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01/05/21

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NO CORRER DOS DIAS

 Marques da Silva



Petropavlovsk – A primeira imagem que nos enche o olhar no interior da baía de Avacha é o cone branco do vulcão Koriakski, brilhando na serenidade da manhã como se furasse um céu azul cheio de luz, algo tão raro na Primavera destes espaços do longínquo oriente. A baía é um círculo quase perfeito de dez quilómetros de diâmetro, abrigando a cidade das intempéries do oceano. Desembarco sem pressa, com essa tranquilidade de quem chega para ficar, sem receio que o tempo engula a ansiedade que sempre gera o contacto com o desconhecido. Subo da cidade portuária para a cidade nova. Passos vagarosos, para gerir o cansaço de uma inclinação de 8% desgastante. Há momentos em que detenho a caminhada numa mistura de descanso e de contemplação da baía por onde entrou o navio que me trouxe. Deixamos Vanino há três dias, o tempo que demorou a navegar as mais de mil milhas que separam as duas cidades. O navio virou a proa para norte, através do estreito da Tartária onde em certos sítios a Sibéria aparece separada da Sacalina por escassos oito quilómetros. Tchékhov conta, no livro em que relata a sua visita, que no Inverno o mar congela e que muitos dos presos da ilha aproveitavam para fugir atravessando o estreito a pé, sendo que essa tentativa libertária, se tornava a maior parte das vezes num fracasso, pelo cansaço, pela inclemência das condições meteorológicas e também porque eram apanhados e remetidos de novo para a prisão. Alguns morriam engolidos pelo frio e pela neve. Contornada a Ilha pelo Norte o navio virou a proa para Sudeste para a longa travessia do Mar de Okhotsk. O vento roçava a estrutura com total impunidade, como senhor absoluto daqueles espaços. Na segunda noite pacificou, agasalhou-se no aconchego polar e permitiu uma noite de uma placidez absoluta. No convés, foi possível a contemplação daquele céu quase árctico. A nossa galáxia aparecia desenhada num rendilhado irrepreensível, simétrico, fisicamente equilibrado por forças invisíveis. Todos os sonhos são possíveis em noites como essa. Sentimos esse prazer do Belo e o desejo que o tempo estanque a sua marcha e nos deixe nesse gáudio de satisfação. Enquanto o olhar se deleitava com a magnitude do espaço celestial a memória viajava até às palavras de Raul Brandão na sua visita açoriana. “Abstracção e sonho. Porque neste amanhecer perpétuo a gente sonha mais do que vê. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada – dum azul desmaiado, dum azul com água. Divaga toda azul num mundo de sombras brancas, de hálitos tépidos, de penas que esvoaçam. É alguma coisa de perfeito, de incriado e sereno…”. O escritor portuense visitou as ilhas trinta anos após o relato de Tchékhov sobre a Sacalina. Ambos foram para conhecer e sentir o pulsar da vida humana. Na grandeza da ilha russa os seres humanos eram na sua imensa maioria, prisioneiros, enquanto nas ilhas atlânticas, viviam em liberdade, mas a palavra de ambos os escritores, estremeceu da mesma forma perante o drama humano que encontraram. A vivência corvina deixou o escritor português nessa linha da impotência e do estupor perante a rudeza primitiva com que se deparou. Enquanto os olhos perdidos na noite vão contando as estrelas no estendal da via láctea, recordo que as comemorações de Abril me alcançam pela segunda vez distante do solo pátrio e a distância faz acorrer com mais facilidade à fonte das lembranças aquelas lágrimas que não choramos. Constroem agora a narrativa que a Liberdade, a Democracia e Abril não têm dono. Mas têm. São propriedade dos que, de algum modo, lutaram para que fossem possíveis e não dos que se opunham, uns pela violência, outros pela omissão. Hoje e no futuro, são e serão dos que as defendem e não dos que as pretendem destruir, enquanto valores, princípios e objectivos. Percorro agora a avenida Karl Marx, por entre bairros soviéticos. Espaços largos e amplos como a inexistência de especulação da terra permitiam à época. Alcancei a parte alta da cidade e uma extensa recta desenha-se à minha frente. Os bairros continuam marginais à avenida que entretanto, estabilizou e chama-se a partir daqui, 50 anos de Outubro, o mês da revolução, outra que não a da nossa Primavera, e outros 50 anos passaram sobre os primeiros e o sonho derramou-se no degelo de um ano sem nome. Ocorrem-me de novo as palavras de Raul Brandão, “Ora na vida o essencial não é o pão, é outra coisa sem a qual mais nos valia morrer. O essencial é o sonho que transforma o homem”, e quando o sonho se esvaiu entre a demagogia e a ganância, esvaiu-se o pão. Vê-se e sente-se no interior, por vezes, afastado das cidades russas. Não são barracas, antes casas de madeira, umas melhores, outras nem tanto. Não é apenas o desgaste do tempo, ou da chuva e do vento, mas da incapacidade económica, revelando exteriormente o frio que as percorre por dentro. A fadiga começa a fragilizar esta caminhada, pelo que vou acolher o corpo a um tempo de repouso. Por sobre novos blocos residenciais o Koriakski e o Avachinski espreitam sedutores com os seus mais de três mil metros. São eles que procuro neste caminho, mas para mais tarde que hoje sinto o estremecer das alturas nos membros inferiores. Fraquezas humanas incontornáveis. 

 

As citações que aparecem, foram retiradas do livro, “As Ilhas desconhecidas” de Raul Brandão, Perspectivas & Realidades, Lisboa, sem data.

O ESPÍRITO DO TEMPO

Mário Martins


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Há o que chamamos espírito do tempo, que forma o padrão dominante da mentalidade e da psicologia colectivas. Depois da tragédia da 2ª. guerra mundial, o espírito, alimentado pela aceleração da evolução científico-técnica e, em especial, pela computação, era o de progresso contínuo, aparentemente imune a novas grandes tragédias, muito menos mundiais. Ao horror da guerra sucederia inevitavelmente um futuro radiante de paz.

Na realidade, à guerra global seguiram-se guerras locais, estúpidas e horrendas como aquela, mas de menor escala, até que, subitamente, no início dos anos oitenta, o progresso contínuo, desmentido pela reedição dessa antiquíssima tradição humana de guerrear, parou de forma dramaticamente inesperada, com a entrada em cena do vírus da sida, que não só afectou e ainda afecta a vida sexual e social das pessoas por esse mundo fora, como matou, segundo dados da OMS, cerca de 33 milhões (até agora, a Covid matou cerca de 3 milhões), e para o qual não foi ainda criada uma vacina eficaz mas “apenas” fármacos que tornaram a sida uma doença quase crónica. Desgraça que um negacionista, sempre predisposto para qualificar a tragédia como farsa e confundir factos com opiniões, autoproclamado  amigo da verdade”, mas que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define como “aquele que nega ou não reconhece como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente”, consideraria obviamente imputável a uma conspiração dos fabricantes de preservativos.  

Mais recentemente, em plena crise Covid, um negacionista português, juiz da nossa praça, que, muito naturalmente, imputa a pandemia a uma conspiração da indústria das vacinas, interrompeu uma sessão do tribunal por o magistrado do Ministério Público se ter recusado a tirar a máscara, e mais do que isso, numa atitude deveras surpreendente mas, sem dúvida, romântica à maneira do que ainda se praticava em Portugal nos princípios do século XX, desafiou o director nacional da Polícia, que havia apresentado queixa dele, para um duelo, não às mais tradicionais espada ou pistola, mas à MMA, sigla inglesa que significa artes marciais mistas. Quem presidiria ao duelo? Não poderia ser ninguém da maçonaria à qual o juiz acusa o director da Polícia de pertencer. Mas, salvo confissão pessoal, como ter a certeza disso se os membros das organizações desse tipo estão a coberto do manto de segredo? Ricardo Araújo Pereira já apostou 100 euros na vitória do polícia. Talvez menospreze um juiz cujo perfil afinal se coadune melhor com a função de agente de segurança.

Para aplacar um pouco os ímpetos bélicos do nostálgico juiz recomendaria, em tempo de Páscoa e Primavera, a audição das Paixões de S. Mateus e de S. João, de Johann Sebastian Bach. O famoso compositor estava, indubitavelmente, em estado de graça quando escreveu a de S. Mateus, mas a abertura da paixão sanjoanina é simplesmente arrepiante, qualquer coisa do “outro mundo”. Preferindo uma obra não tão marcadamente religiosa, sugeriria a Sagração da Primavera, bailado em dois actos, de Igor Stravinsky. Tratando-se de obras-primas, obviamente cristãs, as de Bach, ou de índole pagã, a de Stravinsky, elas tanto podem ser apreciadas por crentes como por não crentes, quer pelo seu alto valor artístico, quer por representarem, a seu modo, o mistério da existência e a angústia da condição humana. Aqui, o espírito é o de um tempo mais perene.

LINHAS VERMELHAS

Manuel Joaquim 



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No passado dia 20 de Abril, na Biblioteca Municipal Almeida Garrett/Auditório, da Câmara Municipal do Porto, comemorou-se o 45º Aniversário da Constituição da República Portuguesa, por iniciativa de várias personalidades e instituições representativas de movimentos sociais, políticos, sindicais e culturais, aprovada em 2 de Abril de 1976 e em vigor desde 25 de Abril de 1976.

Apesar de ter sofrido diversas alterações (sete), continua a marcar os valores conquistados com o 25 de Abril de 1974, designadamente, direitos e deveres, organização económica, organização do poder político, estabelecendo no seu Artigo 7º, que Portugal rege-se pelos princípios do respeito dos direitos do homem, dos direitos do povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos, pela abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, pelo desarmamento geral e pela dissolução dos blocos político-militares.

Apesar do Presidente da República ter sido eleito para cumprir e fazer cumprir a Constituição, continua a verificar-se que a prática política não corresponde aos compromissos assumidos.

É uma vergonha para o Partido Socialista as posições políticas que o seu ministro SS assume perante situações internacionais. É de um seguidismo canino perante o novo patrão americano, o que já acontecia com o anterior patrão, defendendo caminhos políticos na EU que podem levar ao precipício, isto é, à guerra. Não pode ser esquecido o envio para a Venezuela de militares armados para apoiar um golpe de estado que estava em marcha. Continua a ignorar as posições da ONU sobre a Palestina e o Sahara.

Outro ministro, JGC, vem fazer declarações públicas de que a Rússia é um perigo, inimiga da Europa, feito papagaio da campanha internacional em curso, atirando a Ucrânia para a frente de guerra, fazendo-se parvo perante as negociações entretanto efectuadas entre Ângela Merkel, Emmanuel Macron e Vladimir Putin e os USA terem recuado no envio de barcos de guerra para o Mar Negro.

As tentativas que já não são só de hoje, de evitar a entrada ao serviço do gasoduto Nord Stream 2, que vai ligar a Rússia a Alemanha é a questão central, que os americanos não querem porque lhes retira a venda do seu petróleo de xisto. As sanções e ameaças dos USA às empresas que trabalham no gasoduto são tremendas, o que já levou algumas a abandonar os trabalhos. Mas a Alemanha tem estado firme nas suas decisões, (provavelmente por Merkel ter nascido no dia 17 de Julho) e o gasoduto estará pronto em breves semanas. Os americanos não querem que os europeus, especialmente a Alemanha, comprem gás e petróleo à Rússia, mas eles compram grandes quantidades de petróleo à Rússia.

A maior parte dos que comem à mesa do orçamento da EU são servis seguidores dos interesses americanos. E alguns portugueses estão nessa linha. Um deles, que rejeitou ser candidato à CMP por motivos óbvios, com familiares ligados à Igreja Católica, nem sequer ouviu as palavras lúcidas do Papa a pedir Paz para a Ucrânia e para a Europa, escreveu num jornal, que é a “voz do dono”, que se deveria enfrentar a Rússia. Desgraçado, a fazer a apologia da guerra.

Mas a russofobia continua. Para já, na guerra de embaixadas e sanções. Parece que voltamos ao tempo da Lei de Talião. Mas não voltamos, porque a situação é muito perigosa e vai depender da lucidez dos diversos intervenientes. Como agora se diz, há linhas vermelhas que não devem ser calcadas, quanto mais ultrapassadas.

REVENDO TARKOWSKI

 António Mesquita


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Em 'Stalker", filme de 1979, um pobre de espírito é o guia de dois intelectuais desiludidos até à "Sala", na zona proibida, onde todos os seus desejos serão cumpridos. Estes, acreditaram nisso enquanto não chegaram àquele destino. Tiveram medo sempre que o guia os prevenia dum perigo, duma armadilha, para acabarem no café da partida, diante da vida sem sentido, nem esperança. Para eles não houve epifania nenhuma, só para o pobre de espírito.

Em "Solaris", de 1972, admite-se bombardear o oceano, que se pensa ser  uma espécie de cérebro, do estranho planeta que os terrestres estudam há tempo de mais, sem chegarem a nenhuma conclusão. A ideia é atacar para obter uma resposta que esclareça os humanos sobre uma realidade outra.

Necessariamente, a água deve deixar aquele desenho na areia e a garrafa de plástico lançada à praia seguiu esse trajecto, rolar com água nivela dentro até bater no rochedo. É fácil falar das leis, mas a natureza sou eu. Todos os sinais que serviram a esta descrição duma cena marinha e tudo  o que a análise das relações sujeito-objecto podia razoavelmente concluir apenas explicam o que eu já sei: só posso conhecer a separação. A ciência e a percepção instituem-me como elemento distinto do mundo. O domínio  dos factos caracteriza-se pela sua capacidade de se mudar em linguagem. Mas a soma de todos os pontos de vista e de todas as formas de expressão que se podem tirar da facticidade não fundam nenhuma espécie de conhecimento, nem nenhuma realidade transcendental. O que é próprio do saber acumulado e da história do sujeito ocidental é a divisão do ser em pensamento e matéria. É para mim evidente que o real da ciência  é a relação e a forma humana, e que o objecto último ou a causa primária só são acessíveis à experiência mística e religiosa que passam, significativamente, pela “morte” do sujeito da consciência. A ciência alimenta-se de si mesma. Morder a própria cauda não é apenas distintivo da “maldade” reptiliana. É também a forma de crescimento das civilizações técnicas. A nossa potência multiplica-se com o desenvolvimento e a complexificação da nossa rede mental e dos seus prolongamentos tecnológicos. Cada novo instrumento, cada nova teoria parecem colocar a humanidade à beira dum limiar que resolve o problema de Deus, que é o problema do conhecimento. Mas nessa questão não há, nem pode haver, verdadeiro progresso. A filosofia repete-se e é sempre nova. Platão é tão actual como outrora, apenas nos tornamos um pedaço mais vaidosos, mais  vencidos por um estendal de falsas provas. Nesse sentido, o progresso da técnica significa um impasse e um retrocesso para o pensamento. Não somos livres se não nos desfizermos desses arranha-céus matemáticos e dessas bombas de materialismo e de lógica. Quem pode pensar diante dum espectáculo desses? As realizações tecnológicas impõem-nos o seu pensamento que é cada vez menos humano.
 
Com a mesma temeridade com que nos lançamos à conquista do espaço, uma espécie de western metafísico, fazemos uma verdadeira especulação imobiliária com o real. Transformamos a realidade num produtor de saber tecnológico, ou vice-versa, sem nos darmos conta que a mediação nos veda infalivelmente a experiência do real.
 
O tempo e o espaço são nossos, mas a ciência debate-se consigo própria. Em "Solaris", de Stanislav Lem,  a personagem Snaut diz com propriedade:  “Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos.” E é isso que significam as várias "visitas" que perseguem os astronautas. O nosso cérebro e o nosso corpo parecem ser o único objecto. O oceano solarístico envia os seus simulacros humanos, tirados da experiência dos próprios "Salteadores da Arca Perdida", como um reflexo que os confunde e enlouquece.
 


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