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01/01/10

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A MUDANÇA DE NATUREZA

António Mesquita

"We must humanize technology before it dehumanizes us"

Martin Buber

Pode a tecnologia ser humanizada? Ou colocando a questão ao contrário: pode a nossa natureza ser transformada pela tecnologia?
Hannah Arendt diz, por exemplo, que uma mudança de natureza é uma contradição nos termos, porque atingir a natureza duma coisa significa destruí-la. E diz mais que a própria concepção de uma mudança da natureza do homem ou do quer que seja "é um sintoma do desmoronamento intelectual da civilização ocidental." ("The origins of totalitarianism").

Claro que na ideia aqui em causa está implícita uma vontade, um projecto para a "fabricação do género humano" (Sylvie Courtine-Denamy). A desumanização que a tecnologia pode trazer consigo, por outro lado, é sofrida pelos homens como um efeito colateral da satisfação das suas necessidades (naturais ou artificiais).
A tecnologia é sempre um poder que pode ser usado para o bem e para o mal. A diferença, nos nossos dias, está na escala desse poder e na medida em que o uso da tecnologia nos pode condicionar (por exemplo, a limitação da liberdade para garantir a segurança do nuclear).
Se não podemos mudar de natureza, podemos então ter entrado num processo de auto-destruição, do qual só nos aperceberemos demasiado tarde (se é que o poder da tecnologia pode ser limitado).
Como sempre, a imprevisibilidade é a lei das nossas vidas. Só a história poderá arriscar, retrospectivamente, uma explicação e a identificação do "ponto de viragem". Mas quando é que os Romanos entraram em decadência? Alguém pode dizer a partir de que conquista a república estava perdida ou a tara cesariana que fez descambar o império?
Esta é, contudo, uma hipótese inspirada na física do calor: o grau que leva a água à ebulição. Mas não é assim que as coisas se passam.

O PLACAS MORREU

Mário Faria



Era um jovem que viveu sempre do lado contrário dos que recebem reconhecimento. Já em miúdo fugia da escola como o diabo da cruz. Os professores não gostavam dele, porque era rebelde. Lia e escrevia, era suficientemente sagaz para fazer perceber que estava longe de ser analfabeto.

Praticava desporto, era muito habilidoso em quase todos eles, jogava bilhar de forma exímia e era um semi-​profissional de poker. Era por essa via que ganhava o dinheiro para os seus gastos pessoais. O sustento estava garantido, pois vivia com os pais humildes que sempre o mimaram. Fugia do trabalho, como antes da escola. Andava de bem com a vida e sem preocupações de maior. Em segredo e com uma perna às costas fez a 4ª. classe que passou a ser a escolaridade mínima exigida no desporto federado, pois queria continuar a poder jogar.

O desporto proporcionou-​lhe o convívio com jovens estudantes, o poker aproximou-​o de quem tinha dinheiro para arriscar e perder. O seu ambiente social era bem mais elevado do que da família que descendia.

A sua parca instrução era muito bem camuflada pela leitura permanente : sabia discutir com ligeireza os temas culturais e políticos, lia diariamente o JN de fio a pavio e era um amante de cinema e do teatro. Com a morte do pai, a vida complicou-​se porque passou a ter uma família por sua conta.

Arranjou, através de um dos amigos, uma ocupação à sua medida. Não exigia horários apertados e trabalhava à comissão. Não estava preso e trabalhava segundo o seu ritmo. Passou a vender placas publicitárias que passou a servir-​lhe de alcunha. Como conhecia muita gente, ia-​se safando razoavelmente, sem nunca se esforçar de mais.

Com o 25 de Abril pouco mudou. Radicalizou o discurso, manteve a prática. A sua actividade profissional expandiu-​se e na economia paralela teve algum sucesso durante alguns anos. Virou empresário por conta própria, sem nunca pagar impostos. Deambulou de negócio em negócio, das máquinas de jogo ao Marlboro, enquanto as autoridades não o apertavam. As oportunidades foram minguando e foi sobrevivendo em crescente dificuldade, contando sempre com a ajuda de expedientes, no limite da legalidade.

Veio a reforma, exígua a exigir outros micro negócios inconfessáveis, mas nunca reprováveis. O seu discurso tornou-​se ainda mais radical, o que não o impediu de transitar da extrema esquerda para o PS. Vivia com dificuldades acrescidas, no limiar da pobreza. Sempre doente e a queixar-​se dos mesmos : dos que comiam tudo e não deixavam nada.

Há dias encontrei-​o. Descia a rua muito devagar, pálido e com a mão a segurar o peito. Levei-​o, a seu pedido, ao Centro de Saúde. Ficou lá. À noite telefonei-​lhe e disse-​me que a médica lhe deu uma injecção intravenosa e disse-​lhe que eram gases. Fiquei preocupado porque me pareceu doente de verdade. Telefonou-​me, no dia seguinte, e disse-​me que ia ao hospital que não suportava as dores. Esteve nos cuidados intensivos : um enfarte. Disse-​me que o queriam operar, mas não o permitiria, porque tinha sido operado à próstata, iam dois anos, e tinha sofrido uma paragem cardíaca. Ia voltar para casa, quando tivesse alta.

Não veio. Morreu quando tomava banho no hospital : caiu e não se levantou mais. Desta vez não foram gazes, foi o coração que estourou.

O Placas não era trabalhador, nem especialmente tolerante, simpático, benevolente, paciente ou humilde. Era muito orgulhoso, teimoso e defendia as suas ideias de forma radical. Tinha, porém, uma qualidade pouco comum : era um amigo do peito de todas as horas. Sempre foi. Tive pena de nem sempre ter demonstrado o quanto me honrava essa amizade.

O MEC escreveu de forma muito oportuna que " … a palavra pena é das mais abusadas da nossa língua …. a pena é o triunfo da cobardia, do egoísmo e do laxismo …. Fiquemos com a pena para o que serve – para a compaixão ; para a sentença ; para o que voa no céu e na escrita, e apuremos vocabularmente as nossas necessárias hipocrisias".

É isso, temos sempre muita pena quando já nada podemos fazer. E antes ? Para que serve a um amigo de sempre que se tenha pena dele, depois de ter morrido ? O vazio do teu funeral, Placas, é a prova do triunfo do comodismo. A pena vale sempre quando alma é pequena. Será?


Início

UM PAÍS...

Alcino Silva
Gravura de José Dias Coelho



Parou por momentos na proximidade da porta. Sentiu o vento frio, gélido e aquela chuva devastadora que não dava sinais de alívio. Foram segundos, apenas para lhe permitirem ainda olhar para trás e despedir-se. Preparou-se, pois percebeu que aqueles quilómetros até casa a deixariam ensopada e a roupa não seria suficiente para lhe poupar o corpo. Certificou-se que o blusão estava bem apertado e aconchegou-se a ele. Com a mão esquerda ergueu o capuz e apertou-o em torno da cabeça e com a outra abriu o guarda-chuva que pressionou para baixo de forma a resistir ao vento. Os primeiros metros seriam os mais difíceis, nessa adaptação de temperaturas e de ambientes. De seguida a água que tombava desalmadamente principiou a molhá-la e foi-se habituando. Catarina caminhava agora, passeio fora e para que a provação e o esforço não se tornassem tão pesados e a distância mais longa, foi alimentando o pensamento com preocupações e sonhos. Estes faziam esquecer e amenizar as dificuldades e permitiam ganhar forças para o amanhã. Sempre os mesmos dias, a mesma máquina, a mesma tarefa e uma fadiga acumulada. Aqueles ritmos que a colocavam sempre num patamar limite, por tão pouco salário, por quase nada. No fim, os mesmos três quilómetros a percorrer aquelas subidas, íngremes e extensas. A casa nova, por terminar. Já habitável, mas com tanto ainda para acabar e a Inês, mais dois anos e a finalizar a escola e novos sonhos para o seu futuro, mas com que dinheiro, com que trabalho? Parece que a chuva aumentou e Catarina confunde-se com a noite, perde-se naquelas trevas, desenhando apenas sombras em cada candeeiro que passa. É apenas um vulto que engana o presente com esperanças futuras, nesse acreditar no que duvidamos alguma vez alcançar. Prossegue e procura estugar o passo, encolhendo-se sobre si e voltando a soltar o pensamento. Mais uma semana e os automatismos de sempre. Todos os dias as mesmas exigências, uma contínua pressão sobre a cadência de trabalho, uma constante incerteza sobre o emprego e aquele salário tão baixo, tão minúsculo que a meio do mês parece já não ter existido e mais uma vez a fazer adiar necessidades para o mês seguinte, como se isso pudesse aumentar os seus rendimentos. Como gostava que a casa se alindasse e que a Inês pudesse prosseguir na escola, descer até à grande cidade, soubesse lidar com as letras e alcançasse um emprego razoável, pelo menos, afastado de tanta necessidade, de tanta carência, de tanta falta de tudo. A subida parece hoje mais longa, mais íngreme, mais penosa e a chuva pesa-lhe agora demasiado açoitada por esse frio que faz tremer os olhos.

O automóvel aproximou-se, dos melhores modelos, 180 cavalos, sólido, poderoso. Ao volante, o Fernando nos seus vinte e poucos anos despreocupados, sem necessidades, sem precisar de esperança, nem de futuro, pois o presente apresenta-se-lhe farto e folgado.

Nunca saberemos o que se passou naquele espaço negro quase sem luz. O corpo de Catarina, voou como os seus sonhos, soltou-se no ar, entre a chuva e o vento, sem um gesto, talvez com o olhar aberto pela surpresa e caiu lento, como se o segurassem, com a cabeça tombando sobre a guia do passeio, como uma almofada para seu descanso. Os olhos de Catarina adormeceram dias depois com todos os sonhos que guardavam.

É manhã na aldeia onde viveu Catarina. A chuva deixou em paz por uns dias os corpos cansados. O sol, frágil serpenteia por entre as casas e o verde dos campos, mas a luz que dá vida à natureza é insuficiente para afastar o frio soprado por uma brisa que arrepia os sentidos. Se a procurarmos ainda pequena, encontraremos Catarina a crescer num país que semeou ilusões entre os injustiçados, os despossuídos, esse povo picolo de que falam os italianos. Rasgou-lhes avenidas nos olhos, construiu nos pensamentos castelos de lápis-lazúli e coral como os do poeta, mas na hora de deixar a aldeia onde um dia longínquo estendeu as mãos como uma ave, Catarina levava a alma tão vazia como quando nasceu, talvez sem ódio, talvez sem rancor, talvez até sem a irritação dos rebeldes, talvez apenas com a revolta contida por ter nascido sem nada e ter deixado para sempre a sua aldeia, com menos ainda do que quando chegou e unindo esses dois espaços de tempo, somente trabalho, muito trabalho para quase nada.

Ao longe, o som dolente do sino esvoaça em direcção às colinas que protegem o vale. É provável que os sonhos prossigam a traçar desenhos no pensamento dos homens e das mulheres que todas as madrugadas teimam na tentativa de mais um dia de trabalho, é possível que a Inês consiga alcançar algo que a mãe já não teve tempo de lhe oferecer. É possível, pois na pátria de ambas muitas coisas têm sido possíveis quando os que vivem em silêncio se rebelam, mas por ora, nesta aldeia nortenha voam apenas, com o som que se solta das campânulas as palavras de outrora em poema sempre vivo:

Chamava-se Catarina

o Alentejo a viu nascer

serranas viram-na em vida

Baleizão a viu morrer.




TALVEZ

Mário Martins

A mão a ligar à terra
A casa a cheirar a pão quente
A cintura a dançar no dorso do cavalo
A gata de três cores com o gato amarelo gordo no quintal a sossegarem o mundo
A boca a sorver goles de Porto antigo
A música do quarteto de cordas a embalar a noite
A chama a crepitar na lareira da memória
A rua e o céu no sítio lá fora
Talvez um poeta fizesse disto um poema


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