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01/07/22

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Há nomes que, só por si, identificam um país, uma nação ou um povo, na sua sensibilidade, na sua história, nas suas características mais profundas. Se o nome de Nefertiti, nos conduz de imediato ao longínquo Egipto, a excelsa beleza dessa rainha arrasta-nos para a ideia de que, essa época milenar que existiu nas margens do Nilo era, também ela, sinónimo de uma grandeza equiparada aos traços resplandecentes de «A Bela chegou». Viajando para mais próximo do nosso tempo, o nome de Natacha projecta-nos de imediato para as extensões infinitas das estepes e da taiga que se estendem ao longo de dois continentes num espaço que não sendo infinito é longo e belo. Quer seja, a Natacha de Tolstói (1) ou a Natacha de Dostoievski (2), sentimos como um clamor, um apelo, a mergulhar no território da nação eslava que hoje pulsa ao longo de onze fusos horários. Natacha é quase um símbolo dos eslavos da Rússia, mas não foram apenas os escritores do século XIX que desenharam a Rússia através da imagem de Natacha, pois quase cem anos depois, Gilbert Bécaud não resistiria à sedução de outra Natacha que o cantor francês espalhou afrancesando o nome para Nathalie (3). A Natália Ilinitsna de Tolstói, a jovenzinha condessa dos Rostov que vivia essa idade adolescente em que as palavras entram no ouvido como serpentes encantadas, viveu numa época diferente da Natália Nicolaievna de Dostoievski. A condessinha é de um tempo em que a aristocracia russa saía de um isolamento secular e afirmava a sua grandeza. Pedro tinha catapultado a nação dos eslavos de Leste para territórios imensos. Vencera os suecos de Carlos XII, avançando até à Polónia cujo reino quase desaparecera, libertara o território báltico dos nórdicos, fundara a cidade que haveria, até ao presente, traduzir no oriente da Europa a excelência de estilos arquitectónicos que são um expoente de magnitude e de sedução do olhar e estendera as suas conquistas para Leste. A Natacha que Tolstói construiu é contemporânea de uma nova invasão da terra eslava de novo vinda do ocidente. Entre a guerra e a paz, Natália Ilinitsna vai viver os seus amores de adolescente entre o feitiço de príncipes e condes, entre a riqueza sumptuosa e a que se apresentava arruinada, como a da sua família cuja sobrevivência dependia de um bom casamento, sendo que o bom não tinha de incluir necessariamente o amor, mas sobretudo, o espólio que poderia trazer. A jovem Natacha tinha a sua ternura, a sua beleza, o sorriso com que encantava os seus pretendentes e assim, entre um príncipe que perdeu acabou por ganhar um conde que preenchia as condições que ela desejava e salvariam a família. Com Borodino pelo meio, a mística Moscovo invadida e incendiada, Napoleão perdido no inferno do severo Inverno russo, Natacha terminou numa vivência feliz e amante. A Natália Nicolaievna de Dostoievski chega mais tarde, umas décadas depois. Não tem títulos nobiliárquicos, nem riqueza, é filha de pequenos proprietários de aldeia, gente honesta e está já numa idade adulta após a adolescência e ao contrário dos amores da Natacha de Tolstói, esta Natacha desenvolve uma paixão doentia pelo  filho de um príncipe, um adolescente que não sabe exactamente o que deseja, onde está e qual é o seu papel na sociedade. Naturalmente que no bom estilo romântico, Natália Nicolaievna fica sozinha, sacrifica-se à felicidade dos outros e, mesmo reconhecendo o grande amor do amigo que a ampara, a socorre, que não desiste dela, nunca vai acolher esse amor, preferindo a solidão e a recordação dessa paixão perdida. De certa forma, a Natacha de Dostoievski traduz a Rússia de então, com a aristocracia em declive, encerrando-se nos seus privilégios, muitas vezes arruinada pelas suas extravagâncias, a sua vida vazia e preguiçosa, auferindo rendimentos da exploração de populações aldeãs atrasadas que viviam numa miséria insuportável, numa Rússia que começava a despertar para tempos revolucionários e de mudança. De qualquer forma, ambas as Natachas, traduzem o ambiente tranquilo, alimentado por uma ternura campestre em que o tempo parecia imutável e a que o romantismo literário alindava e aprimorava, através dos seus personagens. Sobretudo, a Natacha de Tolstói vai cativar-nos para a vivência dos eslavos na profundidade do território que habitam. E ainda hoje, seja nas margens geladas do Árctico, nas montanhas do Daguestão, na estepe do Tartaristão, na cordilheira do Altái ou nas terras virgens de Kamchatka, encontraremos sempre uma Natacha, símbolo do que se convencionou chamar, a alma russa, que é esse caminhar pela história de um povo que se move pacientemente pelas longas estepes ocidentais do seu espaço territorial ou pela solidão da taiga siberiana, que se fundiu e convive com os autóctones polares ou com os turcomanos do Sul. Secularmente invadido, resistiu à avalanche tártaro-mongol, às estravagâncias imperiais de Napoleão e às bestiais hordas nazis e as Natachas que continuamos a poder encontrar nessa imensidão terrena, insistem em simbolizar o enternecimento, a candura desses eslavos que abraçam metade do planeta, como o comprovou Bécaud com a sua Nathalie, num tempo que mediou entre a esperança do futuro e a incerteza do presente. Não chegou à intimidade de lhe chamar Natacha, mas o Nathalie francês dá-lhe a mesma graça e encanto. No final de uma das suas obras literárias (4), Dostoievski coloca um discurso de esperança, através do narrador, no futuro do personagem central cuja vida se desenrolou entre o drama e a tragédia, muito característico destes eslavos, uma esperança que bem pode ser o que desejamos para o tempo que nos é dado viver.


(1) Liev Tolstoi, “Guerra e Paz”, 2 Vols., Editora Arcádia, Lisboa, 1969
(2) Fiodor Dostoievski, “Humilhados e Ofendidos”, Círculo de Leitores, Lisboa, 1978
(3) https://www.youtube.com/watch?v=TilQ8BIHisw
(4) Fiodor Dostoievski, “Crime e Castigo”, Editorial Presença, Lisboa, Novembro de 2007







Após o bombardeamento da televisão sérvia pela NATO, em 1999, a destruição do edifício da Associated Press em Gaza pelo exército Judeu em 2021 e o silêncio ensurdecedor em torno, da prisão que vai em dez anos de Julian Assange, do bestial assassínio do jornalista Jamal Khashoggi, do fuzilamento pelo exército judeu da jornalista palestina Shireen Abu Akleh, da prisão do jornalista espanhol Pablo González que apodrece há cinco meses sem culpa formada nas prisões polacas, e da condenação a três anos de prisão de uma jornalista alemã, por fazer reportagens da guerra da Ucrânia que contrariavam a versão do governo, bem podemos dizer que a liberdade de expressão se transformou naquilo que sempre foi, um grande mito.

Carmo Afonso escreveu numa das suas crónicas no Público que a Comissão Europeia se colocou no âmbito do crime ao proibir a emissão dos canais russos, RT e Sputnik. Não se colocou apenas no âmbito do crime, escreveu uma das páginas mais negras do livro da infâmia.


PARA DEBAIXO DO TAPETE

Manuel Joaquim





Todos os dias somos metralhados com notícias que nos incapacitam de as compreender racionalmente. Somos arrastados para as aceitar de forma emocional.
Notícias que me chamaram a atenção são sobre o problema da inflação que não são muito mediatizadas pela sua aparente complexidade, a não ser a “boca” do Primeiro-Ministro de aumentar o salário médio em 20% nos próximos quatro anos. A inflação é um assunto de particular importância para todos os trabalhadores e população em geral, pela desvalorização dos salários reais, pensões e rendimentos e aumento do desemprego.

Nos anos setenta do século passado o problema da inflação era discutido profundamente pelo movimento sindical da época por causa das negociações dos contratos colectivos de trabalho e actualização das respectivas tabelas salariais.
O Sindicato de Seguros do Norte fez assembleias gerais e grandes debates sobre o tema. O Sindicato tinha como consultor económico o Professor Armando de Castro que tinha publicado em 1970, nas Edições 70, o livro “O que é a InflaçãoPorque sobem os preços” que esgotou rapidamente. Realizou então uma conferência/debate nas suas instalações na Rua do Breiner, no Porto, com a presença de largas centenas de trabalhadores de seguros que encheram os espaços até à porta da rua que acompanharam os trabalhos pela instalação sonora. O Sindicato deu notícias sobre esta iniciativa a todos os trabalhadores através de um grande comunicado.

As autoridades dos Estados Unidos e da União Europeia andam numa roda-viva para encontrar respostas para evitar a subida da inflação. Na EU decidem deixar de comprar dívida pública aos países e poucas horas depois alteram as suas decisões. Os USA aumentam as taxas de juro com todas as consequências e a EU vai atrás. Christina Lagarde, do BCE, diz que não vê retoma ao fundo da inflação. O que se vê é o dólar a comer o euro e os salários reais a caírem. E não se vê notícias sobre a iminência de intervenção em dois bancos italianos que estão falidos, provavelmente por decoro.

Óscar Afonso, professor da Faculdade de Economia da UP, publicou um artigo muito curioso no Dinheiro Vivo, no passado dia 18 do corrente, com o título “Engane-nos que gostamos” referindo-se à promessa (para não cumprir) do Primeiro-Ministro de aumentar o salário médio em 20% nos próximos quatro anos, que passo a transcrever parcialmente: Quando as exportações são consecutivamente inferiores às importações, o país vive acima das suas possibilidades, pelo que vai acumulando desequilíbrios - interpretem-se estes desequilíbrios como uma espécie de “lixo”. Tradicionalmente, em Portugal, esses desequilíbrios vão sendo escondidos, “varrendo-se para baixo do tapete”, até que a acumulação por “baixo do tapete” é tão intensa que, na sequência de uma crise internacional; i.e., de uma “ventania”, o “lixo” fica todo descoberto. Foi assim em 1977 e em 1983 na sequência dos denominados choques de alta do petróleo dos anos 70. Voltou a ser assim em 2011 na sequência da crise financeira de 2008.

Na posse do instrumento taxa de câmbio, em 1977 e 1983, a competitividade da economia portuguesa foi reposta com a desvalorização da moeda. Sem instrumento taxa de câmbio e sem capacidade do país para melhorar a produtividade, em 2011, a competitividade da economia portuguesa foi restituída com a diminuição dos salários.

De acordo com a Pordata , as exportações suplantaram as importações entre 2012 e 2019, retomando, posteriormente, o indesejado contexto de exportações bastante inferiores às importações. Ou seja, retornámos à trajetória de acumulação de desequilíbrios (“lixo”) acentuados, com o país a viver de novo acima das possibilidades.”

É interessante verificar que crises anteriores foram ultrapassadas com política monetária, isto é, com a desvalorização do escudo (antes de entrada do euro). A última crise foi ultrapassada com a desvalorização salarial, os cortes em subsídios e pensões, no aumento do desemprego.

Durante o último governo, conhecido por “geringonça”, uma parte da crise foi ultrapassada pelo aumento dos rendimentos dos trabalhadores e pensionistas que levaram a um aumento do consumo interno com efeitos directos na economia.

Perante o quadro económico em desenvolvimento o problema do euro vai colocar-se novamente.

Para o rumo traçado, os patrões do António Costa já vieram avisar “não ao aumento dos salários e pensões” sob pena de ser despedido. E a inflação em Portugal no mês de Junho já chegou aos 8,7%.

Os “inteligentes” destas coisas fazem conferências, seminários, publicam trabalhos mas as ideias que defendem são a maior parte das vezes contraditórias. Não têm soluções para o problema. Alguns pretendem desculpar-se com o prolema da guerra. Mas quem estiver atento verifica que a inflação tem crescido nos mercados de produtos e matérias-primas muito antes da guerra. Que políticas foram adoptadas nos últimos anos? Qual é o crescimento da oferta de dinheiro nos USA e EU? Segundo a ONU em Fevereiro de 2022 o índice de preços dos alimentos era 50% maior do que em Maio de 2020; no mesmo período, duplicou o índice composto de matérias-primas. Que consequências tem a política energética da EU? O preço da energia aumentou antes de 2022. Os fertilizantes aumentaram mais de 70% entre Fevereiro de 2021 e Fevereiro de 2022.

A solução será cortar salários, pensões, rendimentos ou encontrar novas políticas que respondam aos problemas dos mais carenciados?



A MÁQUINA COM ALMA

António Mesquita




"A minha imaginação não é tão perversa que seja capaz de inventar as situações que estão no filme. E uma coisa lhe posso dizer. Em todos estes três filmes com temática social de que estamos a falar, as histórias estão sistematicamente abaixo das que me contaram. Sempre. Se não o fizesse, a ficção pareceria grotesca. - ”Algum dia as vai pôr em cinema? - “Não sei. Se o fizer, o filme vai ter que ser uma espécie de comédia. Negra, cínica, completamente verdadeira, mas que vai parecer falsa.”

(Entrevista de Stéphane Brizé)

"Um Outro Mundo" de Stéphane Brizé relata os problemas dum gestor do topo, Philippe Lemesle, interpretado visceralmente por Vincent Lindon. Philippe é um homem honesto que acredita no que faz. Não é prepotente, nem um pau-mandado acéfalo do patrão americano que diz que também ele tem um patrão que é... Wall Street. Mas a pressão para o rendimento e a redução dos custos faz-lhe a vida negra e arruina a sua vida familiar. Em piores lençóis, ainda, porque não tem a expectativa revolucionária, que Engels que se lamenta ao seu melhor amigo (carta de 27 de abril de 1867), "nada que deseje mais do que poder escapar deste comércio miserável, que me está desmoralizando completamente pelo tempo que me faz perder. Enquanto permanecer neste mundo não poderei fazer nada; e o facto de me ter convertido em um dos directores da empresa vai piorar muito mais a minha situação devido ao aumento das responsabilidades."

O filme começa com uma cena de divórcio. A sua mulher Anne, resolveu acabar com uma situação intolerável. Mas hesita, porque não estão em causa os sentimentos e os advogados depressa reduzem a questão à indemnização e ao dinheiro.

O cargo de Philippe exige também que dê a face junto dos trabalhadores pelas medidas que a empresa e a sua direcção querem ver implementadas, medidas dolorosas e mesmo incompreensíveis, a não ser dum ponto de vista estratégico que é, putativamente, o do interesse dos accionistas. O "boss", nos States, explica que estes esperam de toda a cadeia de comando uma espécie de coragem que é a de cumprirem ordens mesmo contra a sua vontade (e, compreende-se, até contra a sua consciência). Philippe que tinha contraproposto ao licenciamento de operários, indispensáveis, na sua opinião, uma redução dos bónus de gestão, viu-se ele próprio despedido, não sem o confrontarem com uma alternativa insultuosa: a de denunciar um outro colega como responsável da "rebelião".

Phillippe vai para a rua, ao reencontro da mulher que nunca quis de facto separar-se dele. Uma cena eloquente é a da venda do apartamento em que os comentários do casal comprador, eufóricos com a nova casa, flutuam à volta dum grande plano do rosto acabrunhado de Philippe.

Neste filme, Brizé faz uma análise que não é a da "luta de classes", mas duma "máquina com alma", em que a "exploração" não é económica, a apropriação não é a da "mais-valia", em que o indivíduo é como que esmagado numa engrenagem anónima em que os valores nem são já os da eficácia remuneradora dos detentores do poder, seja ele o do capital ou do estado, ou da intermediação proliferante, mas o não-valor duma lógica e dum algoritmo duma sociedade-Bolsa, sistema que tem a sua fauna e os seus "entendidos", e que ignoram tudo de tudo.

A desumanização deste sistema só encontra uma aproximação definidora na expressão de Arendt de "banalidade do mal". Um anonimato da violência e uma ausência de pensamento que ninguém expressou melhor do que a filósofa da "Condição Humana".

A entrevista de Brizé coloca ainda outro problema interessantíssimo. A das condições de transmissão da verdade. O simples desejo de ser fiel aos factos pode deturpar a realidade e ficar aquém da comunicação. Brizé fala no aspecto grotesco que a verdadeira violência, a realidade tal qual, assumiriam num filme que não as convertesse em arte, neste caso, em arte do cinema, em ficção mais verdadeira, afinal, do que a crueza dos factos.

E que outro mundo é este? Um mundo em que os Philippe Lemesle fossem a norma dos cidadãos, em que as mulheres tivessem sempre como Anne, a coragem de romper com o absurdo e a violência, mesmo sem a ideia dum mundo melhor? Ou o outro mundo é o que não sabemos (nem queremos saber, para proteger o nosso conforto e as nossas ilusões) da nossa e da vida dos outros, da engrenagem em que uns e outros podem ser "competentes" sem, no fundo, compreenderem o que se passa? Como diz Dennett (*), "Para fazer uma perfeita e belíssima máquina de cálculo não é necessário conhecer a aritmética. O que quer que seja que Darwin ou Turing tenham descoberto, cada um a seu modo, foi a existência duma "competência sem compreensão."

*(Daniel Dennett; "La rivoluzione silente di Alan Turing", il Sole 24 ore)

REALPOLITIK

Mário Martins

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O conceito de “Realpolitik” significa uma “política externa baseada em avaliações de poder e interesse nacional”.
Henry Kissinger, 1994
Wikipédia

Para o antigo chefe da diplomacia norte-americana (hoje com uma idade acima de toda a suspeita) a guerra (entre a Rússia e a Ucrânia) deve ter um fim rápido e a Ucrânia deve ceder território para que seja alcançado um acordo de paz que, "idealmente, deve ter como linha divisória o regresso ao status quo que existia".

"Prolongar e insistir na guerra muito mais tempo levará a que passe a ser não uma questão de liberdade da Ucrânia, mas sim uma nova guerra contra a própria Rússia", defende Kissinger, sublinhando que o Ocidente não pode esquecer a importância de Moscovo no equilíbrio de poder na Europa e no Mundo, e que a Ucrânia deve desempenhar o papel de Estado neutral, independente, não devendo ser a fronteira da Europa.
Diário de Notícias, 24Maio2022

Alguns meses antes do início da guerra, conheci um chefe de Estado, um homem sábio, que me disse que estava muito preocupado com a forma como a Nato se estava a mover: ‘Eles estão a ladrar às portas da Rússia. E não compreendem que os russos são imperiais e não permitem que nenhuma potência estrangeira se aproxime deles. Esta situação poderá levar à guerra’. Aquele chefe de Estado foi capaz de ler os sinais do que estava para acontecer".
Papa Francisco
Semanário Sol, 14Jun2022

Este autêntico “balde de água fria” lançado por uma voz senatorial e experimentada, embora não isenta de mancha indelével na sua passagem pelo poder nos anos setenta, lembra, de uma forma crua e contra a corrente, aos líderes e à opinião pública do Ocidente, que a censurável invasão de um país soberano por outro, com o seu cortejo de sofrimento e destruição, sem uma razão de legítima defesa, não pode ser vista da mesma maneira quando o invasor é uma superpotência. O restrito clube das superpotências militares e nucleares goza do privilégio de repartir o mundo em esferas de influência (com a consequente limitação da soberania dos países geograficamente situados em cada esfera), assim equilibrando, nas palavras de Kissinger, o poder na Europa e no Mundo.

No caso russo, no entanto, a sua capacidade militar convencional tem sido, para surpresa de quase toda a gente, posta em xeque, em primeiro lugar, pelo heroísmo e moral do país invadido, mas também pelo armamento crescentemente fornecido pelo Ocidente, com os inevitáveis Estados Unidos à cabeça. Assiste-se, assim, a uma sobreposição de duas guerras, uma, directamente provocada pela agressão a um país soberano, e outra, desencadeada na sequência daquela, entre o bloco político ocidental e a superpotência russa, numa chamada “guerra de procuração” às claras.

Em todos os domínios das relações humanas, na guerra como na paz, há uma constante tensão entre o dever filosófico e as acções e omissões praticadas. Filosoficamente, para não falar de um direito internacional desacreditado, é indefensável que, mercê do seu estatuto de superpotência, haja países com prerrogativas especiais. Tal como é injustificável a ideológica superioridade de alguns povos sobre os demais. Sendo, a esta luz, indesculpáveis, a agressão russa a um país soberano e o sofrimento causado ao povo ucraniano que, inevitavelmente, alimentam a identidade nacional do país invadido e o ódio ao invasor.

Mas em termos estritos do xadrez geopolítico mundial, a invasão, embora brutal, é uma jogada típica de quem pretende reafirmar o seu estatuto de superpotência, mau grado, do ponto de vista geoestratégico, o “tiro tenha saído pela culatra”, com a quebra da neutralidade e o pedido de adesão à Nato da vizinha Finlândia e da Suécia.

Há quem veja nesta “realpolitik” de contemporização com a Rússia, defendida por Kissinger, o fantasma do acordo de Munique, assinado em 30 de Setembro de 1938, pelos líderes das maiores potências europeias à época: Inglaterra, França, Itália e Alemanha, esta já governada pelo partido nazi. Esse acordo concedia à Alemanha uma parte (a região dos Sudetas) do recém-criado estado da Checoslováquia, e o controle efectivo do resto do restante território, desde que Hitler prometesse que esta seria a última reivindicação territorial da Alemanha. Acordo que motivou a célebre acusação de Churchill ao negociador inglês Chamberlain: "Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra, e terás a guerra”. Poucos meses depois a Alemanha invadia toda a Checoslováquia (Wikipédia).

A “guerra fria” assente na dissuasão nuclear, cuja temperatura baixou com o colapso soviético, voltou a aquecer com a expansão da Nato e a crescente afirmação chinesa, e está agora ao rubro com a agressão russa à Ucrânia e a consequente desestabilização báltica.

Até onde, enfim, nos conduzirá a loucura humana?


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