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01/08/09

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DEMOCRACIA E UTOPIA

António Mesquita
Leitura de sinais


Platão não era democrata. São célebres os seus sarcasmos contra a democracia. Era um aristocrata e via no "governo do povo, pelo povo e para o povo" uma degeneração. Tinha a ideia de que os melhores é que deviam governar. Simplesmente os melhores, uma vez no poder, facilmente se tornam nos piores. Não há filosofia ou "natureza de classe" que os salve.

Hoje, ouvem-se outros sarcasmos vindos de quem abraçou a causa do povo e só se pode rever num partido que saiba quem são os melhores.

Reconheçamos que a palavra democracia na boca dos panegiristas e de alguns convertidos pode ser irritante, porque esses, no seu zelo, de bom grado fecham os olhos aos falhanços do regime. E além destes, há aqueles que se servem do conceito e da realidade da democracia para significar que não há mais nada a procurar e que as boas almas podem baixar os braços porque se atingiu o nec plus ultra, e tanto pior se a democracia é apenas "o menos mau dos sistemas". O colapso do bloco soviético só veio piorar esta acrimónia por causa do ar triunfante de alguns zelotas.

Mas não estou nada certo de que esses que desprezam a democracia reconheçam os reais defeitos e a razão da inviabilidade da alternativa que por um tempo pareceu representar o Bloco de Leste. Mas se calhar, isso nem é importante para eles, pelo que nunca falam disso ou dizem que é cedo para tirar conclusões. Talvez sintam que reconhecer o fracasso daquela experiência retiraria força ao vigor da sua denúncia e que, de qualquer modo, significava identificar o quer que tenha sido o Bloco de Leste como "a" alternativa. Ora, ninguém disse que a utopia não faz parte da política. Que interessam, pois, as contradições da realidade? Que no paraíso do capitalismo, os EEUU, a despesa pública nos custos da saúde represente 50% (80% nos países europeus e no Japão) e que na China, no entanto, um país "socialista", essa percentagem, em 2007, não fosse além duns incríveis 17%? ( Brice Pedroletti, Le Monde de 12/5/2009)

Os males contra os quais investem, com palavras fortes, esses críticos são reais e não é difícil compartilhar o mesmo sentimento de revolta. De resto, o que significaria contrapor os males duma defunta e hipotética alternativa aos males do "capitalismo", se não fosse para defender o status quo? A democracia não corre perigo para que seja defendida do que se destruiu a si próprio. Mas ao não criticarem os meios e os fins, a realidade dessa falhada alternativa, pelos menos os que se dizem marxistas atentam contra a doutrina da 11ª tese, pois se condenam a moralizar, em vez de "transformarem o mundo".

É preciso saber se a democracia arranja inimigos por se esperar demasiado dela (pode algum sistema, hoje, ser do povo e pelo povo?) ou por que se teme que seja de facto o menos mau dos regimes. Parece que a democracia tem as costas largas. A democracia não é solução nenhuma e precisa de democratas. Não é uma utopia mas um modo de enfrentar os problemas. A desigualdade é compatível com a democracia? É mais do que certo. Mas quando a desigualdade, a pobreza ou o crime forem um problema não existe melhor regime para mudar essa situação. Ao contrário dos regimes em que a "igualdade" não é mais do que a versão oficial e por isso nunca pode ser um problema.

Claro que por detrás da "razão" de muitos democratas existe um desejo de conformidade e uma atracção pelo "pensamento único". Quem se habituou a desconfiar dos unanimismos e da complacência intelectual não pode gostar da companhia. Mas isso não pode ser motivo para "deitar fora o bebé com a água do banho".


ENTRE A MÚSICA E A POESIA

Alcino Silva

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Era uma noite de Verão, desses estios em que a Primavera se recusa a partir. Estava fresco e em certos momentos o vento lembrava-nos que era bom acolhermos os braços no interior das mangas de um casaco. O céu respirava tranquilidade e a lua soberana na sua alva esplêndida espalhava luz entre as estrelas. O auditório estava repleto na sua beleza de reconstrução recente. As vozes calaram-se e os sussurros desapareceram tímidos no interior das gargantas. Segundos depois, o som doce e meigo do alaúde colocou-nos o pensamento em voo. Como um avião a correr na pista levando já a cabine elevada a harpa e a guitarra renascentistas cobriram a floresta de cores outonais. Os sons da música de Palestrina estenderam-se pelo céu em voo de prazer. Como uma nave isolada num universo estelar e solitário, a noite parecia perfeita, não fosse o som plangente do tär acolitado pela flauta, ter rasgado a perenidade do momento e elevado a perfeição ao nível dos instantes divinos. Quando a voz provinda de Esfahan rompeu em cântico a sala estremeceu no arrebatamento do que é sublime. A partir desses minutos, seguiu-se uma viagem pela vida como se a humanidade se apresentasse viva ao longo dos tempos. Alexandre Magno invadindo a Pérsia e destruindo Susa, a dinastia Sassânida na glória dos alvores medievais, os ventos assolando as montanhas a norte e os povos adormecendo ao ritmo das caravanas que cruzam o deserto nas suas viagens entre o Oriente e o Ocidente. Sentia-se o andar lento dos camelos como que vagueando sobre as areias e o torpor da distância misturado com o calor a transformarem a jornada em algo sobrenatural. Ao longe escuta-se a cadência das águas do Cáspio a refrescarem as areias finais do Kara-Kum. Após o canto sobre a música de Caccini, regressou o som mágico do tär com o encantamento do tambourine em mistura com o zarb. O pensamento insistia em mergulhar num céu de bonança que um calor imaginário parecia enfeitiçar. O canto persa elevou-se de novo como se, atirado, lançado, projectado ao vento do alto dessas torres esguias e magníficas que rompem as nuvens. Ao longe percebia-se ainda o andar dolente dos animais das caravanas que tal como a música se diluíam entre o tremer da longitude do horizonte, desaparecendo para lá do alcance do olhar. Tinha começado o Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.

Sim, é correcta essa tua pergunta ao me encontrares aqui. Viajei toda a noite após a última nota ter fechado o meu pensamento e encerrado o horizonte onde voava. Viajei toda a noite para aqui estar de madrugada calcando as areias da praia que foi dos teus Verões onde povoavas a alma com os teus amores perdidos enquanto deixavas que as águas frias do Pacífico te molhassem os pés como se refrescassem as palavras que soltavas como chamas de amores inconsolados. Tenho percorrido a Terra com os teus "Vinte Poemas de Amor", mas hoje, hoje meu poeta, após os últimos passos dos homens e dos animais se terem perdido na distância, corri para a tua "Canção Desesperada". "Emerge a tua lembrança desta noite em que estou", escreveste tu quando soubeste que essa amada mulher não voltava, tinha partido no último comboio da Terra e as lágrimas não a deixaram voltar o rosto. "Abandonado como os cais na madrugada", continuavas nesse teu poema de angústia. Que desamparo, que solidão. Haverá maior do que essas pedras que penetram mar adentro e ficam perdidas e solitárias nessa luta nocturna contra o vaguear do mar? Não. Não pode haver. Mais ainda que as caravanas que se perdem na lonjura dos desertos, é esse isolamento sumido na vastidão desse espaço que não é de ninguém e que nenhum ser humano se atreve a visitar antes que a luz do sol dê vida à cor escura da pedra gasta por uma humidade eterna. Entregaste a vida meu poeta e como tu "fiz retroceder a muralha de sombra/caminhei para além do desejo e do acto" e tu mulher amada, cantada em noites que as estrelas se beijavam. "Como um copo albergaste a infinita ternura", acalentaste nos olhos todas as aldeias da Terra e estendi para ti a alma como se nadasse num rio sem margens, "Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta", "Ah mulher, não sei como pudeste conter-me/ na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!" O destino levou-te antes de ter chegado e todos os navios partiram nesta noite sem data. O desespero dos pássaros nocturnos apossou-se do sorriso que desenhaste nos meus olhos e levou "a ternura, leve como a água e a farinha" que havias semeado. Agora que os últimos sons se calaram e a crua luz da noite encerrou o deserto, já não sei se me encontro no luar da música ou na madrugada da poesia, sinto apenas que "É a hora de partir, a dura e fria hora/que a noite prende a todos os horários" e "Abandonado como o cais na madrugada./Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos./Ah para além de tudo. Ah para além de tudo". E mesmo assim, no extremo desse cais esquecido ainda é o teu olhar que encontro, vivo e belo nessas águas oceânicas que esmagam as pedras que restam nesta "hora de partir".


QUE FORÇA É ESSA AMIGO ?

Mário Faria

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É um absurdo considerar os políticos como os únicos responsáveis de todas as desgraças que acontecem no país. O actual governo tem exercido as suas funções de forma errática e entrou em conflito na gestão da coisa pública, sem cuidar da justeza dos conteúdos. Não foi capaz de levar as suas reformas até ao fim nem capaz de recuar, salvo no caso do novo aeroporto de Lisboa que nem por isso deixou de representar um claro fiasco político. Depois das eleições europeias passou a ser um governo de gestão corrente em marcha muito lenta, salvo no que diz respeito à campanha eleitoral para as próximas legislativas.

À oposição compete opor-se, e é o que tem feito de forma particularmente dura e oportunista porque (demagogicamente) esconde os efeitos da contaminação sofrida em função do lixo tóxico que veio à boleia da crise internacional, provocada pelos desmandos financeiros de mercados mais evoluídos e cuja representação em Portugal ficou ao cuidado de muito respeitosas instituições financeiras, lideradas por cidadãos e técnicos acima de qualquer suspeita, até aí tidos como exemplos maiores da superioridade da actividade privada.

Os Portugueses, consumidores de ideias mal compreendidas e pior executadas importadas do estrangeiro, tem de enfrentar a sua pequenez e perceber que essa é a razão mais que provável porque vamos ter mais dificuldades em sair da crise.

À beira das eleições legislativas, toda a oposição exige novas políticas e parece entender-se sobre as causas e os efeitos da doença e os remédios para cura. Há porém uma diferença enorme na acção da direita e da esquerda : é que os primeiros entendem-se sem remorsos, enquanto a esquerda nem para lá caminha, pese a proximidade (cultural, ideológica e de classe) dos militantes e dos simpatizantes de base do PS, PCP e BE.

Com efeito, essa maioria social não é capaz de se representar eleitoralmente com um programa ou uma plataforma de acordo. Reconheço a grande dificuldade de juntar uma força com cultura social democrata (muito próxima da 3ª via de Blair) e posicionada ao centro para governar, com outra de ideologia marxista e uma terceira que é um coquetel formado por ex-trotskistas, ex-udp, alguns dissidentes e uns quantos radicais que se revêem na dialéctica jovem e desempoeirada do bloco, bem mais próxima do PS, mas sem coragem política para assumir compromissos e partilhar o poder.

Que força é essa amigo que os torna tão irredutíveis ? Provavelmente a convicção que só é possível gerir o capitalismo exclusivamente segundo as suas regras, e que não é possível (no governo) gerir o país como os autarcas comunistas fazem nas câmaras que presidem, ou conforme o fizeram nas coligações com o PS na Câmara de Lisboa ou até no quadro do entendimento que Rui Sá estabeleceu com Rui Rio para a Câmara do Porto.

O Estado Providência e o modelo europeu é algo porque vale a pena bater-nos. O património de direitos conquistados e sufragados institucionalmente, a coesão, a liberdade e os direitos dos cidadãos e dos trabalhadores são valores demasiado importantes para ceder a impulsos radicais. Grande parte do tempo de antena conferido à esquerda e às manifestações de protesto é muito menos pela bondade do discurso ou pela justeza da acção e muito mais porque reforçam a ideia de pântano em que caiu este governo – tal como ocorreu com Guterres - e serve que nem canja à direita que se prepara para nos salvar do perigo de cair no lodo, porque só a direita fala verdade, é geneticamente capaz, nunca peca e raramente se engana.

Que força é essa amigo que se submete, aparentemente sem dor, a este discurso profético e a esta prática de homens que prometem a modernidade e um futuro mais justo para todos e são saudosos do antanho?

Que força é essa amigo que permite que se confunda o crime financeiro com a falha da supervisão ? Nem numa comissão parlamentar de inquérito entendo que os objectivos, o conteúdo e a forma que a esquerda utiliza seja em tudo idêntica ao que subscreve a direita. Aliás, nessa Comissão de Inquérito um tal de Nuno Melo escreveu a música e a letra, cantou e os outros serviram de meninos do coro .

Que força é essa amigo que leva Manuel Alegre a ser um rebelde relativamente a este governo pelos seus desvios à direita, quando foi capaz de ajudar Mário Soares a esconder o socialismo na gaveta, ou a participar activamente aquando da coligação entre o PS e o CDS ou com o PPD de Mota Pinto ? É uma tristeza se a estrela de Manuel Alegre para cintilar carece da ambição de chegar à presidência da república !

Que força é essa amigo que levou o PS a alhear-se completamente da aleivosia de Alberto João Jardim ao defender que "a democracia não deve tolerar comportamentos e ideologias autoritárias e totalitárias, não apenas de direita, caso do fascismo, esta expressamente prevista no texto constitucional em vigor, como igualmente de esquerda, caso do comunismo" ?

Que força é essa amigo que vos faz estar de bem com os outros e de mal com os que vos deveriam ser mais próximos ? Que força é essa amigo ?


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O TELESCÓPIO

Mário Martins






No ano internacional da astronomia compreende-se que ele sinta alguma nostalgia por esses tempos em que se atrevera a fazer – imagine-se – um telescópio. Estavamos em meados dos anos oitenta, mas desde jovem que a poesia celeste o atraía. Bem, em rigor, ele queria era comprar um telescópio. Para isso, aproveitou o intervalo de uma sessão no Planetário de Lisboa (não havia ainda o Planetário do Porto) para se aconselhar com o monitor, Joaquim Garcia, mas a resposta foi desconcertante: por que não faz um?...Foi aí que a aventura começou.

Seguiu-se uma visita ao Observatório Astronómico “Prof. Manuel de Barros” da Faculdade de Ciências, ao Monte da Virgem, no Porto, e a aquisição, primeiro, da publicação do Observatório “Projecto e construção de um telescópio newtoniano de 150 mm.”, da autoria de Nazareth Rego e Joaquim Garcia, e, mais tarde, do livro de Joaquim Garcia “Como construír um telescópio”, que apresenta mais desenvolvidamente aquele projecto.

Depois, com o conselho e o estímulo de um familiar da Física, lançou mãos à obra, e era vê-lo, num canto da varanda do andar onde residia, a dar voltas e voltas a uma bancada de trabalho, pois assim o exigia a técnica de desbaste e polimento do vidro que viria a ser o espelho-objectiva, a comprar o carborundum do mais grosso para o mais fino, para o desbaste, e o óxido de ferro para o polimento, na Harker & Sumner, ali na Rua de Ceuta, ou as lentes de óculos usadas em vários oculistas da nossa praça, para fazer as oculares, ele a explicar para o que era, e um deles a perguntar-lhe com ar incrédulo: e isso funciona?..., julgo que nem levavam nada por elas, até que um belo dia, após mais de duzentas horas de trabalho feliz, e depois de passar com nota suficiente no teste de qualidade da óptica efectuado pela Drª. Nazareth Rego na Oficina do Observatório, apontou o tubo da varanda de casa à Torre dos Clérigos, lá longe, e viu, claramente vistas, as horas religiosas que não se lembra agora se estavam certas. A sua boca abriu-se então num largo sorriso que não pode esquecer, tanto mais que a sua mulher o fixou em oportuna fotografia.

Seguiu-se, naturalmente, a febre das observações que, não menos naturalmente, por razões várias, foi esmorecendo, até que, há pouco tempo, o Alcino, companheiro da Periscópio e de outras aventuras, organizou duas saídas ao campo, onde não terão passado despercebidos a cumplicidade e o embevecimento dele por ele, o telescópio, lá no alto, a dar-nos a luz das estrelas.



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