StatCounter

View My Stats

01/06/18

131


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Há lugares que não esquecemos, espaços terrenos onde deixamos o olhar definitivo, locais onde a memória percorre os dias da alegria e os nossos passos são caminhos que nos levam sempre para além de nós na procura do outro. A beleza não se instala, ela é o lugar que encontramos. Estes sítios da vida são tantas vezes de silêncio, da fuga ao ruído dos sons, a solidão elevada a instantes de reflexão. A primeira vez que chegamos, acolhe-nos o espanto. A fotografia que nos cativara estava aquém da realidade encontrada. O vale estreito mais parecia um abraço entre duas colinas em que a terra e as rochas se comprimiram para que os corpos materiais se auscultassem. As pedras trabalhadas eram quase todas ruínas, restos olvidados de um tempo que não regressava, os pequenos muros pela montanha acima mostravam um tempo de cansaços, a madeira que unia dois lados inseparáveis, gasta pelos séculos, e as cores variavam entre castanhos e cinzentos, mas o verde e o azul eram o centro daquele pequeno mundo. Uma melodia deslizava, entre um estreito canal gravado profundamente no chão pelo escavar da longevidade e, quase subitamente, precipitava-se no abismo. Foi ali que reconstruí o tempo, a doçura da vida humana e na ternura dos recantos encontrei os teus olhos ávidos de viagem. Com eles segui, quase sempre clandestino e aprendi a desfolhar o teu corpo como se lesse o livro mais antigo da biblioteca que ali existiu. A cada manhã que nascia lia uma página de ti e nas margens, a alma aberta deixava apontamentos dos voos que contigo sonhara, e a cada epílogo, recomeçava nova leitura e novos apontamentos fazia. Escrevia a lápis, e num desses momentos de escrita, saíste do livro como quem nasce e foi o tempo de percorrermos as veredas daquele lugar concebido para amar, Deus e a Humanidade, mas com os meus anseios só a ti amava, como símbolo da pureza que tanto desejava. No dia seguinte, sentado na mesma pedra, abria de novo o livro e voltava a viver a aventura de te conhecer. Escrever nas margens era como percorrer o corpo que respirava em cada palavra que lia e desenhava vontades e desejos que não alcançaria. Também ergui muros, muralhas, castelos, perdi-me em cada caminho que os meus dedos esboçavam sobre a leveza da pele que te cobria, recitei poesia com a música do pequeno rio que nos separava. No dia em que por fim devolvi o livro à biblioteca, nasceram as ruínas, o desabar das construções quiméricas, o lento desgastar da memória que o vento erode sem descanso nem medo e deixei-me levar por aquela corrente que tomba da altura a que só as águias ascendem e que se transforma na espuma que vemos e de onde renasce a água que dá vida e alento ao sonho humano. Inicialmente, custou-me a adaptar-me aquele mundo de silêncio e da solidão rodeada de seres que não falavam, até encontrar o livro em que vivias, mas o regresso, o retornar ao mundo exterior à limpidez do lugar onde te encontrara, “pareceu, em contraste, um inferno de ruído e vulgaridade.” (1)


(1) – Patrick Leigh Fermor em “Tempo de silêncio”, Tinta-da-China, 1ª edição, Lisboa, Abril de 2018

Mergulho neste sol com a ânsia primaveril da infância. Um rosto habita a imaginação que me leva. O manto brilhante de um sorriso inunda-me o pensamento e purifica-me a alma. Um corpo inteiro povoa os meus dias com o aroma das manhãs sem tempo. Já não sou e ainda não fui, navego o presente como se fosse tudo. A saudade é uma dor e uma perda, também já foi girândola de fogo em noites sem luz. Havia uma rainha, uma deusa, coroando os meus sonhos, era uma dádiva, nos dias perfeitos. Procuro um porto, um destino, e só encontro infinitos.

Continuamos impávidos e serenos a assistir ao holocausto palestiniano e como de massacre em massacre o Estado Judeu prossegue impune na senda do crime.
  

MEMÓRIAS DE UMA FALSIFICADORA

Manuel Joaquim




No passado dia 25 de Maio, na Universidade Popular do Porto, foi apresentado o livro “Memórias de uma Falsificadora, a Luta na Clandestinidade pela Liberdade em Portugal”, de Margarida Tengarrinha. Para além da autora, estiveram presentes o Professor Doutor Manuel Loff, Historiador no Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto e Investigador no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa; o Doutor Silvestre Lacerda, Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e o Editor da Edições Colibri, Fernando Mão de Ferro.

Os espaços da UPP foram pequenos para tanta gente, apesar das intervenções serem transmitidas por vídeo para outra sala. Gente que já não via há muitos anos, gente que não me lembro de ter visto, gente que não contava ver. 

Manuel Loff, que prefaciou o livro evidenciando a vida política e clandestina da autora, hoje com 90 anos de idade, que foi companheira de José Dias Coelho, assassinado em 19 de Dezembro de 1961, pelo PIDE António Domingos, que tinha como chefe de brigada José Gonçalves, cuja morte foi cantada por Zeca Afonso - “A morte saiu à Rua” – baseando-se no que tinha escrito no Prefácio, enriqueceu com as suas sabedoras palavras determinados episódios da vida de Margarida Tengarrinha que se confundem com a História do PCP, com a luta de tanta gente que anonimamente lutou contra o fascismo e que, dessa forma, abriu o caminho para o 25 de Abril de 1974.

O livro de Margarida Tengarrinha, é uma obra exemplar de recordações e de factos históricos mal conhecidos que são necessários enquadrar na História de Portugal. Sem esse enquadramento não se pode conhecer a História do século XX. 

Margarida Tengarrinha, no capítulo “Quarenta mil pessoas contra a carestia da vida e as guerras coloniais”, refere-se à organização da manifestação realizada na baixa do Porto em 15 de Abril de 1972, contra a carestia. 

Recordo-me que o Sindicato dos Seguros do Norte realizou um colóquio sobre o tema “O que é a Inflação?” com o Professor Armando Castro, que teve uma participação muito grande de profissionais de seguros.

Recordo-me de ter participado nessa manifestação, que teve intervenção policial muito violenta, onde um colega de trabalho da Mutual, o Mesquita, foi barbaramente espancado antes e depois de estar estendido, inanimado, na valeta da rua junto à estátua do cavalo. Tive oportunidade de fotografar o espancamento do Mesquita e diversas passagens da manifestação, a partir de um terceiro andar da Rua do Almada, por cima da Ateneia, pensão de um colega do ISCAP, trabalhador bancário. Mais tarde, o rolo fotográfico foi-me pedido pelo António Mesquita a quem o entreguei.

Margarida Tengarrinha, no capítulo “Presos que fogem não aceitam grades” descreve passos da vida de Francisco Miguel. Esteve “ preso mais de vinte anos, percorrido todos os cárceres fascistas e fora o último preso político a sair do Campo de Concentração do Tarrafal, onde permanecera vários meses completamente só”. “Poucos camaradas terão experimentado, como ele, todos os tipos de tortura desde os espancamentos mais brutais à “frigideira” do Tarrafal, desde os “curros” do Aljube à estátua e à tortura do sono na sede da PIDE na rua António Maria Cardoso, onde tinha passado cerca de um mês na tortura do sono….”. Refere que “Foi o preso político que maior número de vezes fugiu das prisões em Portugal (e talvez no mundo), pois somou um total de quatro fugas das cárceres fascistas.”

Conheci Margarida Tengarrinha pouco tempo após o 25 de Abril de 1974. E conheci o Francisco Miguel no dia 28 de Setembro de 1974. Nesse dia, Eu, o Francisco Miguel e a Margarida Tengarrinha participámos numa sessão de esclarecimento político com jovens, que teve de ser interrompida pelos acontecimentos que estavam a ocorrer no País. 

Recordo-me de um dirigente do meu Sindicato ter ido a Lisboa tratar de um assunto qualquer à sede do PCP. A pessoa que estava de serviço à porta era o Francisco Miguel. Ficou espantado. Como era possível um alto dirigente do PCP ter como tarefa, além de outras, a portaria. No Porto manifestou esse espanto. 

Margarida Tengarrinha e Francisco Miguel são heróis da História de Portugal.

OPINIÃO

Mário Faria




Segui com atenção o debate sobre o direito à morte medicamente assistida, ou seja sobre o direito ao exercício da eutanásia, segundo as condições legislativas a aprovar. O assunto é complicado porque mexe com os valores (e a consciência) de cada um. Mas, percebo melhor as divergências profundas mais ou menos fundadas em ortodoxias religiosas do que as que decorreram da fundamentação do PCP para se opor à sua aprovação. Ouvi a longa intervenção que me pareceu demasiado rebuscada. A argumentação do primado à vida para combater o aborto, não é substancialmente diferente do que a direita usou agora. É provável que nos países em que a eutanásia está legalizada nem tudo tenha corrido bem, mas isso na minha opinião seria e será inevitável. Tal como a despenalização do aborto que poderá ter provocado alguns efeitos negativos, nomeadamente na vertiginosa quebra de nascimentos no nosso país. Por outro lado, defender que os cuidados paliativos vão chegar a todos os homens e mulheres deles necessitados e que o SNS vai ter todos os meios indispensáveis para cobrir todas as necessidades é uma falácia. Mas ainda que fosse assim, o direito à morte medicamente assistida deve cobrir situações limite: as que criam um sofrimento brutal e sem tréguas, acima do que é humanamente suportável. Nessas circunstâncias, a vontade de viver morre no corpo e sobra a humilhação: o homem que já fora tornou-se um ser sem alma porque a dor a consumiu. A brutalidade da situação, sentida e percebida no seu ponto máximo e sem quaisquer condições de retorno, reclama por piedade. E sim, às vezes são precisas “ajudas” para o pequeno salto para a eternidade. Esse passo tem de ser muito bem articulado e fundamentado. Mas é por aí que devemos caminhar, sabendo que nessas circunstâncias não há soluções perfeitas. Este é um tema fraturante e muito pessoal, mas não entendo que o PCP tenha tido uma intervenção tão “doutrinária” neste debate, muito próxima do que teve o CDS: juntos no voto e na obediência partidária. Foi clara a fratura com o Bloco, e a crispação entre as partes tem aumentado significativamente, desde as últimas eleições autárquicas. Não é grave nem invulgar a rivalidade entre partidos do mesmo espaço político, mas a forma como o PCP e o Bloco dirimiram as suas diferenças foi lamentável. O primeiro porque tratou o tema ao ritmo constitucional, num tom demasiado conservador para o meu gosto, o segundo porque se pôs no pedestal e tratou da coisa de uma forma arrogante, especialmente em relação ao PCP. Reduzir a alternativa ao direito à morte medicamente assistida através da extensão dos cuidados paliativos, continuados ou domiciliários é uma falácia porque há situações limite que reclamam uma atitude que encontre a vontade superior do doente, depois de convocada a legislação aprovada. O sofrimento dói de caraças. O sofrimento insuportável é o grau limite da capacidade de resistência. Pedir ajuda nessas circunstâncias deve ser respeitada e aplicada, conforme a lei. Quem tem um quadro familiar amigo, responsável e de confiança, saberá que pode contar com a ajuda a caminho da eutanásia se for caso disso ou, em alternativa, saberá procederá a aconselhamentos para que essa bomba atómica seja evitada ou nem sequer considerada. A vida sem vida não é vida. E não serve a ninguém. E, por isso, votarei favoravelmente o direito à morte medicamente assistida, se tiver oportunidade disso.


POLÍTICA DOMÉSTICA

Mário Martins



Por entre a algazarra suscitada pelo processo Sócrates – em que se misturam os factos e os crimes graves imputados pela acusação pública, a vida (“à grande e à francesa”) suportada pelos créditos de um amigo, como alega a defesa, a reclamação do respeito pelas regras de um estado de direito, nomeadamente a da presunção de inocência, e o julgamento na praça pública, a que se juntou agora o caso do ex-ministro Pinho (o tal que um belo dia fez “corninhos” no parlamento), que obrigou o partido socialista a “descobrir” que, para lá dos processos judiciais em curso, há uma evidente dimensão política a que não pode furtar-se - no meio dessa vozearia que faz a espuma dos dias e o maná dos canais informativos, perfilam-se dois assuntos políticos muito sérios: o modelo do serviço nacional de saúde e a sustentabilidade da segurança social.

Há poucas semanas o jornal Público dava conta de que o partido social-democrata estaria a desenhar um modelo alternativo do serviço nacional de saúde, inspirado no sistema da ADSE que serve os funcionários públicos; e que o partido socialista confiara à Drª. Maria de Belém, a liderança de uma comissão de estudo de uma nova lei de bases da saúde, tendo aquela ex-ministra da saúde e “actual consultora do grupo privado Luz Saúde”, já manifestado a necessidade de um acordo político “ao centro” nesta matéria. A ADSE é financiada pelas contribuições dos funcionários públicos, suportadas quer no activo quer na reforma, e constitui uma importante, se não a principal, fonte de receita dos hospitais privados. Ora, para além da relevância da negociação das tabelas de pagamentos da ADSE aos hospitais, é conhecida a atitude destes em procurar induzir ao internamento e de esticar o respectivo período de duração, e ouve-se o escandaloso rumor de uma parte da remuneração dos médicos se basear na quantidade de exames que prescrevam. A ser verdadeira esta forma de remuneração e se for uma prática generalizada, esperemos que, dadas as dificuldades financeiras, os hospitais públicos não remunerem os médicos em função dos exames que deixem de prescrever…

Já o discurso dominante sobre a segurança social alega que esta não é sustentável devido a factores objectivos como a crescente duração da média de vida na reforma e o envelhecimento da população; daí que se atrase, cada vez mais, a idade de entrada na reforma, solução que, no entanto, não se poderá usar indefinidamente, uma vez que quanto mais velhos formos menos aptos estaremos para o trabalho, se trabalho houver… Outra abordagem é considerar que o “insustentável” peso da segurança social é devido à sua antiquada forma de financiamento, assente nas contribuições sobre os salários. Para não falar das dívidas à segurança social ou da evasão contributiva, se a massa salarial global é insuficiente, por via do desemprego (gerado pelas crises e pela incessante substituição tecnológica do trabalho humano) e da estagnação dos salários, então há que estabelecer outras formas de financiamento, alternativas ou complementares, assentes no princípio da responsabilidade social. 

Depois dos estudos vão ter que ser feitas opções políticas.

PRESENÇA TUTELAR

António Mesquita
"O pecado mora ao lado" (1955-Billy Wilder)




"Arendt era para ela uma referência intelectual permanente, uma via que lhe permitia penetrar na cultura europeia, uma presença tutelar, por vezes maternal, revestindo-se de um olhar de censura. É significativa a revelação de McCarthy na carta de 8 de Dezembro de 1954, na qual confessa sentir o peso da presença de Arendt enquanto escreve algumas cenas de sexo e de sedução no seu romance 'A Charmed Life'."

"Nas teias de uma amizade: Hannah Arendt e Mary McCarthy" (Maria Luísa Ribeiro Ferreira)

Pergunto-me se alguma vez se poderá descrever o que nos põe fora de nós mesmos, como os transportes de amor ou as guinadas com que o segundo cavalo de Platão põe à prova a firmeza da nossa mão, sem uma "presença tutelar", a que podemos chamar também consciência ou super-ego, mas que é muitas vezes, simplesmente, uma pessoa que admiramos, normalmente mais velha.

Sinal, por um lado, que o sexo (mas não só o sexo) não pode ser "libertado" (Eros era, afinal, um deus menor, se bem que poderoso) e que mesmo antes da moral cristã e do puritanismo vitoriano ou outro existia, na Antiguidade, um limite chamado pudor.

E, por outro, que a pornografia não é a ultrapassagem desse limite, mas outra coisa. A sua natureza é a duma destruição da linguagem (esse podia, aliás, ser o critério para a distinguir do erotismo).

A "presença tutelar", sob qualquer das suas formas, é justamente o que liberta a linguagem. Nunca somos mais imaginativos como quando temos de contornar uma regra. Veja-se a maravilha daquela cena de "The seven year itch".
View My Stats