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01/12/14

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DESENRAIZAMENTO

António Mesquita

paginaliterariadoporto.com

 

"As pessoas são educadas no estilo vitoriano e não começam a transgredir, porque é muito perigoso. Não tem nada a ver com o bem ou o mal, é perigoso, é uma traição à linha da educação, que pode dar péssimos resultados, desajustes,doenças. Pode-se ficar com um eczema terrível. Devemos ter fidelidade à linha da educação porque toda a conversão é perigosa. Justamente, o que está a acontecer nos países de Leste é perigoso, porque é uma conversão."

(Agustina Bessa-Luís, em entrevista a Clara Ferreira Alves, em 1989)


Quem é que deseja a conversão? No fundo ninguém. Ninguém quer perder a alma, ou o que isso ainda quer dizer hoje, mesmo para um 'ateu'.

A conversão é o resultado de uma crise profunda, dolorosa, que nos aliena o nosso próprio passado. Quando os evangelhos se referem a Saulo, perseguidor de cristãos, assinalam a sua conversão com a espectacular queda de um cavalo e com a troca do S pelo P (Paulo). É preciso começar uma nova vida sobre os escombros e o esconjuro da história individual.

O esconjuro não é uma crítica que vise uma qualquer superação dialéctica. Interioriza-se a negação do outro, do que é diferente de nós, e atinge-se um grande potencial 'energético' porque, com isso, também temos de negar parte de nós. É esse o dinamite que os EIs recrutam no Ocidente...

O 'vira-casacas' é desprezado, principalmente, quando tem de ganhar a confiança dos seus novos aliados, com ataques ao seu próprio passado. Os antigos companheiros têm de ser desentranhados como o 'alien' da barriga de Sigourney Weaver.

Agustina diz bem que as conversões como as que aconteceram na Europa do Leste são perigosas. Homens esvaziados do seu 'estilo de vida', adoptam todas as 'virtudes' do novo estilo, como se aprendessem uma nova língua. E o perigo disso é o desenraizamento e a superficialidade.

 

 

 

PAPA E BIG BANG

Mário Martins

 
Georges Lemaître
(http://image2.findagrave.com/photos/2012/143/39553567_133779373716.jpg)


"O Big Bang, que é designado como a origem do mundo, não contradiz o acto divino da criação. Em vez disso, exige-o".

Papa Francisco, num discurso na Academia de Ciências Pontifícia (Jornal Público, 28Out2014)


Há muito que a ciência deu, sem querer, à religião, no caso, à Igreja Católica Romana, a oportunidade de se actualizar, sem perder o pé, isto é, de poder basear a crença no divino não apenas na tradição bíblica, de ordemmitológica, mas também na razão. A teoria científica, já clássica, do big bang, (curiosamente proposta, em 1927,pelo padre e cosmólogo belga Georges Lemaître), quer dizer, da grande explosão primordial que deu origem ao universo há cerca de 14.000 milhões de anos, estava mesmo a pedir a conclusão lógica do Papa Francisco, feita, aliás, na esteira de anteriores declarações papais. É certo que o Sumo Pontífice evitou os terrenos mais movediços, para a ciência e para a igreja, da teoria do multiverso, defendida por algumas correntes da física teórica. Por esta teoria, sem evidência experimental, "deve haver um número infinito (sublinhado meu) de universos paralelos que entraram em decoerência uns com os outros"*, hipótese que tira o divino de fora do "mundo"(na expressão papal) para o colocar dentro dele. Numa abordagem racional do divino, este é puramente abstracto, no sentido em que é imaterial e desprovido de valores, o que não impede de ser logicamente necessário para explicar as hipóteses auto-explicativas, porque sem causa, do big bang ou do multiverso. É claro que podemoscolocar a natureza (no sentido de processo natural da existência) no lugar do divino, mas tal operação torna, a meu ver, equivalentes os dois conceitos. A natureza, enquanto todo do qual fazem parte os observadores que nós somos, é um dado que nenhuma disciplina pode explicar. Em última análise, vamos actualizando, através da ciência, o conhecimento que podemos ter do universo, descobrindo padrões de funcionamento a que chamamos leis, mas este continuará a pesar sobre as nossas cabeças como uma entidade absolutamente estranha.


*Michio Kaku, in "Mundos Paralelos", Editorial Bizâncio


UMA QUESTÃO DE FÉ!

Mário Faria

http://2.bp.blog

 

Na gruta, a terceira idade dançava de forma animada, as mulheres com redobrado entusiasmo. Do Vira ao Kuduro os passes para os diferentes ritmos não divergiram tanto assim. A sala estava repleta. Não se notava cansaço: a terceira idade no seu melhor. Na zona do coreto a rapaziada da UFP mantinha a ordem unida e os gritos guerreiros no quadro das idiotas praxes académicas que duram todo o ano lectivo, para os meus lados. Junto ao Monumento à família, como apelido a escultura em cor de cinza e de caras desfiguradas e tristes pela penúria, os amigos dos animais reuniam com dezenas de cães dando jus à notícia que as famílias têm menos crianças que daqueles canídeos. Os miúdos não estavam por lá, apesar do bom tempo. Era este o ambiente, num dia bem solheiro no meu Jardim. Um atleta, já cansado pela idade, corria vergado pelo esforço: parecia mais sacrifício do que exercício, mas continuou com aquele ar infeliz e naquele ritmo lento e fatigado até o perder de vista. Também me sentia pouco feliz, dados os acontecimentos recentes, quando fui abordado por dois jovens da Igreja Mormon: um brasileiro e outro americano. Não dava por eles há muito tempo. Eram curiosos, fizeram muitas perguntas a que respondi evasivamente e lá consegui fugir com um panfleto daquela igreja com as teses da última Conferência Geral e o cartão de um deles com a seguinte assinatura:“Ao ouvirmos, que nosso coração seja tocado e nossa fé aumentada”.

Não tem mais de metro e meio de altura, anda vestido da forma tradicionalmente ridícula, de meia branca, casaco claro e calças cinzentas pelos tornozelos, gravata cheia de cores e chapéu de palhinha, foleiro. É provocador e fala a berrar como se lhe coubesse o direito de ralhar a toda a gente, apesar do tamanho, da pouca envergadura e da avançada idade. No bairro, chamam-lhe o Meia Leca. Encontrei-ono Jardim, vestido de forma ainda mais bizarra: substituiu a gravata por um laço azul com pintinhas amarelas e trazia um sobretudo cinzento, muito puído. “Obrigava” uma velhinha a atravessar a rua, com gritos descoordenados e sem delicadeza. Deu para perceber a incomodidade da idosa que, cansada do arrasto, o ameaçou com a muleta em riste em sinal de iminente ataque. O tipo percebeu o sinal e obedeceu, libertando a velha senhora. O Meia Leca fugiu em passo apressado a resmungar e seguiu para a gruta. Foi dar ao pé.

O ambiente no Jardim é simpático e familiar e não rima com o ruído à volta da justiça e da prisão preventiva de Sócrates. Não se ouvem protestos: o povo é sereno e não se incomoda com a fumaça. Talvez entenda que a vida continua e que a “Sócrates o que é de Sócrates e aos portugueses o que é dos portugueses, o que vale tanto quanto a afirmação de que à política o que é da política e à justiça o que é da justiça que pareceu um achado na retórica de António Costa. Não há nada como as frases feitas, porque nada dizem e não comprometem. Cá por mim estou muito inquieto: acho que a direita sairá reforçada desta trapalhada e o PS vai sair mal tratado. Não me consolo com a desgraça alheia porque pode render votos a outros partidos de esquerda, o que não creio. Por outro lado, não estou certo que os juízes sejam imunes à atracção pelo poder: menos no TC porque as decisões são partilhadas pelo colectivo do que no TICem que um só homem mexe em demasiados processos de grande complexidade envolvendo quadros políticos e da administração pública. E como temo os juízos que agem ao sabor da corrente, do género que uma juíza transmitiu, subliminarmente, ao escrever num acórdão: “não aplicar uma pena que possa ser considerada laxista pela comunidade”. Sou um homem sem fé e o meu coração não se sente tocado: não consigo deixar de ter medo dos juízes e "o pior que podia acontecer ao país era uma República dominada por juízes ou magistrados". "É isso que está a acontecer. Eles é que mandam". Devemos estar atentos: um mal nunca vem só.

 

SE VOSSA EXCELÊNCIA...

Adriano Correia de Oliveira


No fim da década de setenta, o então presidente da República, Ramalho Eanes, visitou uma empresa do interior do Distrito do Porto, e na sua recepção, um Delegado Sindical, leu um texto onde dizia, «Se Vossa Excelência, Senhor Presidente, viesse cá mais vezes...». Adriano Correia de Oliveira, musicou e cantou esse discurso, numa canção exactamente com esse título, «Se Vossa Excelência». Trinta e cinco anos depois, decidi também escrever, mas a Deus.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, pudesse vir à Terra mais vezes. Se um dia chegasse de surpresa, iria ver onde é a mesa de muitos milhões de seres humanos a quem negam os mais elementares direitos. Iria ver como essas pessoas comem, como essa gente vive.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, pudesse vir à Terra mais vezes e visitasse aqueles que vivem para além dos discursos, das recepções, das palavras tão galantes dos que o costumam receber, essa gente, tão boazinha e sorridente, iria ver, como tratam os mais simples, os mais abnegados, os que trabalham e criam riqueza, iria ver, como essa podridão humana, que se aperalta para receber Vossa Excelência Senhor Deus, fala para os outros que subjuga e explora.
Se Vossa Excelência Senhor Deus, pudesse vir mais vezes, e viesse sem a comitiva que na Terra O acompanha, então veria o que é vida dos que trabalham, como são despedidos, ameaçados e ofendidos, por defenderem o pão para as suas bocas e dos seus filhos.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, pudesse vir à Terra mais vezes, se um dia pudesse chegar aqui sem aviso, então faria um bom juízo, do que e como vivemos, dos padecimentos que sofremos, iria ver como são roubados todos aqueles que diariamente são explorados, pois quem aqui manda faz tudo o que quer.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, vier à Terra mais vezes e se numa das próximas visitas puder afastar-se um pouco dos que adulam quando chega, talvez consiga ouvir o grito das mães africanas diariamente sobrevoando o Mediterrâneo nesse pranto eterno pelos filhos que aos milhares morrem na procura de trabalho que permita dignificar a vida.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, vier à Terra mais vezes, deixamos o pedido para que a mão pesada que varreu os vendilhões do Tempo, volte a cair justiceira, sobre os donos do mundo, os donos dos offshores, os senhores disto tudo, essa vadiagem do dinheiro que flagela os crentes e os não crentes com a violência desmedida do poder.

Se Vossa Excelência Senhor Deus, pudesse vir mais vezes...

Afonso Anes Penedo


01/11/14

88

 

ÁGUA

Manuel Joaquim

Q
http://www.africatoday.co.ao/files.php?file=agua_136566154.jpg

A UNICEF está a desenvolver uma campanha de angariação de fundos para aliviar a carga de trabalhos que as crianças têm para terem água. A construção de sistemas de abastecimento água e de saneamento, significa mais e melhores alimentos, mais higiene, mais saúde, mais tempo para a escola e mais tempo para estudar.

Uma criança com nove anos de idade, numa aldeia de Timor Leste, Mate Restu, faça sol ou faça frio ou chuva, percorre diariamente três horas para ir buscar água para a família. Elezete, é o seu nome, tem que transportar dois bidões de 5 litros, todos os dias de manhã, antes de ir para a escola, que são mais noventa minutos a pé.

Sem água perto de casa é difícil cultivar alimentos ou criar animais. Acartá-la, provoca grandes canseiras. Assim, como é possível quebrar as cadeias do subdesenvolvimento?

No passado mês de Abril, um Amigo meu, Manuel Vitorino, jornalista, autor do blogue http://mautempocanal.blogspot.com, lançou o livro de sua autoria, "Guiné-Bissau, Um País Adiado, Crónicas na Pátria de Cabral", que relata uma segunda visita àquele país, onde descreve os problemas da pobreza, as suas causas, e o que passa com o abastecimento de água às populações.

O livro contém um trabalho muito interessante do Doutor Adriano A. Bordalo e Sá, Professor Associado de Ecologia e de Microbiologia no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da Universidade do Porto, que tem o título "DA ÁGUA À SAÚDE POR TERRAS DA GUINÉ". Conhece muito bem a realidade local, a vida e o comportamento das populações, o papel das chamadas ONG e os interesses que servem. Quase no final do seu trabalho escreve:"…De modelo em modelo, de golpe de estado em golpe de estado, o sonho ficou pelo caminho. Ganharam os consultores de fora, visitantes efémeros e vendedores de utopias estranhas, ganharam as elites locais incluindo as castrenses. Tentar curar a saúde descuidando o acesso à água potável, ao saneamento, à educação e à segurança alimentar contribui para perpetuar a miséria colectiva."

Há quem diga que as reservas de água potável são tão ou mais valiosas que as reservas de petróleo. Fontes energéticas alternativas ao petróleo desenvolvem-se a toda a velocidade. Sem água as populações não sobrevivem.

Hoje é óbvio que as guerras no médio oriente aconteceram por causa do petróleo. Mas já não é tão óbvio que a guerra à Líbia, a pretexto de Kadaffi, foi por causa da água. No subsolo da Líbia existem 35.000 quilómetros de reservas de água potável. Para quem está interessado no negócio da água, esta é muito mais valiosa que o petróleo, e é praticamente inesgotável. É a maior reserva de água do planeta.

A Assembleia Geral das Nações Unidas em 1993 declarou o dia 22 de Março de cada ano como o Dia Mundial da Água com vista a aumentar a consciência pública e dosgovernos sobre a importância de conservação, preservação e protecção da água. Em Portugal foi declarado o dia 1 de Outubro como o Dia Nacional da Água.

O 25 de Abril aconteceu há 40 anos e muita coisa foi feita para as populações. Electricidade, abastecimento de água, saneamento, escolas, postos médicos, etc chegaram a muitos locais. Com as alterações políticas que entretanto aconteceram os interesses das populações foram secundados ou ignorados. Por isso, existem povoações que ainda não dispõem de água canalizada. Infelizmente é o que acontece na serra algarvia, afectando mais de mil pessoas.

Uma representante das Nações Unidas que participou no Congresso Mundial da Água que se realizou em Lisboa, declarou que a dificuldade no acesso à água não é um problema financeiro ou tecnológico mas de falta de vontade política.

A Lei da Água de 2005, publicada pelo governo de então, teve como objectivo criar as condições para no futuro levar à sua privatização. O actual governo está a trabalhar para que os municípios entreguem as competências da sua distribuição à empresa Águas de Portugal. A pretexto da harmonização de tarifas entre o litoral e o interior e de problemas de investimento as tarifas vão aumentar. Está a criar as condições convenientes para entregar aos grupos económicos internacionais um sector fundamental e vital para a vida das pessoas, que é o abastecimento de água, saneamento e tratamento de resíduos, com a garantia de grandes lucros e sem necessidade de qualquer investimento pois todas as infraestruturas existentes, pagas pelas populações, serão simplesmente oferecidas.

Por isso, as pessoas não devem aceitar a privatização deste bem público.

A ÁGUA É UM BEM ESSENCIAL À VIDA

 

 

A BIGORNA E A LIMA

António Mesquita

Manuel Fernandes Tomás


"(Fernandes Tomás) Admirador da Constituição da Bolívia, desejava que o "sistema todo fosse ao fogo, à bigorna e à lima", mas não de uma só vez, e sempre com as "compensações e contemplações que é preciso ter com os direitos adquiridos".

História de Portugal (Rui Ramos & al.)

A 'burguesia', apesar de viver de persuadir os outros (Alain), como acontece no comércio, não enjeita, na política, algumas ideias 'operárias' como esta de tratar o sistema como o ferro que vai ao fogo, à bigorna e à lima.

No século XIX, não havia ainda a cultura única dos 'media'. Nunca se poderia vender a ideia do bem comum, fora dos limites da religião, porque até Marx, o evangelista de GFW Hegel (mas de cabeça para baixo), as classes eram o 'horizonte inultrapassável' do tempo, expressão, como se sabe, utilizada por Sartre a propósito do marxismo.

Mas aqui temos um político português, que viveu até 1822 e que, portanto, não conheceu o Manifesto Comunista (1848), nem os seus autores, a empregar a palavra 'sistema', palavra que viria a ter naquele século e sobretudo no seguinte a fortuna que se conhece.

Que enorme avanço, de facto, substituir a sociedade 'natural', ainda ressonante dos ecos da Criação, por sistema, que é logo uma palavra que pressupõe que conhecemos ou podemos vir a conhecer e a controlar o dito sistema! Lembro-me, nos primeiros tempos do 25 de Abril, observar, nas pessoas menos politizadas, a rejeição das palavras novas como 'estrutura' ou 'sistema', precisamente. O sistema, realmente, já não pode ser obra de Deus, mas de cientistas ou de técnicos altamente qualificados (falava-se, significativamente, em tecnocracia).

A verdade é que por via de noções como essa e dos pressupostos conhecimentos que a sua compreensão implicava, a doutrina do mestre de Iena, mesmo travestida, dominou o século XX e permitiu-nos o invejado papel de sujeitos da História.

E perante as atribulações do presente é ainda essa doutrina que consola, dialecticamente, muitos de nós do fracasso dos nossos sonhos.

Mesmo metaforicamente, podemos imaginar a eficácia das modestas ferramentas de Passos Manuel para moldar o 'sistema'. Temo, porém, pela sorte dos direitos adquiridos, se dependerem da 'purificação' pelo fogo.

 

A BUSCA

Mário Martins


http://www.gracacastanheira.com/portfolio/angst_24.html

De repente, vinda dos lados da filosofia, como lhe compete vir, eis que, no debate*, surge uma questão incómoda, até pelo tom algo deselegante com que foi formulada: devemos procurar vida inteligente fora do nosso planeta? Afinal de contas, o lado negativo do nosso comportamento, de desrespeito pela natureza e de subjugação, quando não aniquilamento, dos mais fracos pelos mais fortes, não se recomenda a ninguém e, por outro lado, nada garante que espécies inteligentes alienígenas, a existirem e a entrarem em contacto, nos recebam em festa. Não me parece, no entanto, que uma preocupação moral que, segundo Kant é o que verdadeiramente nos distingue dos animais, ou uma reserva de prudência, possam deter essa força que, a um tempo, tanto caracteriza o ser humano como é independente da sua vontade, que é a força da curiosidade. Nem, num plano mais prático, que possam pôr em causa o formidável negócio da exploração espacial, ou o progresso científico/tecnológico, nos mais variados planos, que dela decorre, ou as vantagens geo-estratégicas que advêm para os respectivos países. Sinto-me tentado a afirmar, à La Palisse, que o que for possível ao ser humano descobrir, ele descobrirá, como foi, por exemplo, o caso da energia nuclear, cujo uso militar contra populações civis, esse sim, não tendo sido sujeito ao devido exame moral, colocou uma mancha negra indelével na pele dos seus autores e da humanidade em geral. Entretanto, apesar dos inegáveis e entusiasmantes sucessos alcançados na detecção de planetas extra-solares**, continuam por responder as perguntas de sempre: como se originou a vida na Terra? Existe vida fora do nosso planeta? Estamos sozinhos no Universo? E mesmo que venhamos a, sensacionalmente, descobrir vida inteligente fora do planeta azul, como poderemos comunicar com um mundo a anos-luz (mesmo que só umas dezenas) de distância? Em todo o caso, os cientistas acreditam que as próximas décadas trarão grandes novidades. A busca vai continuar.


*Debate “Exoplanetas e a perspectiva humana na busca de novos mundos”, realizado em 18 de Setembro passado no Teatro Rivoli, no Porto, que contou com a participação de dois astrofísicos, um biólogo, um filósofo, uma artista plástica e de um excerto de um documentário cinematográfico.

**1.760 exoplanetas confirmados (distribuindo-se, conforme o tipo, por: Júpiteres quentes: 1.038; Gigantes gasosos: 426; Super Terras: 199; Terrestres: 80: Tipo desconhecido: 17), girando em torno de 1.076 estrelas, das quais 454 constituem sistemas multi-planetários. Além dos já confirmados, há mais 3.269 exoplanetas candidatos, ainda não sujeitos a confirmação. A destacar o facto de parte desses exoplanetas (304, dos quais 17? já confirmados) orbitarem na “zona habitável”, isto é, com potencialidade para terem água e, eventualmente, vida.



CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DE UMA EMPRESA IMAGINÁRIA

"Tempos Modernos" (1936, Chaplin)

Exmo. Senhor ,

 

Perdoe-me o abuso deste tratamento um pouco familiar, mas creio que o assunto que aqui me traz, possibilita o aconchego desta proximidade para que melhor possa ler estas minhas palavras. De resto, sempre é um nome próximo da divindade e sinónimo de gente trabalhadora, o que de todo se coaduna com os pergaminhos sociais de V. Exa.. Pois venho aqui acusar a recepção da nova fatwa que distribuiu pelos trabalhadores da sua empresa dirigida ao sindicato minoritário, o qual teima em não só não se modernizar, como insistir em teses que o senhor Zé já disse encontrarem-se desadequadas e esgotadas, pois com a sua longa experiência de vida e essa infinita sabedoria que brota do trabalho abnegado a que diariamente se dedica, há muito demonstrou a necessidade de novos métodos e novas relações. Obrigaram-no assim, a esta recente publicação, em complemento à notinha da doutorzinha que assoberbada com essa tarefa gigante de gerir essa fantasia que dá pelo nome de talento, coisa que sabemos abunda muito sobretudo na parte superior das empresas, e não lhe ocorreu que deveria contar os trabalhadores para de seguida os dividir de acordo com as suas, deles, claro, escolhas. Naturalmente que só ao senhor Zé lhe poderia ter caído esta ideia brilhante, o que não é invulgar, pois sei que não só, lhe cabe a primeira como a última palavra, e todas as restantes que é necessário colocar no meio, intervir aqui, acorrer mais além, estar atento às vendas, deitar um punho ao esboço do marketing, o olhar sempre presente nos pormenores, um pouco, como escreveu Brecht, sem a sua decisão, o milho não se atreveria a crescer com a espiga para cima. As suas palavras planam sobre a organização com essa leveza de, a quem basta chegar para tudo se alterar no sentido positivo. Sempre que é possível escutar a sua voz, é perceptível um discurso claro, objectivo, absoluto e definitivo, sem margem para interrogações, nem dúvidas, como o canto do al muedin, nas madrugadas nascentes a descer das varandas das mesquitas. Dúvidas, não tenho eu de que a grandeza da empresa que dirige, não seria mensurável, sem a sua mão certeira na condução dos seus destinos e na rota por onde palmilham os seus, da empresa, naturalmente, negócios. Os trabalhadores, encontram em V. Exa. um segundo pai, alguém que tem sempre a mão a segurá-los e a palavra a esclarecê-los como ainda agora se viu pela fatwa que aqui me traz. Com a elevação de um deus, o senhor Zé, atento e venerado, está sempre presente, mesmo que seja para acrescentar mais uma palavra ao discurso, mais uma, mas não qualquer uma, antes aquela que vai colocar o ponto final no esclarecimento. Creio até que a estatura e sabedoria de V. Exa. ultrapassaram já a fronteira da empresa, pois a acreditar numa outra missiva que colocou há uns meses atrás no ar condicionado, os aplausos encomiásticos chegam até do exterior, o que diga-se, reconhecimentos que nunca são de mais, face à estatura da sua inteligência e da sua obra. Sei que em qualquer espaço da empresa, o senhor Zé está presente, se o sol nasce uma hora mais tarde, todos se preocupam sobre o que vai pensar V. Exa., se não chove como o previsto, todos se preocupam se o Sr. se vai molhar, nada se faz sem uma palavra, um pensamento, um olhar de V. Exa. o que dá uma garantia de segurança que noutras empresas não existe. Uma vez, se me permite um ligeiro desvio, num desses aeroportos de passagem encontrei um cidadão norte-coreano que trazia um daqueles esmaltes ovais na lapela do casaco com a fotografia do seu líder, era a sua forma de espalhar pelo mundo o seu reconhecimento pela dimensão do seu querido e amado chefe. Claro que uma atitude destas nada tem de semelhante com o senhor Zé, pessoa simples, cuja modéstia não toleraria o seu retrato passeado pelos aeroportos, comedimento bem visível na missiva anterior, em que o senhor Zé mostrava a todos como também era amado no exterior, quando afirmava, o que só mostra essa estatura e sabedoria só acessível aos grandes líderes, que sem os restantes trabalhadores, o seu trabalho não serviria para nada, frase que aliás só posso subscrever, pois é dessas verdades extensivas à sociedade, sem os trabalhadores, os gestores, como é que os senhores dizem?, ah! os gestores de topo, bem podiam ir apanhar papel pois as suas estatísticas só serviriam para isso mesmo, estatísticas. De qualquer forma, afirmá-lo, é algo que merece relevância. E lá continuou, e continua como se vê pela última fatwa, a acompanhar, a intervir, a dizer a primeira e última palavra, a erguer a bandeira, a mudar os canhões, enfim, um trabalho que só mesmo os seres com têmpera de orientadores conseguem. Ocorreu-me até lembrar-me daquele escritor que descrevia, num dos seus romances, o líder de um país, «É que bastava uma palavra dele para que surgissem obras de construção gigantescas, para que colunas de lenhadores fossem atirados para a taiga, para que multidões de centenas de milhares de pessoas cavassem canais, erguessem cidades, construíssem estradas nas terras da noite polar e do gelo eterno. Ele exprimia em si um grande Estado! O grande Estado exprimia-se nele, no seu carácter, no seu feitio.». Peço desculpa por esta comparação, a qual só teve a intenção de expor o êxtase da sua acção, pois todos sabemos que o senhor Zé é não só um grande democrata como uma pessoa de cultura, lembro-me até que em tempos deu uma entrevista em que dizia que tinha 30 livros à cabeceira, o que só por si, nos faz sentir como aqueles pequenos átomos que não encontram companhia.Como o senhor Zé, só encontro paralelo com aquele outro senhor de economia que manda na associação, esse sim, é que é um homem culto, aprumado, transpirando saber e competência. O senhor Zé desculpe, mas estas verdades não podem ocultar-se, o homem é mesmo um mestre, talvez só lá para a Calábria se consiga encontrar gente de tão elevada envergadura.

Arrebatado com a sua acção sábia nos destinos da empresa, tenho estado a desviar-me do que aqui me trouxe. Não é nada de extraordinário, apenas ligeiros acrescentos ao conteúdo da fatwapois o discurso contém imprecisões e, ia a escrever mentiras, mas parece-me que a palavra é desadequada face à grande precisão que coloca sempre na oratória escrita, vou antes chamar-lhe, verdades ao contrário, assim como um negativo de uma fotografia. O facto de ter de ser o senhor Zé a contar os trabalhadores, só por si, mostra o quanto a sua presença é necessária, caso contrário, o milho nascia mesmo torto. O senhor Zé já no fim diz que o cartaz é falso, mas não foi exacto, porque o cartaz é mesmo verdadeiro, tanto é assim, que o senhor Zé viu-o, o conteúdo é que podia ser falso, mas o cartaz não. Sei que são pormenores, mas sabe como são as pessoas, um pouco vazias de ideias sempre a olharem para o acessório. Portanto, vamos assentar nesta parte, o cartaz não era falso, vejamos então o conteúdo. O senhor Zé escreveu na fatwaque os «não sindicalizados» – o trabalhão que teve a contá-los! - assinaram o novo contrato, mas aqui não foi bem preciso, certamente a doutorzinha não lhe disse como as coisas se passaram, pois o senhor Zé não é homem de erros. Aqueles tais «não sindicalizados» foram empurrados por uma portaria daqueles senhores do governo, de quem a minha falecida mãezinha, que Deus a tenha em eterno descanso, dizia, «são uns vadios e uns insurrectos, foge deles meu filho», e eu tento fugir, mas apanham-me sempre. Pois foram esses «vadios e insurrectos» que assinaram por eles. Oh, senhor Zé, fiquei admirado pelo número de aderentes daquele sindicato de fantasia e eu que pensava, na minha infinita ignorância, que esse sindicato era só uma espécie de ONG como aquela que pagava viagens ao senhor Coelho, outra pessoa distintíssima, que Deus o leve em breve por muitos e bons anos e não deixe que ressuscite. Estou convencido que neste dia em que redigiu a última fatwa o senhor Zé não estava bem, certamente nervoso, pois estas maldades que os sindicatos fazem, deixam até uma pessoa como o senhor Zé desassossegada, pois só assim se compreende aquela história que conta sobre a decisão judicial. Vamos lá ver, senhor Zé, é ao contrário, a acção é para que o tribunal diga que o contrato já não está em vigor, pelo que enquanto o tribunal não o disser, o contrato está em vigor. O senhor Zé desta vez até me fez lembrar o Calvin, sim aquele miúdo irrequieto do Público, quando um dia vestiu a camisola ao contrário e pensou que era a cabeça que tinha girado, mas com esta do tribunal, quero crer que o senhor Zé vestiu bem a camisola, mas a cabeça é que ficou do avesso. Então o senhor presidente, coloca uma acção para provar que o contrato não está em vigor, o tribunal diz que está, o senhor presidente recorre, claro o dinheiro não é dele, perdoe este comentário, e o senhor Zé vem dizer que o contrato não está em vigor, se o tribunal ainda não o disse? Oh, senhor Zé, vá num instante aos serviços e ponha a cabeça no lugar, que nós fazemos de conta que não vimos, pois ainda acrescentou que o tal de novo contrato, reflecte o avanço e o progresso das últimas décadas nas relações de trabalho. Oh! Senhor Zé, o futuro é para a frente e o passado é que é para trás, o senhor baralhou-se todo, apanhado no deserto por uma nuvem já não distingue o oriente do ocidente! Deixe lá, dias aziagos podem apanhar qualquer um. Não sei mesmo o que se passou com o senhor Zé nesta manhã em que as ideias lhe apareceram tão atribuladas. Eu sei que esta minha carta já vai longa e o senhor Zé tem muito mais que fazer do que estar aqui a ler-me, mas só mais uma coisinha para terminar, o senhor Zé desta vez resolveu ter opinião. Eu sei que o senhor Zé é mais do que um pai para os trabalhadores e por isso sabe muito bem, melhor do que eles e do que o sindicato das minorias, o que é bom e o que é mau para eles, daí que tenha escrito que o prémio de antiguidade seja injusto e retrógrado, mas lá veio mais uma falhazinha, parece que neste dia tudo corria mal ao senhor Zé, pois não explicou porquê e as pessoas, sempre mal-intencionadas, podem ficar duvidosas. Vejamos, retrógrado é qualquer coisa que se opõe ao progresso. Diga-nos então a que progresso estava o prémio de antiguidade a opor-se? Ficamos a aguardar as suas notícias na próxima fatwa. Então injusto é que não se compreende. O senhor Zé desculpe mas a nossa inteligência é apenas um grão de areia na imensa praia que é a sua e tem de nos explicar isto melhor, pois pagar a experiência adquirida é injusto? Que grande injustiça senhor Zé! Já o senhor presidente da associação juntamente com o petit guru que contratou entre os agentes do superintendente-geral de Contrabandos e Descaminhos nos veio explicar isso e chamaram-lhe mentiroso e ele embrulhou, meteu ao bolso e levou para casa. Ora, não nos passa pela cabeça poder chamar mentiroso ao senhor Zé, isso sim seria uma grande injustiça e talvez até retrógrado, pois estaríamos a opor ao progresso o que é a existência de pessoas como o senhor Zé, assim uma espécie de peças únicas como a fábrica da vista alegre produz. Senhor Zé, não o maço mais com as minhas divagações que o senhor não é pessoa para estar parada a ter de me ouvir com estas tontices e palavras sem sentido. Ficamos então a aguardar pela próxima fatwacontra o sindicato minoritário, tão minoritário que admira que cinco ainda resistam teimosamente ao esplendor de benefícios que o senhor Zé lhes recomenda e lhes envia e não sigam o exemplo dos outros 34 que na hora de escolher o «novo contrato», certamente se lembraram daquela parte do poema a Galileu, Galilei, “E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal”.

Receba os meus melhores cumprimentos

deste sempre seu,

Emanuel Cante

 

CARTAS

Cristina Guerreiro

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Rodou, rodou e rodou. Três voltas cuidadosas, os dedos a apertarem o toco de pau, carinhosamente, era o que sobrara do que tinha sido um elegante e comprido lápis. Afinal um simples lápis de escrever desses que quando ainda existia o hábito de o fazer à unha se sossegava atrás da orelha para não se perder o tino do lugar, era coisa de homem feito com profissão, aliás fazia-se o mesmo com os cigarros, era para gente grande, está-se a ver. Agora restava-lhe um pedacinho, curto, nem dava para afiar no canivete por isso apontou-o ao afia e rodou por três vezes.

Era o sobrevivente de meia-dúzia. Dos outros nem o rasto, por isso a esta sobra reservava escritos de importância, coisa grande.

Pigarreou, olhou a folha branca e a sombra alongada pelo lápis curto e poupado que a luz do candeeiro projectava.

Assentou o bico na folha, fez pressão e recordou-se da conversa sobre o gosto dos lápis, a escrita com lápis, há quanto tempo tinha sido e os anos a passarem e eles a escreverem sobre mares e rios e à espera de palavras a lápis que no fundo eram macias como a escrita feita destes mas tão mais semelhantes à pele das mãos quando se escapa na queda e estão lá para se agarrarem com calor, som do estalo a colarem-se uma na outra, vida a chamar vida, uma contínua corrente que prende o navio e não o deixa à deriva, assim tinham sido as palavras de anos nas cartas trocadas. Era mais que um gosto ou uma companhia esperada, era a confiança da confidência, o conselho sem a condenação do juízo.

Um ponto.

Levantou o lápis. Sorriu e escreveu: Desta vez fica por minha conta, mando eu a meia-dúzia.

E dobrou junto o que restava apertado nos seus dedos na folha de carta a enviar.

 

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