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01/06/08

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A ESCOLA

Manuel Joaquim

http://www.montradigital.com/data/media

Lembro-me perfeitamente dos tempos da escola nº 61, na Rua de Faria de Guimarães, que tinha, na altura, o professor Bastos, que era o director, o professor Quaresma que tinha umas grandes barbas que lhe davam até à barriga, usava uma bengala e plainitos nos sapatos, que era o professor da 1ª e da 2ª classes e o professor Pompeu que dava aulas às restantes classes. No local dessa escola foi construído um prédio em cujo rés-do-chão está instalado um café. Os donos desse café descobriram que naquele lugar existiu a escola através de clientes e amigos que o frequentam. Hoje é possível ver nesse café, no lugar de uma mesa, uma escrivaninha de madeira, fotografias de crianças e, na parede, uma planta encaixilhada do edifício da antiga escola.

Na escola nº 61 existia uma cantina escolar onde ao meio-dia muitas crianças comiam uma sopa e um pão e uma colher de óleo de fígado de bacalhau porque sem esta não tinham a sopa. Algumas comiam mais do que uma sopa. Muitas vezes era a primeira refeição do dia. Lembro-me do professor Quaresma autorizar alguns alunos antes da aula terminar irem comer logo que a sopa estivesse pronta para servir.

Em casa não tinham comida. Em casa tinham irmãos mais velhos e mais novos, alguns doentes. Em casa tinham o pai desempregado, bêbado e tuberculoso. Em casa tinham a mãe a defender-se do pai e a procurar comida para a família. Casa de ilha, de duas ou três divisões, sala, cozinha e um quarto, como tantas outras que existiam e ainda existem na cidade que serviam de alojamento para quatro, cinco, seis e sete pessoas e às vezes mais.

As chancas de madeira e as botas de pneu eram o calçado que muitos usavam. Mas alguns, os mais necessitados usavam sapatilhas de pano, muitas vezes com grandes buracos nas solas.

Outras crianças distinguiam-se pelo bem vestir, pelo aspecto saudável, pela linguagem, pelo comportamento e pelo aproveitamento. Os pais acompanhavam-nos à escola, dialogavam com os professores e naturalmente apoiavam-nos nos trabalhos escolares.

Hoje, é possível observar o percurso de muitos daqueles jovens e verificar que os primeiros tempos da sua vida foram realmente indeléveis.

A maior parte dos que eram pobres, logo que saíram da escola primária, com 9, 10, 11 e 12 anos, profissionalmente, enveredaram por serem operários, caixeiros. Mais tarde, alguns emigraram. A grande maioria passou pela guerra colonial com todas as suas consequências. Continuam a ser pobres, alguns vivem miseravelmente e doentes, alguns já faleceram.

A maior parte dos que não eram pobres continuaram a estudar, muitos fizeram licenciaturas, encontraram empregos qualificados. Alguns ocupam lugares importantes.

Em que condições cresceram os filhos de todos aqueles jovens?


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A HIPÓTESE DEUS (4)

Mário Martins

Carl Sagan (1934/1996)



“(A) religiosidade (do sábio) consiste em admirar-se, em extasiar-se perante a harmonia das leis da natureza revelando uma inteligência de tal modo superior que, perante ela, todos os pensamentos humanos e todo o seu engenho apenas revelam o seu nada irrisório.” 1

Albert Einstein




- Por que razão os efeitos e as causas não poderiam constituir uma série sem fim a retroceder no tempo e a prolongar-se no futuro? - pergunta o filósofo;

- Bem, não está fora de cena a hipótese de uma natureza eterna… - responde o físico teórico.

Se fosse eterna, isso significaria que a natureza ou a realidade física teria as propriedades próprias do conceito de Deus, e que, portanto, seria possuidora da inteligência superior revelada nas suas leis, que tanto maravilhou Einstein. Ocorreu-me, em tempos, que Deus poderia ser o processo, ou seja, o modo como as coisas, todas as coisas, animadas ou não, existem. É o que, à sua maneira, diz Carl Sagan: “O termo (Deus) significa muitas coisas diferentes em muitas religiões diferentes. Para alguns, é um homem encorpado e de pele clara com longas barbas brancas, sentado num trono algures no céu, gizando atarefadamente a queda de cada pardal. Para outros - Baruch, por exemplo, Spinoza ou Albert Einstein - Deus é essencialmente a soma total das leis da física que descrevem o universo. Não posso conceber alguém a negar a existência das leis da natureza, mas não sei de nenhuma prova consistente da existência do velhote no céu.” 2

EM CONCLUSÃO:

1. No seu excelente livro “O Dedo de Galileu” 3, o Professor Peter Atkins faz, numa nota de rodapé, uma afirmação incomum no meio científico: “Se o universo de facto emergiu de absolutamente nada, é de presumir que chegue uma fase em que tenhamos de examinar como pode algo vir de absolutamente nada, ex nihilo. Um dia, os cientistas terão de estudar absolutamente nada”. Na mesma linha, Richard Dawkins considera que a hipótese da existência ou não existência de Deus é uma questão científica, mas eu considerá-la-ia, antes, uma questão filosófica, racional, como tal inteiramente aberta aos dados científicos.

2. À semelhança do que se passa com a interpretação actual dos fenómenos do mundo sub-atómico, em que vigora o princípio da incerteza, esta questão, por o seu objecto não ser tangível, só pode ter, racionalmente, uma abordagem em termos de probabilidade.

3. Os elementos que aduzi anteriormente sobre o conhecimento actual do universo/multiverso, permitem concluir que ou é finito (começou e acabará) ou é eterno (sempre existiu e existirá).

4. Dawkins defende uma visão alternativa, ateísta, à de admitir uma inteligência superior aos seres humanos e sobrenatural, mas eu destacaria, em primeiro lugar, a evidência de que a natureza transcende os seres humanos e, quanto ao sobrenatural, afirmaria o seguinte:

. Se o universo/multiverso for finito, a sua existência supõe um acto divino criador, sobrenatural, porque efectuado fora dele ou fora da realidade. Se for finito é preciso o sobrenatural para o explicar; ou seja, Finito ≠ Deus;

. Mas a hipótese, cientificamente em aberto, de o universo ser eterno (na forma uni ou multi), é não só estranha (uma natureza eterna quando tudo, nela, é causal e finito…), como tem grandes consequências racionais, a primeira das quais é a dispensa de um Deus separado das coisas. Se for eterno, o sobrenatural é ele próprio 4; ou seja, Eterno = Deus.

5. O ateísmo parece-me muito mais uma doutrina de combate à função político/social das grandes religiões, do que uma visão racional consistente sobre a hipótese Deus, que reclama ser.

6. Uma natureza eterna, isto é, uma natureza autocriadora é, objectivamente, uma hipótese equivalente à de um Deus dela separado. Se a física teórica viesse um dia demonstrar a hipótese de a natureza ser eterna, então Deus seria ela própria, a Mãe Natureza, o que implicaria, pelo menos na nossa língua, que Deus mudaria de sexo…


1 “Como eu vejo o mundo”, citação in “Sciences et Avenir” - Dez2003.

2 Excertos de uma entrevista conduzida por Edward Wakin - 1981

In “Conversas com Carl Sagan”; Organização de Tom Head; Edições Quasi - 2007.

3 Editado pela Gradiva em 2007.

4 A física teórica, em geral, e a mecânica quântica, em particular, não têm feito outra coisa, aliás, do que descobrir propriedades do mundo sub-atómico que são típicas do que habitualmente concebemos como sobrenatural…


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IDEIAS AVULSO

Mário Faria

http://www.lib.uwo.ca/weldon/news/hottopics/archive2002/march02.shtml



Há poucos anos, um jornal norte americano acusava o zapatista Marcos de ter trabalhado num bar gay em San Francisco. Marcos respondeu : Marcos é gay em San Francisco, negro da África do Sul, asiático na Europa, hispânico em San Isidro, anarquista em Espanha, palestiniano em Israel, indígena nas ruas de San Cristóbal, rocker na cidade universitária, judeu na Alemanha, feminista nos partidos políticos, comunista no pòs guerra fria, pacifista na Bósnia, artista sem galeria e sem portfolio, dona de casa num sábado à tarde, jornalista nas páginas interiores do jornal, mulher no metropolitano depois das 22h, camponês sem terra, editor marginal, operário sem trabalho, médico sem consultório, escritor sem livros e sem leitores e, sobretudo, zapatista no Sudoeste do México...

A ideia de esquerda é hoje um produto exótico, cosmopolita e que o mercado domestica ao sabor das leis da oferta e da procura. Coisas da política, coisas da vida, imagens que ainda são pedras e não apenas o reflexo de si mesmas, tais como “revolução” e “revolta”. E desse enraizamento refrescado, cabe-nos partir racionalmente cépticos e voluntariamente entusiasmados para o movimento social, na embalagem da anti-globalização que surge e na embalagem dos conflitos quotidianos múltiplos que a esquerda política deve integrar no seu ideário.

O socialismo perdeu a teoria e a doutrina de acção. Ficou só com o sentimento, a retórica e meia dúzia de causas dispersas.

O capitalismo vende-se melhor. É por isso que digo que os dentífricos mais publicitados não são os que lavam os dentes melhor. Mas a verdade é que sempre se vendem mais. Berlusconi é um bom exemplo : uma pasta dentífrica que se vende bem. Acredito que o capitalismo moderno continua a não resolver o velho virus da desigualdade. A solidariedade não existe para com os que não tiveram a sorte de nascer do lado certo. Infelizmente muitos políticos e empresários adoptaram no passado uma prática de conluio imoral e ilícito em benefício próprio. A tragédia está no facto de políticos e empresários das novas gerações, com poder, também se terem dado conta que para eles essa forma de actuar também é mais conveniente. Infringindo as regras, conseguem as coisas mais rapidamente do que respeitando as regras.

É verdade que muitos portugueses estão desorientados com “as conversas da treta” que os fecharam ainda mais sobre si mesmos. Repetiu-se até ao fastio que o país estava de tanga. O resultado dessa propaganda é uma economia paralisada pelo medo. Veio depois a ideia de que em Portugal não se trabalha. Um código integral era a solução. Chega um economista de nomeada e alerta que, afinal, é a grande maioria dos empresários que não presta. Os mais afamados economistas reunidos chegam à conclusão de que em Portugal até se trabalha mais do que noutros países. Não sabemos é trabalhar. A televisão mostra que não faltam sinais de exibição de grande riqueza. A venda de carros de luxo está em alta. A grande maioria é que está cada vez mais em baixo.

O ano de 2008 vai ser dominado pela especulação financeira : no petróleo, nas matérias primas e nos produtos alimentares. O povo que trabalha não tem armas para combater os instrumentos do capitalismo. Sobreviver vai sair mais caro, os salários vão ter menos dinheiro. Este ano vai mostrar que sem a cultura do diálogo, sem a promoção da liberdade e justiça em cada país, sem uma nova ordem moral internacional, sem solidariedade económica e social, estão abertos os caminhos da precariedade e da conflitualidade.


(baseado em alguns textos do Público de autores diversos)


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AS PALAVRAS E A MÚSICA

Alcino Silva

A igreja de S. Pedro de Rates


as palavras


Estava fria à noite, sentia-se o vento a rondar-nos o corpo a querer beijar-nos a alma. Estava perdido, é certo, por aquelas dores imensas que me tolhiam os movimentos e me alimentavam o desejo de descanso, de me estirar e semicerrar os olhos, fechá-los mesmo em devaneios de sono ou de sonho. Não, de sono que as dores eram intensas. O vento e a noite aperceberam-se daquela debilidade e não me pouparam. Mas a vontade de escutar as palavras era superior a toda essa fragilidade, pelo que por ali me deixei. O lugar, o espaço carrega certa magia, pelo passado, pelo que foi, por todos aqueles que viu passar. Agora, é dos livros, das letras, do convívio, da cultura, como o foi nessa noite. “Tantos condenados por crimes… prescritos” era o tema a apresentar, a lançar sobre os ouvintes, aqueles que ali se reuniram para escutar. Seguro as páginas amarelas da capa e desfolho em diálogo com as palavras que ali deixaram. Histórias de gentes traçadas por subidas e descidas, interrompidas aqui e além, continuadas depois. Nas primeiras folhas recebemos a visita de Borges e as suas palavras arrebatadoras:

“O tempo é a substância de que estou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo”.

Ouviu-se então o som triste e lento das violas a romper o espaço na semi-obscuridade das luzes, em sons tangentes, entre graves e agudos fazendo-nos voar as ideias à procura da noite com os escassos raios luminosos de uma lua alva em crescente. Por fim, o poeta lançou o seu clamor ao vento, fazendo desfilar em tropel palavras que se julgavam adormecidas. Como carros de combate os poemas seguiram estrada fora, vergastando as injustiças, alimentando os sonhos e dando ânimo aos Homens que não desistem. “Não sei para onde vou, não sei por onde vou, sei que não vou por aí”. Assim ficamos, a escolher cada um o seu caminho.


a música


Passada a barreira do outeiro que dá pelo nome de serra, encimado por uma floresta de eucaliptos, desprende-se ao olhar um extenso vale em planície, verde, assombrosamente verde e cultivado quase a perder de vista. A amenidade do clima que se soltava naquele fim de tarde, emprestava um repouso a tudo o que era visível. Apetecia prosseguir e desfrutar, saborear a amabilidade daquele sol que caía em réstias de calor que se transformava em conforto para o corpo e para o pensamento. No fim do caminho, invadimos a velha praça ao lado da vetusta igreja e percorremos as vendas daquelas gentes renascentistas nos seus trajes de trabalho. Quase sem darmos por tal, no meio dos couros, dos cabedais, das carnes e dos artesãos os sons suaves, belos das gaitas e da flauta trauteados em cadência pelo bombo, romperam a pacatez da feira e fizeram saltar a alma do consolo do corpo. A música voava, saltava por entre o gentio e fazia vibrar o desejo, a vontade de dançar, mover os membros, girar a cabeça. Eram sons doces, sem agressividade, sem agudos, apenas o bater cadenciado das mãos e as notas da gaita como um aroma a espreguiçar-se por entre as ruas estreitas. Afastei-me para o interior da igreja e mesmo ali chegava ainda como uma carícia aquele toque polifónico que rapazes e raparigas vindos de longe estendiam como um abraço. Minutos volvidos, fez-se silêncio, as vozes deixaram de sussurrar, a luz das lâmpadas faziam ressuscitar as antigas velas de lume aceso que se erguiam ao longo das colunas e o dia que ainda restava espreitava curioso pelos orifícios que o românico deixara nas paredes grossas laterais. As vozes do coro surgiram lentas, em sons leves e foram ondulando pelas pedras, subindo em cordão e atravessando a nave pelos arcos góticos que desejavam o futuro em plena idade média. Gotas e gotas de prazer sereno vogavam agora ao longo de toda a nave, procurando espaço por onde saltar para o mundo. Por vezes aqueles sons baixavam e bailando por entre todos aqueles que imobilizara pela tranquilidade dos tons, surripiava-lhes a alma e levava-a enquanto saltavam com leveza de pedra em pedra. Depois saíram, aproveitando uma nesga de luz, seguiram em viagem pelo mundo e enquanto aqueles toques quase divinos se espalhavam pela terra, quase acreditávamos serem suficientes para apaziguar as guerras e a fome, acalmar a injustiça, serenar a violência dos poderosos. É fácil deixarmo-nos embalar pelo sonho. Saí à procura da alma e senti que a estrada não tinha fim. Vencida a barreira de terra e árvores, avistado o mar que parecia longínquo, percebemos que a música disparava toda a artilharia da poesia das palavras e da vida e quando a primeira curva surgiu, percebi que seguia em frente, sem paragens, sem destino, voando apenas para o infinito do sonho. Deixei a igreja de Rates quando os primeiros alvores da noite beijaram o vale, profundamente agradecido ao coro gregoriano La Santa que veio de Ávila para me levar o pensamento em delícia até ao olhar dos que mais amamos.


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A PLATAFORMA DO DESEJO

António Mesquita

Arquimedes (Domenico Fetti)


"Dai-me um desejo preciso, e eu derrubarei o mundo."

E.M. Cioran


As várias peles de que nos revestimos podem retirar-se uma a uma, as dimensões que nos constituem, desde a linguagem à política e ao social podem ser percorridas pela sonda estatística, mas onde encontraremos o molusco dentro da casca com a explicação do essencial?

O nosso comportamento e o dos que conhecemos não se saberia "ler" sem uma escala do tempo.

Para falar só na política, todos mudámos. Mesmo se alguns parecem estar no mesmo sítio e não ter dado pela queda dos impérios, estão já noutro lugar e o seu discurso assume um novo e anómalo sentido.

Os corpos têm também outro peso. Estão carregados de terra. A agilidade dos pés correspondia às asas do pensamento, mesmo se fossem ilusões o seu motor.

Repetimos, mesmo sem palavras, uns com os outros, o drama ou a comédia de que o "ar do tempo" é o ponto. O ar do tempo impregna-nos e está em todos os nossos gestos e olhares, tanto que as palavras, às vezes, como sentinelas abandonadas pela guarnição ficam ridiculamente expostas.

E se toda esta mudança, este período de paragem, de estagnação, se quisermos, se medisse pelo desejo ou pela sua falta?

O desejo é a plataforma de Arquimedes, a força que traz a montanha para junto do profeta.

O desejo da Revolução, por exemplo. Era ele que explicava o entusiasmo, a abnegação, a vergonha por se pretextar quaisquer outros interesses ou prioridades, o desejo como incorporação e alucinação das ideias.

Não é essa ausência que denunciamos nos mais ínfimos detalhes?


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