StatCounter

View My Stats

01/11/21

172






 

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


"A noite estrelada" (1889) de Vicent Van Gogh



Quantas vezes cada um de nós, acorda e decide partir, rumo ao horizonte, ao nada ou ao infinito e de vez em quando, esse sem destino, traz-nos de regresso. Assim, atravessei os rios todos, em direcção ao sul, quase sem olhar, sem ver e sem sentir. O rio dos amores, passeio-o na ponte de sempre, baixa, perto do leito quase tocando com as mãos nas terras do paul e fui contando os quilómetros que longo era o dia. O rio grande surgiu majestoso, imenso no seu grande caudal e senti a força das águas arrastando tempos e vontades. Atravessei-o na ponte mais extensa, longa e bela e de seguida deixei-me embalar pelo som que surgia dos campos de além. Acordei cedo quando o sol sorrateiro me chamou de mansinho e vista de cima a serra algarvia, repousava serena com o brilho dos raios solares a beijarem-lhe a face. Arbustos rasteiros, árvores baixas de copa redonda, pois naquela terra onde a nossa estrela sempre está presente, tanto calor, pesa, obrigando a vida a ficar perto do solo. Já não sei o que vi, entre montes e vales, subidas e descidas e rios de água lenta abrindo caminho com a fraqueza das suas levadas. A terra de horizonte aberto estava verde e a beleza da sua aridez era composta agora por um extenso tapete verdejante, como se alguém tivesse pintado a paisagem e no rumo ao norte fui coleccionando castelos, pois também na vida, os homens coleccionam, não só os seus castelos, como as suas muralhas, as suas ameias, as suas torres de menagem. Por fim, o cansaço já pouco deixava ver além do fio negro da estrada, nem o da vida, mas pensando nela, que o fim não tarda e quando o dia já quase não sorria, era apenas uma recordação do seu começo, a ponte mais amada, a mais elegante sobre o rio que nos habituamos a olhar e a sentir, e ali, a meio daquela travessia, onde podemos, ao mesmo tempo, ver o passado e o futuro, abraçando o presente, deixei que o tempo corresse aguardando a noite.

“OS CUS DE JUDAS”

Mário Martins 

https://www.fnac.pt/Os-Cus-de-Judas-Edicao-Comemorativa-40-Anos-

 

“Felizmente que a tropa há-de torná-lo um homem.” 

António Lobo Antunes

“Os Cus de Judas”

 

 

Nunca o “cagalhão” (cito), esse escandaloso vocábulo do glossário português que no modo educado até custa pronunciar, devendo ser dito em voz baixa  e contar com a cumplicidade de quem ouve, nunca tal expressão ou as correlativas “caretas de defecação” (ibid.) me pareceram tão literárias como nesta dolorosa obra-prima autobiográfica de António Lobo Antunes que, mais de 40 anos depois, me dispus a ler, mercê de uma selecção, efectuada em 2016*, dos doze melhores livros de autores portugueses dos últimos 100 anos.

O pano de fundo é o que, para os prosélitos de um regime ancilosado, foi a gesta ultramarina, e para a generalidade da população, a guerra colonial. Através do olhar arguto e culto do oficial médico António Lobo Antunes no teatro de guerra de Angola, mas em cuja mente do grande escritor que viria a ser perpassava a angústia de não conseguir escrever os romances que nela já fervilhavam, é-nos dado o testemunho de uma tragédia que a ausência de uma justificação moral tornara insuportável.

Os horrores de uma guerra, seja ela justa ou injusta, são sempre horrores, mas  a justificação moral da guerra contra a loucura nazi, que absolveu todos os sacrifícios e alicerçou a vitória aliada, fez toda a diferença para o anacronismo e iniquidade de uma guerra colonial que tornou vão o sacrifício de tantos portugueses, e só poderia terminar, de uma forma ou de outra, em derrota.

No palco da guerra, com o seu cortejo de mortes, feridos e estropiados a que o “Doutor” tinha de acudir como podia, justificando o coro dos “foda-se” e “caralho” (ibid.) nesses momentos sanguíneos, cruzam-se as recordações da infância, a  crónica da vida familiar, até sobrevir um profundo desencantamento por tudo e por todos,  a começar por si próprio: “O tempo trouxe-nos a sabedoria da incredulidade e do cinismo (…) e desconfiamos tanto da humanidade como de nós mesmos, por conhecermos o egoísmo azedo do nosso carácter oculto sob as enganadoras aparências de um verniz generoso.

Desencanto pelas relações de amizade esvaídas ”os amigos afastaram-se a pouco e pouco de mim, incomodados pelo que consideravam uma ligeireza de sentimentos vizinha da vagabundagem libertina”, ou por uma Lisboa (que) “mesmo a esta hora (nocturna), é uma cidade tão desprovida de mistério como uma praia de nudistas”.

No regresso da guerra, uma tia decepcionada sentencia: “- Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.”. A despeito de medir o homem pela largueza de ombros, talvez vislumbrasse a pertença do sobrinho “à dolorosa classe dos inquietos tristes, eternamente à espera de uma explosão ou de um milagre”, que o escritor haveria de confessar n’Os Cus de Judas’. 

 

* Os 12 melhores livros portugueses dos últimos 100 anos - Revista ESTANTE

 

 

DA DEMOCRACIA

António Mesquita




"Será então que o problema é a democracia, quando são a China e outros regimes autocráticos e autoritários que se tornam fortes protagonistas da cena mundial? A democracia é um modelo sustentável e apetecível? Como assegurar a competitividade e a liderança mantendo os princípios da democracia, da sustentabilidade e da inclusão social?"

(III Encontros de Cascais, Expresso de 23/10/2021)


Vivemos tempos em que a democracia não só não nos parece um bem em todas as ocasiões (para suscitar uma adesão incondicional) ou para cujo aperfeiçoamento se possa trabalhar, como se duvida que esteja melhor equipada para defrontar a era tecnológica e a adulteração da opinião pública pelas redes sociais.

Na celebrada Atenas da Antiguidade, a liberdade dos cidadãos e o florescimento das artes e da filosofia só foram possíveis graças à existência da escravatura que assegurava as tarefas básicas. Os revisionistas da história e os apóstolos do politicamente correcto, para serem consequentes, deviam deitar abaixo o que resta do Parthénon e repudiar o legado grego no pensamento, na literatura e na própria ciência, por causa daquele "pecado original".

A ideia democrática não confundia, então, o povo e a cidadania. A igualdade em relação ao poder era só para uma parte da sociedade. E assim continuou a ser, por séculos e séculos, até à ideia da sociedade sem classes que os filósofos inventaram. Um dos mais influentes, talvez fosse Hegel e a sua dialéctica do senhor e do escravo, inspirada na Revolução Francesa. Marx alegou que a teoria hegeliana estava "de pernas para o ar" e "corrigiu" a posição, com o sucesso planetário que se sabe.

As eleições livres de hoje, em que todas as classes, em princípio, podem votar, só alusivamente significam a "vontade popular". É quase impossível, de facto, saber quem é o sujeito dessa vontade, o que é que ela poderia significar e por quanto tempo seria representativa. Digamos que existe um consenso, mais ou menos alargado, para considerar que esses problemas ficam resolvidos com a escolha dum ou outro candidato. Na origem desse consenso, estão, evidentemente, as várias formas actualizadas daquilo a que Marx chamava de "ópio do povo".

A desigualdade social, pela lição da história, não está longe de ser um problema insolúvel, e o que se tem conseguido nas democracias é temperá-la, quanto mais não seja pela gradual melhoria das condições de vida e pela estigmatização da inveja. O crescimento económico tem permitido, quando existe, pôr em surdina o problema de um cidadão ter um padrão de vida mais ou menos "decente" e um outro gastar uma fortuna num passeio espacial.

Nas ditaduras, "populares" ou não, este mecanismo funciona com outra espécie de consenso que é o do medo. Entre as opções do "cidadão" não se encontra nunca a ilusão de expressar uma vontade. A não ser, como em 1933, na Alemanha, quando o medo da desordem era mais forte do que qualquer opiáceo político.

A história recente estabeleceu que o desenvolvimento das forças produtivas, por si só, não engendra as contradições revolucionárias que se esperavam, sem que por isso o sistema deixe de estar sujeito a outras leis de mudança não menos espectaculares – como são as consequências da tecnologia. Por outro lado, sociedades industriais modernas como a China não são sociedades sem classes, longe disso, sem deixarem de continuar uma tradição, sob outras roupagens.

Poderá, por isso, estar ainda na ordem do dia uma teoria anticlassista e que vise mais ou menos a longo prazo o "deperecimento" do estado?

De qualquer modo, entre um regime em teoria anticlassista, mas que é incapaz de promover a melhoria das condições de vida dos seus governados e um regime que fomenta um nível de desigualdade "consensual", mas que é propício ao desenvolvimento social em todos os aspectos, a escolha racional, se a razão puder prevalecer em política, só pode ser uma.

A verdade é que a luta de classes afirmada e assimilada pelo sistema dá a este uma vantagem, a todos os títulos, sobre uma organização que não pode ter uma ideia clara dos seus conflitos. Onde o regime é dogmático, o discurso é paranóico por existir à margem da vida e dos interesses dos cidadãos.

A democracia é não só compatível com uma desigualdade relativa, como não se pode conceber sem ela. Para além disso, o Estado moderno é o princípio anti-democrático por excelência. O divórcio entre a fraseologia democrática e as verdadeiras relações de poder é, por isso, inevitável. Mas mais grave do que isso é a centralização das funções económicas e políticas, que torna quimérica qualquer intervenção dos cidadãos e a correcção atempada das medidas. Pode dizer-se que os espaços de liberdade e de acção cívica se devem às imperfeições do sistema. Um povo lúcido sobre estas determinantes recusaria ao príncipe o álibi da co-responsabilidade, ou do mandato popular. Toda a uniformidade é destruidora. Por isso o centralismo deve ser condenado. E acima de todos, o dos meios de comunicação. É talvez legítimo procurar nos modelos de conformidade e repetição vertiginosa da televisão e da internet a raiz da violência juvenil. As mesmas mensagens difundidas por milhões criam uma carga de identidade social que só os velhos podem assimilar (ou melhor, mastigar sem dentes).

Este estado de coisas levanta uma questão paradoxal, porque ao arrepio da ideia que expus mais atrás: pode a humanidade continuar a dar-se ao luxo de considerar a invenção e a comercialização das tecnologias de massa fora duma ética e dum projecto de civilização? Estamos à espera de se tornar demasiado tarde a salvação, como pode ser já o caso da crise climática?

0 paradoxo está, como se vê, na necessidade duma pedagogia e duma acção coordenada a um nível superior, para lá dos limites regionais e nacionais.

Será o museu de antiguidades o destino da democracia? Desde o assalto ao Capitólio pelos apaniguados de Trump e o modo como alguns países lidaram com a pandemia que a questão se põe.

Vi recentemente um documentário brasileiro, de Marcelo Gomes ("Estou-me guardando para quando o Carnaval chegar") em que uma comunidade pernambucana se dedica 16 a 18 horas por dia à fabricação de jeans, sem capataz e sem patrão, emulando-se uns aos outros num ritmo frenético, para poderem ir à praia uma vez por ano, gozar o Carnaval. É isto capitalismo e exploração do trabalho? Talvez, por causa do contexto. Mas quando os regimes de poder chegarem a esta "perfeição" da moderna escravatura, através da conformidade política, das câmaras de vigilância, ou seja o que for, a questão da liberdade será uma falsa questão.

EM MEMÓRIA DE CHE GUEVARA

Manuel Joaquim



Ernesto Guevara de la Serna, Che Guevara, nasceu em 14 de Junho de 1928, em Rosário, Argentina. Formou-se em medicina na Universidade de Buenos Aires e dedicou a sua vida a lutar contra a exploração das multinacionais e em defesa de uma sociedade melhor. Foi comandante na gloriosa revolução cubana.

Desempenhou cargos políticos importantes no governo saído da revolução, nas áreas militar, relações internacionais e economia e finanças.  

Escreveu sobre processos de libertação, sobre economia e sobre teoria marxista. Os seus ensaios sobre economia e marxismo são pouco divulgados. Mas realizam-se cursos e seminários em diversos países, nomeadamente em Universidades de Espanha sobre as suas obras teóricas.

A vida de Che Guevara tem sido tema de arte,  cinema, de fotografia e de muita literatura.

Fez 54 anos que foi capturado pelas tropas bolivianas dirigidas pela CIA e em 9 de Outubro de 1967 foi executado por fuzilamento. Os seus restos mortais e de mais seis companheiros de luta foram depositados em 17 de Outubro de 1997 na cidade de Santa Clara, em Cuba.

A Comissão Regional do Porto Contra o Bloqueio e de Solidariedade com o Povo de Cuba, em 1997, tomou a iniciativa de participar nas homenagens a Che Guevara, editando um álbum com dois desenhos sobre Che Guevara, de Álvaro Siza Vieira, e um texto dedicado a Che Guevara, de José Saramago. O álbum teve a direcção gráfica de Armando Alves.

O lançamento do álbum, que se realizou nos jardins do Pedro Cem, teve a presença de um dos filhos de Che Guevara, Camilo Guevara. Na sua passagem pela cidade do Porto, foi recebido pelos Presidentes das Câmaras Municipais do Porto, Matosinhos e Vila Nova de Gaia, respectivamente Fernando Gomes, Narciso Miranda e Luís Filipe Menezes.

Para recordar e dar a conhecer, publica-se o álbum.

 

 




 

 

 

 

 

 

View My Stats