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01/06/12

FADOS

Cristina Guerreiro

Rio Tejo


Daqui avista-se o Tejo, uma imensidão de água azul como mar em dias de sol. Vejo-o eu e a imitação do Arco do Triunfo, ao alto encavalitam-se as estátuas paradas sem conversa, enjoadas por uma justiça que perdeu o tino. O homem de joelho por terra só vê terra, areia, pedra, o martelo e as botas de trabalho de outros que andam por ali largando pegadas ou tropeçando no fio que lhe apruma a direiteza à obra. Ignora o ruído e as beatas fumegantes atiradas cegamente, escuta o seu martelo a picar a pedra branca nos cantos e a desenhar-lhe ancas de mulher que se hão-de encaixar no negro das outras, não há flores penso eu, não há rosas-de-vento para este Tejo e as estátuas estão perdidas, sussurro, o homem endireita a espinha e crava-me os olhos nos meus. Envergonho-me da minha altura. Talvez deva agachar-me. Dobram-se-lhe as costas num arco mais perfeito que o triunfo. Areia, esburaca como um menino, terá os mesmos cem, duzentos anos que o homem antes dele tinha quando também esburacava, acamava pedra branca, ajeitava pedra negra, aconchegava tudo numa terra apertada sem desvios. Muitos a cuspirem, a pisarem, a correrem, a sangrarem. Quando tudo estiver pronto, há-de lá passar com o filho, de mão dada para não se perder por não haver rosas-de-vento, e há-de contar-lhe que cem, duzentos anos atrás um homem igual a si fez aquele chão onde estão agora e até uma mulher que o olhava e falava sem som, deitou lágrimas iguais à água do Tejo.

O meu autocarro só parou ali por um minuto, apenas um eterno minuto.

HOLLANDE, A FRANÇA E O MUNDO

Manuel Joaquim


Praça da Bastilha, 6 de Maio de 2012



Decorreu nos primeiros dias deste mês a segunda volta das eleições presidenciais francesas, com a vitória de François Hollande, com 51,7% dos votos. Para isso contribuiu, decisivamente, o voto da Frente de Esquerda. Hollande desenvolveu ao longo da campanha um discurso simpático para a esquerda, desde a criação de 150.000 postos de trabalho, (em Portugal o número era o mesmo mas proporcionalmente muito maior) o aumento dos salários, dificuldades acrescidas nos despedimentos, temas familiares para os portugueses e certamente fornecidos pelo seu novo vizinho, Engº José Sócrates, até à retirada dos militares franceses da guerra que fazem no Afeganistão.

Curiosamente, depois da sua eleição, já aparece com subtilezas de linguagem, nomeadamente sobre o novo tratado orçamental, propondo um pacto para o crescimento, certamente, em resultado de conciliábulos com o camarada do seu novo vizinho. Mas à medida que o tempo vai passando a linguagem vai sendo cada vez mais clara, deixando ver o caminho que se perfila no horizonte. Hoje os soldados franceses já não abandonam o Afeganistão até ao final do ano, pois vão ter de criar condições para manter os interesses franceses, as empresas francesas, naquele país tão sacrificado. Hollande, na cimeira da Nato, defendeu claramente a intervenção militar na Síria. São os interesses imperialistas que estão em causa. Por este caminho admito que esteja a contribuir para a derrota da esquerda nas eleições legislativas que se vão realizar no próximo mês de Junho. 

A manutenção de Sarkozy na presidência francesa seria muito problemática e perigosa para a França, para a Europa e para o Mundo, num tempo em que se vive momentos históricos com consequências ainda imprevisíveis. O mundo agita-se e organiza-se em grandes regiões. Não são só os países da Europa que se vão organizando. São, também, os países da América Latina, do Médio Oriente, África e da Ásia. E também da Europa de leste, que vai até à Ásia.

Franck Biancheri, no seu livro Crise Mundial, prevê que o mundo, nos próximos dez anos, tenha poucas semelhanças com as últimas décadas e que as transformações que vão ocorrer serão mais importantes que as ocorridas desde a conquista do mundo pelos europeus, há mais de três séculos. Considera que vivemos num grande e crucial período de transição histórica. 

De facto, o mundo organizado segundo os interesses e valores das potências imperialistas europeias, entretanto, subalternizadas e subordinadas aos Estados Unidos, a seguir à 2ª guerra mundial, o chamado mundo ocidental, está a sofrer profundas alterações.

A “nova ordem mundial”, anunciada em 1991, por G. Bush, a seguir à queda do muro de Berlim, estabelecida unicamente pelos Estados Unidos, não se concretizou. 

O que aconteceu foi, simplesmente, a falência de Wall Street, a perda de valor do dólar, os défices públicos, a destruição do mercado imobiliário, a falência de parte do sector industrial e de grandes empresas financeiras e a procissão ainda vai no adro da igreja.  

A crise que vivemos é global, apesar de existirem países em crescimento efectivo. Mas o cancro está instalado nos Estados Unidos. Toda a sua economia está baseada na mentira, nos activos fantasmas, activos que nada valem e que foram vendidos à generalidade da banca europeia e mundial. Muito dinheiro de fundos para pensões e para reformas foi espatifado dessa maneira. 

O valor das obrigações do Tesouro dos Estados Unidos, títulos utilizados como reservas por quase todos os bancos centrais do mundo, é cada vez mais incerto, pela quantidade de moeda que o governo dos EUA lança no mercado monetário para cobrir os seus défices públicos, provocando a crescente falta de confiança nos défices de todos os países, designadamente da Inglaterra, Alemanha, França, Espanha, etc. É por isso que há quem diga, mas ainda à boca pequena, que Estados Unidos e Inglaterra já estão na bancarrota. 

As elites que nos (des) governam não estão decididas a resolverem a crise mas a tentarem gerir a própria crise, à espera que a recuperação chegue. Os países do chamado Ocidente afundam-se cada vez mais num oceano de dívidas, muitas contraídas para pagar juros e outras dívidas.

Nas cimeiras do G8 já nada se decide. As cimeiras do G20, impostas pelos chamados BRIC, têm sido, para já, inconclusivas. Mas já abordaram uma questão crucial: a substituição do dólar por um cabaz de moedas para as transacções internacionais e para a cotação das matérias-primas. O comércio internacional entre os BRIC e entre estes com terceiros já se faz nas respectivas moedas. É uma questão de tempo. 

Entretanto, a imprensa dominante, ao serviço do poder ainda dominante, alarmam o mundo com a eminente bancarrota da Grécia, com o fim do euro, ou com as dificuldades crescentes da Espanha, levando os chamados investidores para a boca do lobo, isto é, para a aquisição de dólares.

Mas o mundo pula e avança.

Chefes de Estado e de governo da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) reúnem hoje e amanhã em Luanda, para tratarem de assuntos regionais e de integração. Estão previstas reuniões do Conselho de Ministros da chamada TROICA (Angola, Moçambique e Namíbia) e do órgão para a cooperação nas áreas de Política, Defesa e Segurança. Angola, África do Sul, Botsuana, Namíbia, Tanzânia, RD Congo, Ilhas Maurícias, Ilhas Seicheles, Maláui, Suazilândia, Lesoto, Zimbábue, Madagáscar, Moçambique e Zâmbia são os países que formam a SADC, presidida actualmente por Angola.
 
No Riocentro, Rio de Janeiro, vai realizar-se a partir do próximo dia 5 de Junho, uma Conferência sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio +20, que vai ter a presença de 102 chefes de Estado e de Governo e delegações de 176 países. É um êxito para a capacidade organizadora e de influência do Brasil. Vai ter a presença de Putin que, por decisão política, faltou a uma cimeira nos Estados Unidos, e de Hollande.

O Irão, potência económica, política e militar, continua a ter uma crescente influência em toda a Ásia, Médio Oriente e América Latina, não obstante as tentativas de bloqueio e de agressão de alguns países ditos ocidentais. Entretanto vai negociando internacionalmente o seu desenvolvimento nuclear, cada vez mais aceite, mas não deixa de aperfeiçoar-se nas ciências, nas tecnologias, nas artes e nas actividades de defesa. Em 13 de Março de 2011 lançou com êxito um foguetão espacial com capacidade para transportar uma cápsula biológica. No próximo mês de Junho vai lançar para o espaço um novo foguetão e está eminente o lançamento de um satélite nacional,  Fayr (Alba).

Mas não devemos esquecer que os Estados Unidos bombardearam o Iraque e a Líbia quando estes decidiram transacionar o petróleo em Euros. E que os motivos das guerras são o saque e o controlo das matérias-primas como nos tempos coloniais. É o imperialismo em acção.

 Os países europeus serão os principais responsáveis pela estabilidade ou pela instabilidade que vai acontecer durante uns bons pares de anos. É aqui, neste momento, que Hollande tem um papel de transcendente importância. Ajudar a construir o futuro, com os sessenta e cinco milhões de franceses, libertando a França do jugo em que tem estado, de completo servilismo em relação aos Estados Unidos, afastando das instituições francesas e europeias os americanistas, afastando a Nato das intervenções neocoloniais e imperialistas, e contribuindo para a construção de uma Europa mais solidária, mais fraterna, mais igualitária e de respeito para com todos os povos. A alternativa é anquilosar-se, não ter perspicácia, ater-se ao passado, o que terá consequências terríveis para os franceses, para os europeus e para os povos de todo o mundo.

“Se fosse necessário dar uma definição o mais breve possível do imperialismo, dever-se-ia dizer que o imperialismo é a fase monopolista do capitalismo. Essa definição compreenderia o principal, pois, por um lado, o capital financeiro é o capital bancário de alguns grandes bancos monopolistas fundido com o capital das associações monopolistas de industriais, e, por outro lado, a partilha do mundo é a transição da política colonial que se estende sem obstáculos às regiões ainda não apropriadas por nenhuma potência capitalista para a política de posse monopolista dos territórios do globo já inteiramente repartido.” (De Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo V. I. Lenine – Edições Avante!)


MUROS RELIGIOSOS (12) As Religiões da África Negra

Mário Martins
religiousoratory.blogspot.com



“Já passou o tempo em que se podia catalogar sumariamente como fetichismo (crenças e práticas ancestrais) a fé desses indígenas, indistintamente incluídos na massa dos Africanos…”

Edwin W. Smith



Regressados dos confins do oriente religioso façamos ainda uma última surtida desta feita ao continente onde a aventura humana terá começado.

Para designar as religiões africanas, as ciências etno-antropológicas não encontraram ainda uma denominação adequada (…)

As religiões africanas não podem reivindicar em exclusivo a qualificação de “animistas”, no sentido de admitirem uma força vital que residiria nos seres, nas coisas, nos deuses como nos homens. De facto, seríamos tentados a dizer que não há religião que não seja animista (…). O mesmo se passaria com o qualificativo “tradicional”, porque todas as religiões procuram tornar-se tradição (…).

Acreditar que as religiões africanas não passam de religiões tribais seria, por excesso de historicismo, acantoná-las nos limites dos grupos humanos que as praticaram até ao presente ou então, por cegueira religiosa, (…) é afirmar que a mensagem de salvação de que tais religiões são portadoras apenas se dirige aos membros de uma tribo. O que equivaleria à negação nessas religiões de uma visão do homem potencialmente universal.

O elemento mais específico e ao mesmo tempo mais comum das religiões da África negra é muito provavelmente a ancestralização (correspondente a santificação) e o culto dos antepassados (…).

Podemos classificar os deuses das religiões africanas em duas categorias, a dos deuses tão próximos do Ser Supremo que foram seus colaboradores directos e a dos deuses tão próximos dos homens que surgem, nem mais nem menos, como antepassados divinizados (…).

(…) A percepção adequada do que uma determinada língua ou etnia africana entende por “Deus” tornou-se hoje difícil devido ao facto de praticamente todas as etnias terem sido atingidas pelo islão ou pelo cristianismo. Ora o contacto das culturas não teve apenas como efeito a introdução de novas denominações de Deus, antes, sobretudo, introduziu uma outra visão do Ser Supremo e novos comportamentos religiosos. É certo que nem toda a África se converteu ao islão ou ao cristianismo, longe disso. Contudo, mesmo entre os africanos que permaneceram ligados às religiões ditas tradicionais, essas inovações verbais relativas ao Ser Supremo não deixaram de influir nas suas crenças (…).

A multiplicidade das divindades, as formas muitas vezes exuberantes dos cultos que lhes são prestados, impõem a impressão de que os deuses estão mais presentes, são mais adorados que Deus enquanto Ser Supremo. Mas quando se participa a partir de dentro nessas religiões, adquire-se a convicção da presença de Deus enquanto Ser Supremo; e compreende-se também que a adoração desse Deus enquanto Ser Supremo passa à frente de todas as adorações dos deuses, pois se supõe que estas apenas possuem eficácia se a primeira também for eficaz.

(…) O reconhecimento do Ser Supremo herdado das religiões tradicionais conseguiu assim emigrar para as religiões monoteístas a que os africanos se converteram. Esta emigração de crença fez-se de uma forma de tal modo subtil e tão real que o monoteísmo dá hoje a impressão de ter sido introduzido a partir do exterior, quando é talvez tão antigo em África como noutras partes do mundo.

Em África, quase por toda a parte, o homem é essencialmente concebido como uma pessoa, isto é, como uma síntese dinâmica de um conjunto de componentes de proveniência e destinos diversos. Dessas componentes, a primeira é o sopro, por toda a parte reconhecido como obra exclusiva do Criador (…). Segunda componente da pessoa: o corpo. Pela sua materialidade, o corpo é o elemento mais tangível da relação com outrem e, em especial, com os progenitores (…).

As duas componentes materiais do homem, o sopro e o corpo, encontram-se quase por toda a parte em África. O mesmo se não passa com as componentes imateriais, que mudam de uma etnia para outra, frequentemente até no seio de uma etnia, e às vezes dentro de uma mesma família (…). À cabeça dessas componentes imateriais está aquilo a que chamarei, à falta de melhor, o “homem-mesmo”. Não são susceptíveis de tradução as palavras que, nas línguas africanas, servem para designar a “alma”, sem deformar o pensamento metafísico negro-africano e lhe insuflar preocupações teológicas afastadas das suas (…).

As crenças religiosas negro-africanas não contêm a ideia de um fim do mundo. O cuidado que põem em contar como tudo começou, com excepção do Ser Supremo, só tem igual, ao que parece, na convicção de que o mundo durará, se não eternamente, ao menos enquanto Deus quiser (…).

 Em 1964, J-C. Froelich afirmava que 55% dos habitantes da África negra praticavam religiões animistas. Mas em 1985 já outros sustentavam que, em cada três africanos, em média, um era cristão, o segundo muçulmano e o terceiro adepto de crenças tradicionais. Se nos ativermos às filiações religiosas reconhecidas e proclamadas, a parte reservada às religiões tradicionais está a reduzir-se. Mas esse desaparecimento quantitativo, material e exterior, parece antes ocultar um vigor das crenças tradicionais. Estas conquistaram já a religião islâmica a tal ponto que já houve quem falasse de “islão negro”. Investem agora contra o cristianismo com um ardor que desencadeou uma reacção teológica conhecida pelo nome de inculturação, e da qual se diz que não disse ainda a sua última palavra. Tanto num caso como no outro, sob a pressão numérica dos convertidos ao islão e ao cristianismo, cujo número aumenta constantemente em consequência do crescimento demográfico excepcional que caracteriza as sociedades da África negra, as crenças ancestrais têm vindo a envergar progressivamente novas vestes religiosas.

(…) O elemento-chave das práticas religiosas tradicionais, que encontramos quase por toda a parte nessas Igrejas independentes é a possessão. Esta desempenha um papel central; porque é em transe que se opera a vidência que serve para diagnosticar as causas da doença e do infortúnio, assim como para prescrever os remédios e os comportamentos que se tenta observar na maior proximidade possível com a mensagem evangélica. O grande número dessas Igrejas independentes e a sua liberdade de interpretação relativamente ao Antigo e ao Novo Testamento podem bastar para explicar o seu papel de intermediarias entre as religiões tradicionais e o cristianismo.

(…) Influência subtil e decisiva, sob efeito da qual as religiões tradionais negro-africanas só não dão a impressão de desaparecer porque encontraram agora no islão e no cristianismo um terreno onde podem semear a sua herança milenar e a sua mensagem de salvação.


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Issiaka-Prosper Laleye, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

O POETA MORREU

Mário Faria

M. Hulot ("Playtime")


Na aldeia em que vivo da freguesia de Paranhos no Porto, ainda mantemos alguns hábitos de convívio que se foram perdendo pela desertificação da cidade, pela terrível concorrência da TV, das redes sociais e porque caiu em desuso.  Mantemos um núcleo que costuma  juntar-se, de forma organizada  mas pouco, para discutir os temas da actualidade :  políticos, culturais, económicos e sociais ou mais frequentemente para tratar, analisar e comentar o desporto, em geral e o futebol em particular. A ideia era (e é)  boa, mas está em declínio acelerado porque o Zé da Frutaria, (tripeiro, portista de sempre e socialista de bandeira), acertou um murro no Silva (benfiquista, nado e criado no  Cavaquistão), dono do café que costumávamos frequentar ter dito, de forma indignada, que Pinto da Costa era mafioso, corrupto e que pior que ele só o bandido do Sócrates, que levou o país à ruina. Depois disso, nada mais foi como dantes :  o  pessoal  do FCP e os simpatizantes socialistas, que não eram adeptos do SLB desertaram,  passaram a frequentar o café situado do outro lado da rua. Consumado o distanciamento, procuraram – os mais “tolerantes” – encontrar pontes de entendimento, nomeadamente através da Svetlana que era muito bem acolhida por todos.  Apesar dos bons ofícios desta nossa generosa amiga, tem sido complicado a relação social e a vida comunitária, até aí multicultural, rica de criatividade, de má língua brejeira, de acontecimentos improváveis e por vezes admiráveis. Perdeu graça e autenticidade. Não está ferida de morte, mas sofre de doença grave. Como uma desgraça nunca vem só, a Svetlana anunciou, no dia em que comemorámos a vitória do FCP no campeonato, que iria regressar em definitivo ao Brasil. Estava cheia da troika e de quem a pariu, disse. Nesse ponto, todo o mundo (leia-se do sexo masculino) estava de acordo : sem a presença  dela, nada mais, seria como dantes.

Deste grupo, para além da figura exuberante de Svetlana, sobressaía o nosso “Poeta” pela sua calma e distanciamento. Estava  junto de nós, mas nunca estava perto. Vivia num mundo à parte, sempre alheado e apressado. Residia numa casa da zona, que partilhava com outros supostos intelectuais, perfilhando um estilo de vida vagamente marginal. Os vizinhos não gostavam deles e achavam que eram toxicodependentes perigosos. Nunca notei nada a não ser a simplicidade extravagante na forma como vestiam. Diferentes eram, sem sombra de dúvida.

Era portista, porque sendo do Porto, não poderia ser de outro clube. Mantinha uma simpatia pelo Salgueiros, mas amava o FCP, desde o tempo da resistência. Não assistia aos jogos no Dragão e raramente os via pela TV. A ligação ao clube era, essencialmente, cultural e platónica : não ficava exaltado quando o clube  perdia, nem entusiasmado quando ganhava. Não pagava quotas, nem exigia  vitórias. Vivia serenamente a condição de portista, que em nenhuma circunstância negava. A bandeira do FCP, bastante desgastada pelo rigor do tempo, mantinha um milagroso equilíbrio, presa no peitoril enferrujado da janela coberta de caruncho. Era cuidadosamente enrolada, quando a chuva e o vento eram mais intensos. Do lado oposto, exibia a bandeira da CGTP/Intersindical que merecia o mesmo zelo e cuidados.

Fisicamente, tinha muitos semelhanças a Monsieur Hulot, numa versão mais magra. Não dispensava o chapéu de abas curtas que deixava o seu rabo de cavalo bem à vista. Vestia quase sempre a (sua)  gabardine, bem puída pelo tempo, umas calças que deixavam ver as meias, sempre brancas mas nem por isso, e de baixo do braço fazia-se acompanhar dos rascunhos dos poemas que tinha em carteira. Fumava cachimbo : supostamente usava tabaco.
No último encontro do nosso núcleo (mais tripeiro, portista e socialista),  realizado antes do FCP com o Marítimo, falou-se menos do FCP e demais de Vítor Pereira e do perfil do próximo treinador. De Sócrates e do Seguro, com breves paragens no Jerónimo e no Louçã. As coisas, a certa altura azedaram: o que o futebol unia a política separava. O  Poeta falou. Fizemos silêncio porque o homem raramente o fazia. Leu um poema. O título : Amor e Preconceito.  Era chato e comprido. O silêncio tornou-se mais intenso, não sabíamos que dizer. O Poeta,  melancolicamente, retomou a palavra, perguntando : “Porquê tanto azedume ? Porque é que a vida tem de ser tão chata?  Porquê tanta loja de perfume ? Porquê tanta pomba assassinada? ”. Levantou-se e saiu. As perguntas não esperaram pelas respostas e não reconhecemos qualquer conexão entre o  poema que ouvimos, pacientemente, e os temas que motivaram (?) a sua leitura.  Mais tarde, à noite no café, pedimos, por uma questão de delicadeza, quer nos desse uma cópia dos seus escritos, ainda que fossem rascunhos.  Respondeu-nos   : “Fica para quando tiver publicado o livro de poemas,  que está pronto para sair”.  Pouco depois, retirou-se apressadamente, como de costume.

O poeta morreu no 1 de Maio, quando atravessava a rua em passo de corrida, para comemorar o dia do trabalhador. Era anarca militante. Provavelmente, absorto num qualquer poema que lhe consumia o pensamento, não deu conta do carro que o atropelou sem culpa, nem piedade.  Ao funeral estiveram os que habitavam o mesmo espaço de uma casa muito degradada, mais alguns de nós e dos outros. Houve discurso : não lhe foram poupadas virtudes e não faltou o elogio à excelência da sua poesia. Ficamos mais pobres, mas não pela poesia perdida. Insisto : tinha uma paixão pelo FCP, sem ser um entusiasta pelo futebol. Acompanhava o ciclismo que adorava, embora nunca tivesse andado de bicicleta. A poesia que o habitava residia no coração e no percurso até à mão que lhe dava vida,  perdia o encanto, a julgar pela amostra que conhecemos. Reconhecido pela sua estravagância física, era diferente, enigmático e humano. Creio que era um homem bom : acho que não estou influenciado pelo facto de ter morrido.
Paz à sua alma.




TÉTIS TIRA A MÁSCARA

António Mesquita

"Os Lusíadas" (ilustração de Alfredo Roque Gameiro)


«Aqui, só verdadeiros, gloriosos
            Divos estão, porque eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
    Fingidos de mortal e cego engano.
Só pera fazer versos deleitosos
         Servimos; e, se mais o trato humano
         Nos pode dar, é só que o nome nosso
          Nestas estrelas pôs o engenho vosso."

                                   "Os Lusíadas, Canto X"


No canto final, Tétis abre os olhos ao Gama. Ela e os outros deuses são de fábula e só o Deus do rei é verdadeiro.

Depois de ao longo do extenso poema termos sido conduzidos por personagens da mitologia greco-romana, eis que, num golpe de teatro, todo o cenário vem abaixo. Ao contrário de Dante que se despede de Virgílio para subir à esfera que o pagão não pode penetrar, Camões diz-nos que tudo foi teatro, que os heróis de Tróia e os deuses que com eles se entretiveram são mentiras da arte e que o leitor deve esquecer tudo isso para aproveitar a lição da coda final em que se revela a verdade de Cristo.

Ao fazê-lo, ao depor as máscaras e os trajos antigos, guardando-os para outra ocasião em que pudessem voltar a ser úteis, Camões foi tão injusto com a Antiguidade como a censura inquisitorial o exigia. Assim o poder impõe a sua marca de fealdade mesmo na obra do génio.

Resta-nos a consolação de que o expediente a que o nosso maior poeta teve de recorrer o torna, ao mesmo tempo, um percursor da "distância", mais ou menos crítica, em que alguns modernos, como Brecht, quiseram ver um valor revolucionário.

Claro que Camões nunca aponta para a máscara quando narra a grande viagem e as intervenções no concílio dos olímpicos. Guardou isso para as últimas estrofes, como quem pede desculpa de ter usado um artifício.

A verdade, também, é que o renascimento tardio em que escreveu Luís Vaz já só lhe permitia uma revisita irónica à mitologia.

VAGUEANDO PERDIDO POR ENTRE PEDRAS E SONHOS

Alcino Silva






O olhar prende-se a estas pedras, cobertas deste cinza branco, que aqui parecem adormecidas pelo tempo que se perde entre a eternidade dos séculos. Neste entardecer que se aproxima que procuro eu, deambulando por entre claustros que foram e paredes que se ergueram como sustentáculos de sonhos? Sonhos? Sim, vontades e desejos crescidos no interior do pensamento e que guardavam realidades vivas mas nunca vividas. Então é isso, procuro sonhos nesta tarde que escurece com as nuvens que vadiam neste céu baixo que cobre este estreito vale como um manto. As sombras da chuva suspendem a claridade do dia e o verde com que se acoberta o chão, brilha como um espelho que retrata a minha memória e tudo que nela consigo esconder, dessas ideias, desses feitiços que nos enlaçam e só a nós próprios podemos mostrar. Atravesso a ponte de madeira cansada pelo caminhar dos homens da história e sinto-me um desses perdidos, esquecidos porque já não são lembrados. O meu olhar distende-se, entre tímido e perdedor por sobre o ombro, procurando lá atrás esses ventos que traziam a alfazema que brilhava como lâmpadas de fogo desenhando os traços da mais pura beleza. Subo, passo a passo nessa dolência arrastada pela fadiga de tanto pensar no que amamos e não vivemos. Rodeio os muros e retenho-me ainda, preso nas águas que perdido o equilíbrio do leito se deixam cair sem forças, nessa velocidade que as alturas empurram para uma queda que faz rasgar as pedras onde se estatelam. As árvores despidas de folhas tapam a nudez dos seus ramos com essa bruma de cinza que as protege dos invernosos frios que por aqui rondam em diurnas jornadas. Parece-me agora escutar um canto, essa harmonia de sons que dilatam o frio das auroras e se levantam em serenos voos, esvoaçando na aragem que tarda em aquecer a vontade humana. Também eu canto, baixo, quase em segredo, só para mim, elevando-se essa música pela garganta até ao pensamento e fazendo nascer um sorriso nos olhos que vêem, que procuram a sombra da quimera que se esgueira uma vez e outra como essas fatias mágicas de bolo confeccionadas nas noites aquecidas da lareira que rumorejava por sobre o crepitar das chamas nascidas do fragor da velha lenha transformando-se em pó. Mas é outra a divindade a que se dirigem as minhas orações ditas em preces de silêncio nas manhãs de solidão na procura infinita dos traços de passagem desse momento de beleza que viaja no feminino e desce esta encosta e me faz acreditar que vem até mim. E neste espaço cenobial enriqueço-me pensando ser merecedor de tanta dádiva e ao acreditar, renasço e vivo. Conto os passos, um a um, dormente, contorno o pequeno edifício onde a roda de pedra rala essas colheitas, semeadas e colhidas e que o ardor do fogo tornará em alimento que haverá de saciar esta fome de te procurar e sentir ao longe. O céu derrama das nuvens as suas lágrimas nevadas enquanto percorro a distância que me separa da outra inalcançável margem e as águas também cantam, murmuram esses hinos soprados pela alegria de sentir a proximidade de quem procuramos. Temerosos os olhos pousam de novo na distância, flutuam perdidos no desconhecido, mas agarram-se com os dedos crispados nas linhas que definem essa gentileza em recorte de rosto que aparece no recanto da umbreira onde já não há porta. Os troncos despidos desenham imagens fantasmagóricas tapando a corrente e o frio esboça calados arrepios soltados no interior dos agasalhos que me cobrem. Estarei só nesta distância que me separa da alegria, desse instante sublime em que mãos de ternura nos cobrem a pele e deixam que o rosto repouse de tão longa e milenar viagem?, pergunto à memória que parece estagnada na pureza de um mar que enche e cobre a paisagem, nesse puríssimo azul com que se tapa o universo. Não sei, ou antes que poderei eu saber, nesta fraqueza de nada poder e de nada ter, embora tudo tendo, na mesma proporção do que nada tenho. São as vagas da solidão que me rondam neste cerco de renúncias e perdas. Paro no centro do jardim que já não é, e giro como uma bússola que procura a atracção desse mineral magnético que lhe indica o caminho. Como um náufrago ergo o dedo e faço desenhos, risco traços aéreos nesse imaginário da recordação e parece que o ar se tinge desses recortes que te inventam, como se voasse até mim um sorriso de vida e um olhar de ternura. Ouço os sons que batem na entrada e sei que a noite se aproxima. Abro os olhos e as ruínas desmanteladas dos sonhos somem-se no desenho sonâmbulo da montanha e da minha mão escapa-se de novo esse feitiço que vive em mim como alento, como instante único, como impulso para caminhar sem desistência, mesmo sabendo que a estrada não tem fim.      
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