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01/09/13

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O DIREITO CONTRA A SOCIEDADE?

António Mesquita

Pierre-Joseph Proudhon

 

"Para o capital, porém, não se trata simplesmente do emprego, mas da produção de mais-valia ao nível de produtividade exigido pela concorrência e constantemente acrescido, que (como Keynes bem viu) torna supérflua a força de trabalho numa progressão crescente. A conservação do emprego só é possível através da produção adicional de mais-valia, que pressupõe um stock de capital crescente e, consequentemente, também crescimento económico, incluindo um consumo de recursos em aumento permanente."

"Um capitalismo sem mais-valia?" (Robert Kurz)

                                                                                               

O que se diz aqui é que a mais-valia se separa cada vez mais do trabalho 'abstracto' da teoria marxista, que nele fundamentava o tópico central da exploração capitalista.

Pois, como refere Keynes, as exigências crescentes da produtividade, impostas pela concorrência, não podem já basear-se no 'trabalho não-pago'. A revolução científica e tecnológica, em constante desenvolvimento, conduz directamente à redução dos postos de trabalho e à substituição dos assalariados por máquinas e 'robots'. A indústria automóvel nos EUA viu a sua população de trabalhadores ser substituída quase completamente pela automação, com consequências devastadoras na economia de grandes cidades, como Detroit.

O capitalismo parece, assim, condenado, por um lado, a impulsionar a tecnologia de substituição do trabalho, e por outro a eliminar massivamente os consumidores que esses trabalhadores e as suas famílias representavam. Esta via só deixa em aberto a possibilidade de criar novos mercados pela guerra ou pela criação de crises artificiais.

Se a teoria da mais-valia de Marx (inspirada em Proudhon) perdeu actualidade, sobretudo por causa da revolução tecnológica, curiosamente, a teoria de Proudhon ("a propriedade é um roubo") parece ganhar uma actualidade crescente.

Porque vemos que a dita revolução tecnológica é já tão fundamental para a sobrevivência económica, sendo, por outro lado, o produto da cultura e da educação, para além do génio individual, que não pode ser propriedade de ninguém. Nenhum cartelismo de interesses privados ou da Banca internacional tem o direito de se apropriar dela, condenando a grande maioria ao não-trabalho e ao não-consumo, isto é, em capitalismo, à não-existência. O desvio da revolução científica pela arma financeira é caracterizadamente um roubo.

Tal como na ideia marxista, encontramos aqui um problema ético e político que começa por ser incompatível com a democracia.

 

 

D.MARIAZINHA

Mário Faria

dn.pt

O tempo melhorou, o sol voltou e deu mais calor a este Verão de muitas caras. No jardim, pairava a calma e repousava o fresco. Só o ruido dos carros invadia o silêncio que não merecia tanta interrupção. Lá me sentei e permaneci largos minutos a desfrutar aquela invulgar quietude. É esta a (minha) terra a que volto sempre com enorme prazer. Na tabacaria encontrei D. Mariazinha que é uma viúva, brejeira, faladora, rainha da raspadinha e mãe de um conhecido jogador de futebol, o que aumenta em muito a sua notoriedade, cá na aldeia. Gosto de a ouvir, pois da sua fala colhe-se informação muito variada e pormenorizada. O tema do dia versava a separação entre Judite e Seara. D. Mariazinha contou o triste fim daquela união quase perfeita. Deu imensos pormenores e condenou Seara pelo crime cometido, sem apelo ou recurso. Fê-lo de forma emocionada e comovente. Resolvi desanuviar o clima de indignação que se tinha instalado e lancei uma graça que envolvia Judite, Marcelo e Medina num triângulo afectivo-profissional fascinante. Ficou furiosa com a minha história e disse-me das boas. Levei uma “assobiadela” da plateia e saí rapidamente com o rabinho entre as pernas. Nem o Chico Fininho - o único homem que se juntou ao grupo da raspadinha por interesse, pois foi por essa via que chegou ao bem bom com D. Mariazinha - me poupou. O dia que tinha começado tão bem, sofreu um brusco e inesperado contratempo, mas era só fumaça: o povo do sítio é sereno.

Nesse mesmo dia, fui a uma missa rezada em nome (pela alma) de um familiar falecido, recentemente. Resolvi estar atento à celebração. Estavam quarenta pessoas a assistir: dez homens e trinta mulheres. Não havia jovens e os que estavam presentes ajudaram à missa: sacristãos da classe júnior, assim os classificaria. No interior, o ambiente estava abafado e atraía a sonolência. Por momentos, a modorra venceu-me. Fui alertado por um murmurinho que anunciou a entrada do padre e dos três ajudantes: dois adolescentes, um baixinho o outro gordinho, e um sénior. Fiquei espantado quando descobri que o ajudante sénior era nem mais nem menos que o Chico Fininho.

O padre sentou-se num cadeirão vermelho e foi ladeado pelos ajudantes mais jovens que se sentaram mais modestamente em bancos, igualmente revestidos a vermelho. Ficaram em silêncio alguns momentos. O baixinho não parava de se coçar e o gordinho sorria sempre e houve momentos em que não conseguiu disfarçar a irresistível vontade de rir. O paramento do padre era verde e os ajudantes vestiam una túnica branca que os cobria até aos pés. Uma senhora, vestida de forma comum, dirigiu-se ao altar e leu os textos bíblicos de forma discreta, num tom baixo e com um agudo sotaque tripeiro. Surpresa: era D. Mariazinha. Não me distraí e continuei a seguir os passos da peça a que estava a assistir. Depois de ter lido o enfadonho texto bíblico, D. Mariazinha retirou-se do púlpito de forma lenta e compenetrada, de olhos virados para o infinito, como convinha. Depois disso, foi altura do Padre entrar em cena para dizer a homília. Deslocou-se para o púlpito em passos lentos e medidos, condizentes com o ambiente de espiritualidade que o momento exigia. O tema escolhido centrou-se no diálogo entre Jesus Cristo e a samaritana. Falou sempre de forma pousada e tocou em pontos importantes, nomeadamente a denúncia de todas as formas de discriminação e do racismo em particular. Foi moderno, eloquente e preciso. A condição de ser franciscano e negro explicam, em parte, a pertinente prédica do padre franciscano. O ajudante baixinho continuava a coçar-se e a compor a túnica, o gordinho sorria e dificilmente continha o riso aberto; Chico Fininho, sempre muito discreto, fazia chegar ao padre a bíblia que segurava nas mãos para o sacerdote ler os salmos do dia. A solenidade dos gestos dos diferentes actores impressionou-me, salvo dos dois juniores cuja representação foi bastante menos dramática. Seguiu-se a sagrada eucaristia, a ceia e a comunhão, que foi recebida por uma boa parte dos crentes presentes. Antes da despedida, D. Mariazinha veio receber os donativos. Deixei na bandeja uma pequena nota que mereceu, da parte dela, um breve sorriso de agradecimento e uma ligeira inclinação da cabeça em sinal de cumprimento. A presença na missa tinha quebrado o gelo da manhã. Chico Fininho veio despedir-se e cumprimentou-me amigavelmente e, dessa forma, confirmou o degelo. D. Mariazinha e Chico Fininho: juntos na fé, parceiros na raspadinha e no bem bom. Tudo nos conformes.

Foi assim que aconteceu. À saída da Igreja uma nuvem de fumo cobria toda a cidade. Cheirava a queimado. Não havia perigo, era só fumaça. Entretanto, Judite e Seara continuam a animar a malta, que se resigna a ver a banda passar cantando coisas de horror.

 

 

DO QUE EME NÃO VÊ

Mário Martins

http://versatis.deviantart.com/art/The-Invisible-Island-68041859

 

Um destes dias Eme sobressaltou o meu quotidiano disparando-me: “o mais importante é o que se vê ou o que não se vê?”, logo acrescentando, perante o meu olhar do tipo “o que é que esta quer? (desta vez Eme é uma personagem feminina), “sim, o mais importante é o material ou o imaterial?”. Apeteceu-me responder, prosaicamente, que a necessidade básica de comer não se pode satisfazer com ar e vento, mas Eme estava embalada e não dava mostras de esperar uma resposta; continuou, por isso, a disparar na minha direcção adivinhando, sabe-se lá como (esta Eme é perigosa…), a resposta que eu desistira de dar: “comer alimentos é uma necessidade básica, mas se faltar o apetite, como se satisfaz?”, a procriação humana é física e visível mas podemos dizer o mesmo do impulso que a comanda?”, “gostamos ou não gostamos, mas o gosto é material?”, segundo DamásioExisto, logo penso, o que quer dizer que não há pensamento sem cérebro, mas alguém viu alguma vez um pensamento?”, “os seres humanos são inteligentes e filhos da natureza, logo a natureza é absolutamente inteligente, mas quem conhece a forma física específica dessa inteligência suprema?”, “o que é fundamental na natureza ou no universo é o seu aspecto físico ou as suas leis?”.Com a mão a segurar o meu quotidiano tão abruptamente perturbado por Eme, dei por mim a condescender que Eme é assim e a gente que a ature, embora, lá no fundo, admitisse que as perguntas encerravam as respostas. Encolhi os ombros e fui à minha vida, enquanto a voz de Eme se sumia ao longe.

 

RELEMBRANDO JOSÉ ESTÊVÃO

Manuel Joaquim

José Estêvão

Hoje, queria lembrar um discurso parlamentar que José Estêvão fez em 8 de Junho de 1839 sobre o Orçamento do Estado. Estavam em discussão projectos que se apresentavam ou como “salvadores”, ou que defendiam a “conveniência de emittir papeis sobre a décima”, ou da sua impossibilidade, ou da vantagem de se realizar um empréstimo ou dos seus inconvenientes.

Em determinada altura, José Estêvão perguntou: Qual é a questão? E respondeu, dizendo que “a questão… é a das nossas finanças, que não começou com esta legislatura, mas que já apareceu no Congresso Constituinte; é a questão que atormentou todas as camaras da Carta; é a questão de que estão dependentes todas as outras questões; a questão que não é dos partidos, mas dos portuguezes; a questão que já matou uma Constituição, e que ha de matar outra; a questão finalmente que há de esmagar todos os homens públicos, e perder para sempre este paiz, se a não quiserem vêr como ella é.”

José Estêvão fez uma profunda análise crítica à situação económica e política da época que não é muito diferente da que actualmente vivemos. É um período histórico muito rico que vem a culminar com a revolução republicana.

José Estêvão tem diversos discursos no parlamento, tais como sobre o contrato do tabaco, ou sobre a questão das Irmãs da Caridade, muito curiosos e de plena actualidade.

Mas acontecimentos que estão a ocorrer, tão avassaladores para a minha consciência de cidadão que defende a Paz Universal, que defende a construção de uma sociedade mais justa e mais harmoniosa, provocam-me uma forte angustia e desviam-me o pensamento.

Estamos a ser massacrados diariamente com notícias sobre a morte de umas centenas de pessoas com armas químicas para justificar uma intervenção militar num país soberano que se opõe aos interesses colonialistas e imperialistas dos Estados Unidos e de outros. Jornais, televisões e revistas defendem claramente essa intervenção, sem quererem aprofundar o que realmente se passou.

Mas sobre a morte de mais de cem mil pessoas na Síria, vítimas do terrorismo, nada se diz. Como também nada se diz sobre a morte de mais de 17.000 iranianos vítimas de terrorismo selectivo, executado por terroristas, cuja maior parte residem na Europa e nos EEUU. Será que vão ser noticiados tão profusamente os documentos secretos agora divulgados sobre o fornecimento de armas químicas pelos EEUU ao Iraque que foram utilizadas na guerra Irão-Iraque?

Hoje, sábado, aviões de guerra, partindo de uma das maiores bases militares da Turquia, que é utilizada pelos Estados Unidos, pela Inglaterra e pela própria Turquia, efectuaram voos de reconhecimento sobre território da Síria. O Parlamento Britânico reprovou uma intervenção militar na Síria, que era defendida pelo seu ministro. Depois de derrotado veio declarar que compreende e apoia essa intervenção. A Nato decidiu não participar numa intervenção militar e a esmagadora maioria dos países têm-se manifestado contra. A França, pela voz do seu governo socialista (?) é acérrima defensora da intervenção militar, caninamente ao lado dos EEUU. É bom registar, para memória futura, que altos dirigentes do Partido Socialista Português - Maria Belém Roseira, Alberto Martins, Paulo Pisco (coordenador parlamentar para as relações internacionais), Basílio Horta, Pedro Silva Pereira, Maria Gabriela Canavilhas e Laurentino Dias – questionaram o governo português sobre a sua posição, manifestando que estão a favor de uma intervenção militar na Síria mesmo sem o respaldo de uma decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Somente hoje é que a direcção do PS veio corrigir a sua posição.

Obama, prémio Nobel da Paz, declarou hoje que já tomou a decisão. Tudo aponta que vai no caminho da guerra mas ainda não se sabe. O risco de um conflito de grandes proporções é enorme. Os povos amantes da Paz e o povo dos Estados Unidos que não quer mais guerras, não vão perdoar. Há um ditado popular que diz que quem com ferros mata com ferros morre. Quem iniciar a guerra não está livre dessa situação.

 

 

SEM VENTO

Alcino Silva

http://blogs.naplesnews.com/stage-door/2010/04/shakespeare

 

Mar e mais mar era tudo o que tinha em seu redor. Não o via, sentia-o, sabia-o dançando em subidas e descidas onduladas no poderio dessa imensidão oceânica que esconde mistérios e guarda na infinitude dos seus fundos tantos segredos humanos. O galeão onde viajava, baloiçava sem movimento naquelas sucessivas horas nocturnas. O vento cessara subitamente ao fim da tarde quando a noite acendia as luzes do silêncio e o dia arrumava os seus afazeres. Estávamos parados sobre aquela linha imaginária em que os homens dividiram o mundo. Sentados naquele mosteiro de pedra larga com a visão do rio trazida através da rectangular janela, estenderam cartas, especularam sobre milhas ilusórias, descreveram lugares que não conheciam e determinaram, entre efusivos apertos de mão, esta é a linha da nossa fronteira. Daqui para lá, terras e gentes serão minhas, possa eu encontra-las. Assim, separaram o mar e naquele poente avermelhado, o vento desistiu de soprar, as velas dançaram inertes e dependuradas sem préstimo, aguardavam como todos nós. A noite foi-se estrelando e a cada estremecer luminoso, nascia uma estrada ao encontro de outras luzes, como girândolas de fogo em universos perdidos.Durante muito tempo vagueei pelo convés, escutando o cântico do oceano de encontro à grossa madeira da popa, que se elevava, abanava e se deixava tombar. A marinhagem parecia temerosa. Calaram os seus grunhidos loucos, os seus risos grotescos, as suas palavras soltas em destemidas frases. Sentados, olhavam apenas, com as mãos entretidas em assuntos menores. Enviei os olhos em viagem, tentando perceber onde dormia o vento esse soprar do ar que nos pudesse dali tirar. Longe ficava terra e o voo das aves só ali cruzava em rota de migração. Os meus olhos foram e voltaram, mas notícias não trouxeram. Guardei-me então no interior daquele cubículo na parte extrema do acesso à proa. Umas tábuas suspensas onde me deitava e uma mesa no recanto de uma abertura através da qual me chegava a festa do mar. Num cofre de grossa madeira, os papéis escritos em noites sucessivas nos quais esboçava a tua história. Ali estava de novo com o sono também ausente, como quem procura. Com a pena na mão volvi ao desenho das minhas palavras. Quando a madrugada subiu as escadas, pareceu-me que trazia o vento que saiu do nosso destino sem anúncio e escondeu-se nas ilhas submersas daquele mar dividido em duas partes. Com ouvidos expectantes, procurei vozes, adivinhei sons, mas não, nem uma brisa havia chegado. Era tão só a tempestade de há semanas atrás a reviver na minha memória com o açoite que sentimos quando passamos por uma romaria que faziam no céu e cujas ondas de alegria chegavam até à nossa rota, fazendo-nos dançar com uma música cujas notas não dominávamos. O oceano vergastava-nos a bombordo e o vento, este que agora nos deixara, volteava louco em torno do navio. Que baile fascinante entre o desvario e a razão,enquanto artifícios de fogo, desciam em nebulosos riscos de luz que ribombavam como o toque do tambor. Éramos homens perdidos, agarrados à mastreação, amarrados ao leme, semeando orações de medo e prometendo o que não se podia cumprir. Com a vontade destroçada, sem esperança de porto onde chegar, vimos então, de novo ao poente, a ventania fugindo, sem deixar rasto, nem marca, e o mar poisando as ondas de uma fadiga que o prostrava. A brisa que ficou, tirou-nos daquele feitiço, o mar auxiliou a empurrar-nos, as velas secaram e abriram-se para outra navegação. Foi então que saí, senti e contemplei a acalmia. As luzes que desciam em fogos inventados foram sendo substituídas por outras menos destruidoras. Agora resta a memória dessa noite alucinada e visita-me quando o vento que aguardamos se passeia pelas planícies extensas de ilhas perfumadas de alecrim e alfazema. Ouço de novo o ranger da madeira e acalmo o temor ansioso, inventando as palavras com que conto o teu voo pela vida. Recomeço naquela tarde em que a névoa cobriu o cais e perdi-te entre as brumas densas do crepúsculo que tombava entristecendo o dia, enquanto as vagas bravias galgavam sem freio a espessa pedraria e abatiam-se sem medo na linha do litoral. A mão que estendeste num aceno ficou longo tempo suspensa como se a deixasses imobilizada num eterno adeus e a percepção de um intenso silêncio cercou-me como agora este deserto de brisa que visita o oceano e nos deixa desamparados e sem rumo. Paro a escrita como nessa tarde suspendi o olhar. Escuto o tempo, creio ter ouvido o som da tua alegria, corro a desenrolar as velas crente que o vento chegava e me conduziria na tua rota, mas agora, como então, é apenas e só a minha imaginação a desenhar mundos que já não existem. Como hoje, a noite chegou e envolveu-me no seu manto escuro, e nem vento nem luz, silêncio apenas, num mar parado e sem destino. O vento que nos poderia fazer sair daqui, viajou contigo.

 

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