mulherzinha de plástico? Era bom que usasses a cabeça de quando em vez, para variares um pouco a imbecilidade, mas tu não a usas. Tu, marianito és um desses seres perfeitos que vai morrer sem chegar a estreá-la. Sim, é certo, com a ajuda dos obreritos – são sempre tão úteis nestes momentos – vais vencer de novo, mas não te iludas, marianito, a questão vai continuar a germinar, e numa outra primavera quando pensares que já está tudo aquietado, a bolha vai rebentar-te de novo, em cheio nas ventas, pois ao contrário de ti, os povos têm dignidade e não nasceram para ser servos.

Era um país de florestas verdes, de montanhas e vales pouco extensos. Aqui e ali, uma pequena cordilheira, muitas árvores, aldeias penduradas nas encostas ou quase perdidas em extensas planícies. Três ou quatro rios dilatados em água e extensão, de antigas e novas estradas, com restos de comboios que ainda iam passando, paisagens que deslumbravam e seduziam e outras encantadoras. Havia também o oceano, esse infinito de azul que nos enchia de ternura nas tardes de primavera e de melancolia nas de Outono. E havia as gentes, simples, indisciplinadas, quase sempre tristes mas sem desânimo, no trabalho, nas epopeias, no construir de uma história tão singular. Havia também os abutres. Eram uma minoria, mas dizimavam tudo à sua passagem, numa ganância e vaidade obscenas. Esse país, bonito, era o meu país, onde nasci, cresci e vivi ao longo de uma vida. Esse país ardeu, num verão de terra seca por ausência de água e no meio de intensas e ventosas chamas, perante a cobiça e a negligência dos abutres. O esplendor do fogo tudo levou. Agora, esse país que era o meu, jaz em escombros de terra e cinza, deserto de vida e com muitas promessas dos… abutres.


Não sei se foi contigo que aprendi a viajar. Se não foi, depois de te conhecer as minhas viagens alcançaram outra dimensão, a da literatura, a da poesia, a do encanto, a de aprender a ver com o olhar, de sentir com alma, a deixar correr como um rio vagaroso os sentimentos que em nós penetram quando extasiados apreciamos o que é infinitamente grande ou pequeno, a encontrar a beleza na extensão mágica de lugares que não conseguimos definir e no contacto com as gentes tão diferentes e ao mesmo tempo tão humanas mesmo que apenas na extensão da sua pobreza tão explorada. Procuro imaginar-te percorrendo as terras da Pérsia, do Afeganistão, nesse tempo que nos parece de medo e receio que nos mostras tão límpido, tão simples e tão generoso e a guerra que explodia ao longe parecia não perturbar a serenidade dos dias onde a sobrevivência era o quotidiano dessas gentes que encontravas e te ofereciam o pouco que tinham. Quando muito mais tarde, o meu olhar se avizinhou dessas montanhas, ainda não te conhecia, mas agora sei que já via conforme me ensinaste a ver, só não consigo bordar de beleza as palavras como tu tão bem fazias. Não resisto a deixar um pouco de ti, Annemarie, neste curto e tão parco texto, usando as palavras que a tua alma escrevia: “quando vim ao Hindu Kush pela primeira vez, chegando pelo norte da planície tórrida do Turquestão, depois de transpor as suas gargantas históricas e grandiosas, senti-me tentada a escrever um hino e nada mais. Um hino ao seu nome, porque os nomes são mais do que designações geográficas, são música e cor, sonho e recordação, são o mistério e a magia – e longe de ser uma experiência decepcionante, é antes uma coisa maravilhosa redescobri-los um dia, carregados de esplendor, de sombra e de fogo, e da cinza fria da realidade. (…). Quando chegava a noite, na obscuridade sempre como que impregnada da cor leitosa de astros longínquos, voltava-me por vezes para sul, em busca de um reconforto e encontrava a mesma cadeia de montanhas azuis que me era já familiar.” Também cheguei pelo norte, pelas terras de calor abrasador e o pássaro de asas largas que me levava parou em pleno espaço aberto nessa altitude que nos pode fazer cair desamparados, e fiquei por ali, a contemplar essas montanhas azuis que viste. Creio que ainda lá estou. Aguardava pelas tuas palavras para traduzir as cores que os olhos viam, lembrando-me o que me ensinaste, que, “não podemos amar deveras aquilo que nem vimos com os nossos próprios olhos nem apertamos nos nossos braços”, pois, “até mesmo a nostalgia não é mais do que uma forma de solidão que se exala e se esvazia da sua substância”.     

“Todos os Caminhos estão Abertos”, Annemarie Schwarzenbach, Relógio de Água, Outubro de 2016)

Apenas eu te olho e pergunto porque te escondes atrás dessas lentes escuras, como se perante ti, estivesse uma luz agressiva, quando na verdade somos alcançados por esse sol dolente na tranquilidade de uma tarde que vai declinando. No teu rosto inexpressivo, nasce por fim um sorriso, com essa ternura com que acolhemos alguma mensagem que nos chega. Primeiro a tua mão leva o objecto até ao ouvido. De seguida percebes que as palavras são escritas e não faladas. O teu sorriso abre-se um pouco quando lês e ainda mais quando respondes. Passeias o sorriso e o olhar pela carruagem até ao exterior. Continuas sem me ver. Por fim, voltas a serenar e colocas de novo a escuridão das lentes sobre os olhos, deixando um rosto dividido entre o claro e o escuro. Mas nesse momento, quanto tudo já parece terminado, sou eu que vou em voo alado, soltei o pensamento e a memória, larguei as velas de um veleiro sem leme, remei para além das tuas negras lentes, os meus olhos já te despiram, já te amaram em noites sem nome e madrugadas sem fim, assaltaram a fortaleza imperial onde te abrigas, os meus olhos querem desposar-te como na poesia de Pessanha, erguer-te no limbo perfeito da imaginação que voa livre no interior da minha alma.

  

UMA ENORME TRISTEZA

Mário Faria




17 Outubro 


Não tenho dúvidas que foram cometidos erros graves na gestão da floresta, na prevenção e combate aos incêndios e de que os partidos do arco da governação são os primeiros responsáveis. Mas, deixar toda a responsabilidade à actual ministra da AI, parece-me absolutamente inadequado. Se o PR já veio a terreiro a pedir contas, não pode ficar o governo por um ralhete e mandar às urtigas apenas a responsável pelo MAI. E não pode chegar, se as culpas são tão claras e caem sobre todo o governo. Depois de Pedrogão os fogos passaram a ser um problema nuclear da governança e do Estado e, por isso, do primeiro-ministro. E falta ainda saber se não serão deduzidas responsabilidades criminais a alguns responsáveis. Por outro lado, temos agora uma “bíblia” que mostra os pecados, distribuindo culpas com generosidade e o que tem de se fazer para que nunca mais tenhamos de assistir a este tipo de acontecimentos.  Não acredito em tanta bondade e certeza. O governo colou-se ao documento como tábua de salvação. Agora é que nada vai ser como dantes, promete Costa, como se fosse fácil implementar novas competências, impor outros procedimentos, arquivar os antigos costumes e selecionar uma novas equipa, esperando de todos os parceiros a máxima lealdade e saber. É possível, o “Novo Livro” tem tudo, basta seguir o guião. Os portugueses são uns tipos porreiros mas pouco amigos da coisa pública e pouco activos na intervenção cívica. Pela minha parte, não acredito em milagres e vamos continuar a sofrer. As receitas vindas do conhecimento, ainda que cumpridas, vão ser operadas e monitorizadas pelas estruturas em funções e sujeitas a todas as ocorrências adversas que acontecem quase sempre em situações limite, sempre muito difíceis de combater e muito fáceis de avaliar e decifrar depois dos acontecimentos, quase sempre sem ligar aos constrangimentos próprios de quem tem de tomar decisões no terreno, sem tempo a perder e sem direito a segunda avaliação. Pode ser que a próxima estrutura integre quadros independentes e com poder para escolher os seus colaboradores em áreas estratégicas. Pelo que ouço na TV, seria canja para muitos. O “Alcaide espanhol denunciou “como terrorista a onda de incêndios ocorridos na Galiza. Percebo que não se dê relevo à notícia em Portugal, que poderia ser aplicável ao caso português, não fosse desviar o enfoque no tema principal: enfrentar, estudar e atacar todas as causas que produziram efeitos tão brutais. Tenho ouvido sábios comentadores e todos parecem saber o que fazer e como fazer. Na noite de ontem, numa mesa redonda, assisti a uma grande convergência de ilustres comentadores da SIC. Louçã fazia parte do grupo e antecipou o que hoje li de Mariana Mortágua e não fui capaz de travar um pensamento perverso e lembrei-me dos “cartilheiros” do futebol pátrio. O que sinto: um enorme desalento e muita tristeza. E muita dúvida. Na dúvida só sei duvidar. Espero que as diferentes autoridades sejam capazes de mitigar os efeitos da tragédia, honrar os mortos e tratar dos vivos.


18 Outubro

A direita raramente perde. E quando isso acontece veste a roupagem que está mais a jeito: adapta-se e preparar-se para um novo assalto. E vai ganhar o poder, muito brevemente. Até a natureza lhe presta serviço: se fosse um golpe tramado para fazer voltar a direita e as suas políticas, se conseguiria melhor. E com o processo Sócrates a empurrar a banda, o declínio do PS fica mais próximo dos congéneres europeus. Por outro lado, a destruição foi tal que os próximos anos prometem alguma calmaria. Há menos territórios para arder. O futuro promete alguma recuperação, até porque vai ocorrer um investimento generoso (e justo) a todos os lesados dos fogos. E provavelmente, um pequeno impulso na económico local, até que se apaguem os impulsos da generosidade. E que poderá produzirá alguns efeitos sobre algumas reformas negociadas e previstas no OE e negociadas no âmbito do acordo com os parceiros do PS. O presidente já avisou: atenção aos efeitos de algumas medidas que vão cair em cheio em 19, ano de eleições. Acho muito adequada a apresentação da moção de censura por parte do CDS. E o que vão fazer e dizer os partidos de esquerda? Será que este governo está ferido de morte e vai ser trucidado? Como compatibilizar as críticas duras com um voto favorável? O debate na AR foi mais do mesmo. O PSD assumiu a oposição trauliteira e Assunção Cristas foi implacável, mas com um registo de primeira-dama: menos Marie Le Pen e mais Margaret Thatcher. O PS demonstrou a enorme fragilidade que grassa no partido. O PCP disse que as políticas são quem mais ordena e o Bloco disse o mesmo que Louçã no dia anterior e lhe valeu de Miguel Sousa Tavares o reparo de que a sua proposta era velha e vinha do tempo do arquiteto Gonçalo Ribeiro Telles. Desliguei-me dos fogos. As notícias das demissões caíam sem surpresa. Estava muito cansado, e virei-me para a música.

26 Outubro

O governo colocou Cabrita na AI, mudou de gente na P.Civil, definiu o roteiro, as entidades e as gentes que passariam a ficar comprometidas no combate e prevenção dos fogos. Tudo direitinho, conforme as NEP´s (normas de exercício permanente). A moção de censura não passou e o Presidente aceitou o voto de confiança e deixou muitos avisos ameaçadores ao governo. Entretanto, vai-se sabendo que há um relatório da P.Civil que rebate algumas verdades da “Bíblia”, usando o inalienável direito ao contraditório, ao mesmo tempo que se vão conhecendo alguns reparos que vão saindo, em voz baixa, do governo relativamente ao presidente e ao que lhe fora já previamente informado sobre o plano de contingência, nomeadamente das demissões já em curso. O presidente feriu de morte o governo e só não o demitiu porque Passos se pirou e o PSD está órfão. O homem tem uma qualidade indiscutível e sincera na forma como se apresenta no terreno e dialoga com as gentes. E cumpriu essa missão de forma brilhante. Mas, não há bela sem senão. E como provavelmente não esqueceu a sua apetência de “fazedor de factos” e porque continua a ser um homem de centro-direita muito ligado à Igreja e um animal político habituado às lutas pelo poder, temo que vá continuar a fritar em lume brando o actual governo para o entregar à direita, de mão beijada, no momento certo: nas próximas eleições. Tem demasiado poder para meu gosto. A florestação não vai ser cumprida: não há gente, nem condições, nem a mobilidade do trabalho aponta para que se cumpra esse desígnio. Os ditames da UE e o próprio “conceito de globalização que, assente no favorecimento dos sectores mais competitivos, afasta as pessoas dos sectores menos competitivos”. Uma tragédia nunca vem só. Temo que os danos causados pelos fogos causem graves prejuízos políticos. Vamos ver. A porta que se abriu pode fechar-se com e por obra de Marcelo Rebelo de Sousa: os seus recados passarão a ser virais. Certo é que os beijos e abraços vão continuar, a bem da Nação. Estou muito desiludido com o governo: não esteve à altura para tomar decisões assertivas, depois não foi capaz de se preparar para diminuir riscos futuros e de se defender com substância. E os aliados só desajudaram: fugiram todos não fossem ser prejudicados e ficar mal na fotografia. Um contorcionismo permanente. E vamos perder o que tanto custou a ganhar.




A designação de Bíblia ou Novo Livro no texto são formas de enfatizar a suprema qualidade e o auto de fé que gerou o Relatório da Comissão Técnica Independente.

O MOMENTO DO QUEIJO

António Mesquita


http://www.batashoemuseum.ca


“Há um muito belo texto de Platão, num diálogo com Sócrates, em que Sócrates diz: é curioso o que se passa, há assuntos sobre os quais ninguém ousa falar, a menos que seja competente. Por exemplo, sobre o fabrico do calçado, ou sobre a metalurgia. E depois há uma quantidade de assuntos sobre os quais toda a gente se crê capaz de ter uma opinião. (…) De tal maneira que a filosofia é a matéria em que toda a gente tem uma opinião. Saber se Deus existe? Disso, pode-se sempre falar no momento do queijo. Saber se Deus existe. Cada um tem uma opinião sobre uma questão como essa, cada um tem o seu esquema para dizer. Em contrapartida sobre o fabrico de sapatos?”


“Les Cours de Gilles Deleuze”


Nem o Rei-Sol se atrevia a decidir uma questão técnica. Tinha que confiar na opinião do seu arquitecto ou do seu marceneiro. E sabemos de como era crédulo em relação ao seu médico, apesar da arte deste se prestar tanto à discussão.

Platão escarnece, evidentemente, da facilidade da filosofia popular, sem recorrer ao “momento do queijo”.

Embora quase ninguém se reconheça filósofo, todos, duma maneira ou doutra, amam o saber que julgam ter, o que não é muito diferente, no fundo, da filosofia.

Se pusermos o calçado e os outros problemas práticos de lado, há todo o imenso continente do que não se sabe ao certo que, nalguns casos, não deixa de ser urgente, como, por exemplo, conhecer o semelhante com quem temos uma disputa ou com quem temos de fazer um contrato.

Em vez disso, Platão acena-nos com a “verdadeira” filosofia. Só que não podemos tomar a consistência das ideias pela marca da verdade.

Platão, o menos sistemático dos filósofos, nem por isso deixa de apelar ao nosso sentimento estético e à nossa crença ( a crença no ideal, antes de tudo ).

O QUE VAI ACONTECER?

Manuel Joaquim



A comunicação social tem estado a massacrar-nos sobre os incêndios, sobre o orçamento, sobre a falta de água, sobre os afectos do Presidente da República e o esfriamento das suas relações com o Primeiro-ministro. Os comentadores de serviço alimentam todos estes assuntos na esperança de contribuírem para a queda do governo e para o regresso da direita. Falam e escrevem sobre o que se passa na Catalunha, numa perspectiva redutora da complexidade da situação, manifestando as grandes preocupações da classe dominante.

Escamoteiam o discurso que o presidente da EU fez em 13 de Setembro, no Parlamento Europeu, sobre o “Estado da União” e os comentários que tem efectuado, bem como os projectos políticos que a EU pretende desenvolver e das suas consequências.

Escamoteiam que a senhora que apresentou na Assembleia da República a moção de censura ao Governo, com vista à sua queda, foi a ministra da Agricultura do governo PSD/CDS, que foi a responsável pela legislação que escancarou a plantação de eucaliptos, extinguiu postos de sapadores florestais, reduzindo capacidades de vigilância e de protecção civil. Santa mulher que perdeu a vergonha pelo seu comportamento.

Limitam-se a dar notícia sobre a publicação de documentos sobre o assassínio de Kennedy, com a indicação de que Trump não permitiu a publicação de alguns para serem analisados pelos serviços secretos, reproduzindo comentários ressequidos sobre quem foi o assassino. São assuntos não muito convenientes pois, para já, pelos documentos agora publicados, sabe-se que a liquidação de Fidel Castro esteve a ser trabalhada. Mas também pelo que já se sabe, a execução de Kennedy foi decidida pelas mais altas instâncias do poder americano de então, com características de um verdadeiro golpe de estado. Aquilo que os EUA gostam de aplicar nos países que não seguem as suas orientações.

Estão nos nossos olhos o que aconteceu e acontece no Iraque e na Líbia, quando pretendiam deixar de negociar o petróleo em dólares. Tentativas muito recentes na Venezuela, pela mesma questão.

China, Rússia, Irão, Venezuela e outros passaram a negociar o petróleo em moedas que não o dólar. Se até agora tínhamos os petrodólares, vamos passar a ter petroyuans.

O que vai acontecer?

VISÕES

Mário Martins





As recentes tendências da moda política mundial, inspiradas pelo novo governo americano, que estão a tornar o mundo tão incerto como perigoso, levaram-me a regressar às “Visões” de Michio Kaku, livro publicado há 20 anos, com base em cerca de 150 entrevistas a cientistas, incluindo um grande número de Prémios Nobel, de várias disciplinas.

O sub-título da obra “Como a ciência irá revolucionar o século XXI” dá ao leitor a expectativa de “saber” como e quando o factor objectivo irá moldar o subjectivo, quer dizer, como e quando o imparável desenvolvimento científico-tecnológico irá influenciar decisivamente o voluntarismo político.

Para o autor, professor de física teórica no City College de Nova Iorque, co-criador da teoria das cordas e conhecido divulgador de ciência, a revolução da informação está a construir e a forjar uma cultura planetária comum baseada em milhares de pequenas culturas; e em finais deste século o verdadeiro poder das três revoluções científicas (quântica, informática e biomolecular) forçará as nações a cooperarem numa escala nunca vista na história; mau-grado prognosticar que a marcha para uma civilização planetária será lenta, aos arrancos, indubitavelmente repleta de reviravoltas e contratempos e que, na sombra, paira permanentemente a ameaça de uma guerra nuclear, de um surto de pandemia mortífera ou de colapso do ambiente.

Bem pode dizer-se que este último prognóstico assenta que nem uma luva à situação actual: vivemos um movimento centrífugo das nações, da fase da dissuasão nuclear passamos à da agressividade nuclear, as bactérias e os vírus tornam-se cada vez mais ameaçadores, e o ambiente não promete nada de bom.

Apesar disso, acompanho o autor na crença de que, salvo destruição com origem humana ou natural, estamos a caminho de alcançar uma civilização planetária. Só é pena que a previsão aponte para o final deste século…


02/10/17

CARTAS DE SANTA MARIA

Fernão Vasques





Bolungarvik, 30 de Setembro



Inicialmente, parei em Ísafjörður, fiorde do gelo, em tradução simples destas palavras islandesas nem sempre de fácil pronúncia. Vinha do sul e como a estrada passava um longo túnel, segui por caminho de montanha e essa opção permitiu-me visionar o fiorde como uma imagem aérea e tive de imediato essa sensação do que é irrepetível e sumptuoso. Acreditei que era o lugar que procurava nesta viagem. O braço de mar refugia-se, como se procurasse um porto de abrigo, entre duas paredes de serrania. A descida fi-la nesse pasmo do que alicia e seduz. A cidade tem cerca de três mil habitantes e a actividade principal é a pesca, com o turismo em crescimento. Apesar da distância à capital a sua vida cultural não é pequena. No Museu da Marinha aparecem-nos as casas mais antigas da Islândia, de meados do século XVIII. Após alguns dias de estadia caminhei alguns quilómetros para norte, ao longo da costa até à pequena aldeia de Hnífsdalur e foi aqui que tudo mudou. Ao caminhar um pouco mais, encontrei Bolungarvik. Atraído por um pequeno farol de cor laranja, surge-me então perante o olhar, uma baía aberta, uma praia de areia escurecida e uma aldeia alargada com os seus quase mil habitantes, aconchegada no sopé de uma falésia com mais de seiscentos metros de altitude. Para além da pesca, que tem sido, ao longo de séculos, a actividade dos que aqui vivem, procurei o Museu de História Natural com a maior colecção de aves do país, uma espécie de urso polar e rochas e minerais, e o Museu Ósvör no qual aparece representado um antigo porto de pesca. Um caminho apenas utilizável no Verão leva-nos ao outro extremo do vale, de novo ao encontro do oceano. A meio podemos desviar em direcção a Bolafjall, até à estação de radar, e a quase seiscentos e cinquenta metros de altitude, o nosso olhar estremece face à grandiosidade da paisagem. A natureza envolvente arrebata-nos para sentimentos contraditórios sobre o comportamento humano, tantas vezes, tão pequeno, tão acanhado, quando em redor de nós tudo se conjuga para gerar beleza infinita. Já não regressei a Ísafjörður. Compreendi que tinha chegado ao destino e ao fim da minha viagem. Para norte e a quatrocentos quilómetros de distância, estende-se o litoral das terras da Gronelândia, mais para norte, a imensidão do Árctico e por fim o Pólo. Não há mais caminho no meu horizonte. Chove, com a naturalidade de tantas coisas que por aqui vou encontrando. A temperatura varia entre os cinco e os sete graus célsius. Na Islândia só encontramos árvores nas cidades e aldeias, as montanhas são em pedra nua, cobrem-se de grandes nevões no Inverno e imenso musgo na Primavera. Mas há o silêncio, um longo silêncio. O silêncio de Beethoven chegou até mim na serra do Açor num dia de despedida. Outro silêncio é o que nos envolve quando o entardecer nos encontra no interior de uma cordilheira. É um silêncio de ternura, acariciador. Há também o silêncio que em tantas ocasiões nos abarca no meio de tanta gente. Há ainda o silêncio da serenidade do pôr-do-sol quando a estrela nos deixa numa girândola de cores. E há o silêncio dos pólos, o silêncio da neve, o do horizonte sem limites, um silêncio sem som, embriagador e de solidão, como este que em breve vai ocupar aqui todo o espaço em terra e no mar, com aquelas neves que ainda restam, em frente e ao longe, na reserva natural de Horustrandir. Para trás, ficou o meu caminho, o que percorri, empurrado pela vida, mas quase sempre pela bússola do meu pensamento e das ideias que colectivamente em mim se desenvolveram. Os fiapos da memória, mostram-me tantos momentos de beleza, desde o tempo do nosso tamanho minúsculo no interior de uma cidade que ainda não perdera totalmente uma face ruralizada, o crescimento, o alvorecer das ideias, a resistência às malfeitorias do poder, o salto através de um mundo imenso, as cores deliciosas dos fins de tarde de ruas antigas que espreitavam o mar, com essa tranquilidade que nos adormece a alma, que nos apazigua, connosco e com os outros, os telhados vermelhos sobre paredes de cores ocres, as calçadas, as ruas cheias de gente, o rio caudaloso na sua pressa. A vida é assim, um rio, cujo caudal podemos acelerar ou diminuir o ritmo, mas não podemos deter a marcha. Quanta tristeza, quanta alegria, por vezes tudo junto como naquela revolução para a liberdade, os amores que chegaram e os que partiram, a travessia da Eurásia no deslumbramento do inacreditável e no fim, quando a estrada termina, chegam as palavras de Violeta Parra, «gracias à la vida…». Daqui vejo o mar como no país que fica longe e vou fechando as recordações no recanto da memória. A mulher do meu futuro não chegou, pese embora os meus apelos. Ficou retida no silêncio da sua ausência. Para ela as palavras de Sophia que viajaram comigo, “Num deserto sem água/ numa noite sem lua/ num país sem nome/ ou numa terra nua// Por maior que seja o desespero/ nenhuma ausência é mais funda do que a tua.” Nesta pequena aldeia, os sons esvaíram-se, esconderam-se ou guardaram-se, é apenas o silêncio, talvez aquele com Vassili Grossman, terminou o seu “Vida e Destino”, «Mas no frio florestal a primavera sentia-se com mais intensidade do que na planície iluminada pelo sol. Neste silêncio florestal a tristeza era maior do que no silêncio de Outono. O brado dos mortos e uma furiosa alegria de viver ouviam-se na sua mudez…» Aguardo sempre a chegada dos barcos de pesca. Aproximam-se sem ruído, com a proa fendendo as águas e enquanto não chegam a terra, o meu pensamento voa. Lembro ainda o romance “Vida e Destino” naquele instante quase final, quando os blindados fecham numa tenaz a horda nazi, a pressa do ditador em festejar a vitória, leva-o a empurrar esses blindados para oeste, sem paragens e descanso, numa marcha contínua. Assim está o meu pensamento, a voar com esses blindados pelo tempo fora, de vitória em vitória, de alegria em alegria, por tudo que «gracias à la vida…» me foi permitido viver. Amanhã continuo aqui. 


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