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01/05/12

MUROS RELIGIOSOS (11) O Xintoísmo

Mário Martins
O grande Torii do Santuário de Itsukushima, património mundial (Wikipédia)

“O xintoísmo é uma religião étnica, sem fundador, que nasceu e se desenvolveu no seio do povo japonês. Ao contrário das “religiões reveladas” que dão grande importância aos actos e palavras dos fundadores, o xintoísmo - religião natural - não assenta em textos canónicos (…).

O xintoísmo é um politeísmo. Os kami (deuses) mencionados nos clássicos, tal como os que hoje são venerados nos santuários, são pois inúmeros (…). Ao contrário dos monoteísmos, o xintoísmo não tem, por conseguinte, divindades todo-poderosas: os kami não são nem omniscientes nem absolutos.”



Masanori Toki



Neste périplo já longo pelo oriente religioso, eis-nos não só chegados aos seus confins geográficos como ao reverso das religiões monoteístas: bem vindos ao politeísmo japonês.

O termo “xintó” - literalmente, “via/conduta dos deuses” - remete para um conjunto diversificado de crenças, de cultos, de concepções do mundo e do universo que prevalecem no arquipélago japonês de uma maneira flexível, sem esforço de sistematização, desde a antiguidade. Na sua acepção mais antiga, exprime o mundo religioso do Japão pré-búdico (…).

(…) Segundo uma repartição funcional das duas principais correntes religiosas japonesas, o budismo estaria associado ao mundo da morte e do além, e o xintoísmo, como numerosos paganismos, às forças da vida, da frutificação e da fecundidade. Ao xintó estariam igualmente ligados a sedentariedade, a produção e o comércio; ao budismo, a vida errática, o efémero, o desapego. O lugar do xintoísmo na história religiosa do Japão apenas se pode entender na sua relação íntima e na sua interligação constante com a religião búdica.

Certas práticas e crenças indígenas mencionadas nas crónicas chinesas e nos primeiros escritos japoneses dão-nos informação acerca de algumas noções fundamentais do universo xintó antes da introdução do budismo, em meados do século VI: importância do culto dos mortos, das práticas xamanistas (de xamã, feiticeiro que medeia entre a realidade profana e a dimensão sobrenatural) e dos ritos agrários. Nessa época, o xintoísmo parece ter representado as expressões populares de um culto prestado às inúmeras divindades autóctones denominadas “kami” (…) (expressão que) tanto significaria “elevado”, “espelho”, “corpo oculto” como ainda “pessoa de alta estirpe” (…).

As particularidades destes “espíritos” ou “forças vitais” são a sua omnipresença e a sua grande diversidade. Povoam o conjunto do arquipélago e estão associados a lugares específicos: mares, águas, montanhas, florestas, rochedos, espaços limítrofes - fronteiras de aldeias, desfiladeiros e encruzilhadas (…) Mas os kami não designam apenas lugares naturais, reinam sobre territórios celestes donde descem ocasionalmente. Aparecem igualmente como as divindades ancestrais de uma certa família ou de determinado clã. Os kami podem também revestir a aparência de animais - tigres, lobos serpentes, raposas, corvos - ou de fenómenos naturais temidos, como o raio ou os tufões, sem que se possa saber exactamente se estes últimos são a sua “forma divinizada” ou os seus mensageiros. Acontece, finalmente, serem considerados kami certos seres humanos. A tradição dos “kami vivos”, homens eminentes pelo seu saber ou pelo seu poder militar, elevados, após a sua morte, ao nível de divindades, ou então fundadores de movimentos religiosos, venerados em vida como deuses, é a marca de uma mediação necessária entre o mundo dos homens e o dos kami.

As divindades xintoístas são efectivamente forças invisíveis - não há representações antropomórficas antes da chegada do budismo e da sua rica iconografia - que se furtam ao olhar e que possuem ao mesmo tempo um “espírito de violência” e um “espírito de doçura” (…).

(…) A consolidação recíproca das duas religiões permitiu colocar kami e budas ao serviço do Estado. A pouco e pouco, o caminho seguido foi na direcção de um sincretismo xinto-búdico elaborado por monges budistas influentes, com a intenção de associar os dois tipos de divindades, clarificando ao mesmo tempo as relações que as uniam. Este pensamento assimilador (…) pode resumir-se do seguinte modo: divindades búdicas podiam assumir a aparência de divindades xintoístas (…). “Amaterasu O-mikami”, a divindade suprema do xintoísmo, foi naturalmente associada a “Dainichi-nyorai”, símbolo do disco solar e divindade essencial do budismo esotérico (conhecimento, em círculo restrito, do sobrenatural) xingon (…).
                                                                                      
(…) O governo dos “Meiji” (1868) renunciou à edificação de uma “religião nacional”; propôs, mais subtilmente, uma nova separação, desta vez no próprio seio do xintoísmo, que foi reorganizado em torno de duas instituições: o “xintó das seitas” - a sua vertente religiosa - e o “xintó dos santuários” ou “xintó de Estado” - a sua vertente laica.

O primeiro tipo de xintoísmo permitiu pôr em contacto cultos populares e culto imperial (…). O segundo tipo de xintoísmo transformou-se numa religião do dever cívico em que a população japonesa era convidada - em santuários nacionais e através de ritos executados por liturgistas nomeados pelo governo - a participar no culto do imperador. O xintó deixava de ser uma religião. Servia para justificar, tal como o ensino escolar e os seus manuais de educação moral, a descendência divina da casa imperial e a “essência inalterável” da nação japonesa.

(…) O xintoísmo, sob a sua forma popular, perdurou ao longo de toda a história do Japão (…). No coração do processo de “secularização” da sociedade japonesa, a industrialização e a urbanização rápida foram, na verdade, os mais rudes adversários do xintoísmo (…). A religião da aldeia tornou-se uma “religião na cidade” (…).

(…) Mas não deixa de ser verdade que o xintoísmo continua a ser entendido pelos Japoneses como a religião “natural”, a da tradição, sem se notar qualquer consciência de pertencer a uma qualquer “Igreja”: as noções de pureza, de harmonia triangular entre os deuses, os homens e a natureza, a possibilidade de uma comunicação directa com vista a uma protecção e a benefícios na vida sobre a terra, continuam a constituir os seus elementos essenciais (…). As estatísticas religiosas mencionam todos os anos que oitenta milhões de japoneses (numa população de cerca de 124 milhões) vão aos grandes santuários do país na altura das festas do Ano Novo para adquirirem feitiços e amuletos protectores (…).

Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Jean-Pierre Berthon, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

A PENÚRIA E A FARTURA

António Mesquita


"Praticamente, os conhecimentos da Sra. Varian sobre literatura estavam confinados ao 'New York Interviewer'; como ela muito justamente dizia, depois de se ler o 'New York Interviewer', toda a fé na cultura se perde. A sua tendência em relação a isto, era mais precisamente, manter o 'Interviewer' fora do caminho das suas filhas; estava determinada a educá-las correctamente, e elas não liam nada."

"The Portrait of a Lady" (Henry James)




O sentimento de protecção da Senhora Varian em relação às suas filhas faz-me lembrar certas paranóias que associam o sexo e a higiene e cujo objecto é defender-se a si, ou aos mais chegados, das infecções do exterior.

Mas, como é sabido, é essa mesma "protecção" que inibe o organismo de adquirir as suas próprias imunidades, correndo um risco normal nos seus contactos com o mundo.

Os leitores dum único jornal, ou duma única opinião, lêem aquilo de que gostam, mas acabam por não recomendar aos filhos o que lêem, visto que todas as restantes opiniões são apresentadas a uma luz que só favorece a misantropia.

A revolução tecnológica (a única que não tem detractores e nem precisa que se acredite nela, porque é um facto que se mete pelos olhos dentro) dispensou os pais que pensam como a personagem de James de esconder dos filhos o seu jornal favorito. De qualquer modo, já não é espontaneamente (mas foi-o alguma vez?) que estes procuram a leitura.

Contudo, veja-se a que se reduz a "grande diferença" entre as filhas da Sra. Varian que eram dissuadidas de ler e mantidas na "ignorância" e os novos avessos-à-leitura que têm toda a informação possível à sua disposição (se quiserem olhar para um écrã), mas não sabem mais por isso, porque a todos é preciso formar o juízo próprio. A penúria e a fartura têm, neste caso, o mesmíssimo efeito.

AS ROSAS DE MAIO

Alcino Silva



Não nasci em Maio, o mês das rosas, mas renasci em Maio. Talvez por isso, fiz da rosa a minha flor, um símbolo, um afecto.

Foi em Maio, ou mais precisamente às doze e trinta do dia vinte e três de Maio que abriram a porta da minha vida e colocaram uma rosa nos sonhos que habitavam esquecidos no meu olhar.

E desde então, todos os anos, quando chegava aquele dia de Maio, abria-se a porta do meu pensamento e acordava com um beijo e uma rosa no espelho dos meus olhos e sentia umas mãos compondo a flor nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.

Nesse tempo o sol nascia exactamente no meu quarto. Abria a janela. Em frente era o largo, a velha árvore do largo onde habitava o tempo. Quando chegava o mês de Maio, abria a janela e embriagava-me com o cheiro, a primavera, a jardins e à terra molhada pela chuva. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.

E tudo estava certo, nesse tempo, e nada tinha o sabor do irremediável. A ausência, o vazio do sonho que foi, só depois, por muito tempo haveria de ficar ainda desenhada na silhueta dos olhares e no recanto dos jardins, à sombra das magnólias, andando pela casa nos pequenos ruídos da imaginação e pouco a pouco sentando-se nas muitas perdas que viviam na almofada da minha memória.
A partir desse dia de Maio passei a dormir poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para sempre, dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono. Por vezes, tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa parecia querer despedaçar-se e então chamava pelo seu nome, e logo essa voz, tão calma, tão profunda, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas, e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.

Aprendi a sentir a Primavera desembrulhar-se em flores, em cores, em brilho de sol ameno alindando-se para o Verão, em sentir as árvores nessa pulsação de vida que brota em fruto e estendendo as suas copas por espaços maiores que frondosamente haveriam de sobrevoar a terra e sentir também os últimos frios esfumarem-se em nuvens e os degelos derreterem-se em caudais de rios e lagos.

Deixou de haver medo nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono, ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar, e logo uma voz, serena mandava embora os fantasmas. Era a paz nesse tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, mais exactamente, o dia vinte e três de Maio, às doze horas e trinta, abria-se a porta do quarto onde os meus sonhos descansavam, e colocavam um ramo de rosas sobre a minha vida, nesse tempo, em que tudo parecia certo, exacto e imutável e as estações cumpriam o seu rito.

Em Maio de um ano sem nome, estava preso nessas cordas que a vida tece. Era terrível acordar num espaço em que o horizonte terminava no prolongamento do braço. Por vezes, a meio da noite, um grito abalava a estrutura do meu pensamento, da minha vida, e acordava, suado e exausto com o medo a assaltar as muralhas do meu silêncio. Era inútil chamar. Dormia acordado sobre o tempo. Tinha aprendido fisicamente a solidão. Era dolorosa essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, era terrível acordar nessa estreita passagem, tão hostil e dolorosa como o país dos pesadelos.
  
Foi então, nesse ano sem nome, que pela primeira vez, no mês de Maio, mais exactamente no dia vinte e três de Maio, pelas doze horas e trinta, alguém abriu a porta do mundo parado na memória do meu tempo e pousou uma rosa amarela sobre os meus sonhos.

Mas nem sempre as rosas acompanham a eternidade. Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade.


 
Há cerca de trinta anos encontrei duas folhas onde apareciam impressas, em fotocópia, três páginas de um livro. São as páginas, 31, 32 e 33. Desconheço o autor e o nome da obra, apenas sei que é o início de um capítulo com o título Rosas Vermelhas. Guardei-as porque gostei de as ler. Talvez que este desconhecimento me tenha alentado a esta cópia e a este plágio para expressar uma outra ideia. Que o autor me perdoe esta falta. Foi com boa intenção, se é que as boas intenções podem desculpar alguma falta.
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