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01/12/23

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


https://www.sjpesqueira.pt/pages/1243



Deixamos a pequena vila de S. João da Pesqueira já tarde. O sono enrolou-se em nós com esse aconchego que os dias de outono trazem. Mas estava limpa, a manhã. O sol possuía a fragilidade dos dias curtos e das manhãs serenas, mas o céu tinha um azul claro e as nuvens viajavam por outros caminhos. Os habitantes desta vila não chegam aos três mil, mas aqui vive o concelho mais antigo do país, desde 1055 ainda a nação era apenas um sonho e o reino era como uma criança ainda por nascer. As palavras ligam sempre o rio ao vinho, ao generoso e ao outro, mas é aqui em S. João que encontramos o centro, ou o coração como nos lembram as placas estradais, da produção do vinho do Porto. Por aqui viveu uns tempos o Marquês de Pombal e, talvez por essa razão, a sua atenção aqui se deteve para criar a primeira região demarcada. A N222 rasga sem ferir o planalto e apresenta agora um traçado suave permitindo um deslizar silencioso como se desejasse que não se acorde a paisagem. Viajamos como se planássemos sobre esta natureza de verde e cor da terra, verde que se foi queimando entre vermelhos e amarelos acobreados, neste intervalo entre o calor e o frio. Desviamos para Trevões a pequena aldeia onde reside o património arquitectónico referenciado no concelho. Estamos agora sobre a N229 que nos levaria a Penedono se o nosso destino não fosse outro, mas Penedono com o seu castelo singular conduz-nos a outras recordações distantes no tempo e na memória. Trevões não é propriamente dessas aldeias que nos cativam, mas apresenta a brancura dos pequenos lugares desviados das grandes rotas, mas quanto ao cativar talvez nos equivoquemos. Sentimos o engano quando penetramos nas suas ruas e nos deixamos ir, sem caminhar, como se nos empurrasse uma ligeira brisa. Trevões tem uma história medieval e dos princípios da nacionalidade. Sentimo-lo como sentiríamos o ar das cidades medievas e ainda persistem os sons dos artesãos cuja arte dava nomes às ruas. Parece silenciosa a aldeia nesse adormecer do meio do dia, mas se deixarmos o olhar fluir vamos encontrar o que não procurávamos e quase desaproveitámos o que sabíamos existir. Afinal poderíamos perder-nos por aqui dias até compreender um esboço secular deste espaço rural. Este devaneio levou-nos com leveza até à igreja matriz de Santa Marinha com aspectos ainda visíveis de quando os canteiros começaram a unir as pedras nesses séculos XII e XIII que se alongaram pelos séculos seguintes, XIV e XV, como os restos do gótico final nos parecem dizer e pelo XVIII ainda lhe anexaram a torre sineira. São pedras que nos murmuram uma longa vida resistindo aos ventos, ao calor e ao frio. O Solar dos Melos não nos atrai porque nos catapulta para a época do barroco, embora a construção seja do século XVII. No século XVIII, as obras foram de vulto e deram-lhe muita da aparência actual. Outra referência que nos acompanhava tinha a ver com o Solar Episcopal mandado construir pelo Bispo de Lamego já na parte final do século XVIII. Podemos dizer que vale pelo brasão incrustado na frontaria. Quando os passos nos encaminhavam para a despedida apercebemo-nos da existência de dois museus, um etnográfico e um outro de arte sacra e religiosa que se tornam de visita obrigatória. Trevões tem ainda mais para visitar mas a N222 aguarda-nos pelo que assumimos o caminho inverso que até Trevões nos tinha trazido. Dez quilómetros volvidos e reencontramos a nossa estrada para prosseguir em direcção a Leste. Leva-nos a cadência da sonolência da tarde e começamos a sentir chegar essa sensação de cansaço de quem há muito viaja e começa a sentir necessidade de regressar ao amparo do lugar onde se vive, da vivência das pequenas coisas do quotidiano como nos falou em determinado momento das suas “Ilhas Desconhecidas”, Raul Brandão. O escritor portuense descrevia com perfeição tudo que lhe fazia falta num ambiente tão afastado daquele que lhe era querido. Talvez por isso, resistimos à tentação de entrar na aldeia de Horta do Douro para perceber a razão de existir um avião de combate exposto numa das suas ruas cêntricas. Na Teja, rumamos à esquerda em direcção a Numão. Continuamos a penetrar na vivência da Idade Média, embora o lugar nos permita recuar ainda muito mais no tempo, mas hoje seguimos directos ao castelo. Subimos com vagar pese embora a tarde fosse deslizando para o fim. Numa das torres da muralha pudemos olhar prazenteiramente o horizonte envolvente até onde os olhos abarcavam. Notamos que no azul que cobria a paisagem apareceram restos de nuvens esfrangalhadas e sem razão aparente, ou talvez por isso, ocorreu-nos à memória uma frase lida, “Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, por inteiro, sombreando a baía em verde mais profundo. Jazia atrás dele uma taça de águas amargas”[1].O Douro não tem as águas amargas, se as teve foi já noutra época, hoje cativa-nos, chama-nos, como nos apela agora que baixemos até à Ferragosa e já não sabemos se temos saudade do rio ou do comboio já que ambos se confundem até ao Pocinho, nessa companhia que já leva muito mais de um século. Vê-lo-emos para lá de Vila Nova, mas será para depois. Hoje aguardaremos pela chegada da hora crepuscular entre as pedras que muralham este cabeço acima de Numão.


[1] James Joyce em “Ulisses”, Livros do Brasil, Lisboa, Abril de 2000

UMA ESCALADA

António Mesquita

https://images.app.goo.gl/CPW7hFto5euFvkS16



"As falácias narrativas resultam inevitavelmente da nossa contínua tentativa de fazer com que o mundo tenha sentido." (Nassim Taleb)



Hans Castorp ao visitar o primo Joachim no sanatório de Berghof, em Davos, não faz a mínima intenção de pôr as opiniões sobre a sua saúde à frente de todas as prioridades - porque a saúde vai muito para lá da forma como nos sentimos.  Mas foi não contar com a atmosfera mental da Montanha (assim se opunham as ideias prevalecentes no Berghof ao que se pensava na cidade ou na planície).

Acabou por ficar sete anos e ficar muito mais tempo que o primo, o qual tomou a certa altura a decisão marcial (ou não fosse um militar) de regressar à vida de quartel, apesar das reticências dos médicos. Havia sempre uma prorrogação de mais seis meses para debelar "definitivamente" uma ponta de febre.

Joachim, é verdade, foi ajudado no seu rompante pela perspectiva duma carreira estendendo-se como uma estrada segura até à reforma. Era um espírito pacato e nada dado aos arroubos imaginativos do seu familiar. Porque Hans estava longe de saber o que queria fazer da sua vida. As suas preocupações no sanatório faziam-no um auditor apaixonado das divagações filosóficas de outro membro da comunidade dos pulmonares, Settembrini e as suas eternas disputas com um ex-Berghof a viver na aldeia mais próxima, o jesuíta Naphta.

O rame-rame de cada um dos primos, enquanto estiveram juntos, era constituído pelas refeições sempre abundantes, o sol na varanda, enrolados nos agasalhos e a conversa com outros doentes que, como em qualquer microcosmo, apresentavam uma suficiente variedade. As consultas com o doutor Behrens, apaixonantes, como era de prever, faziam parte da rotina.

O Berghof era um mundo tão estranho e com uma "mentalidade" tão própria que os que chegavam de fora se viam como imigrantes chegados de outro país. Foi o caso do tio de Hans que resolveu um belo dia aparecer no sanatório com a intenção de o trazer de volta para a família e a sua antiga vida. Teve que desistir dessa ideia perante a impermeabilidade do sobrinho e as pressões da Montanha para o levar a crer que também ele estava doente.

Entre os temas da "Montanha Mágica", de Thomas Mann,  romance tão justamente aclamado e o cinema não é fácil estabelecer uma ligação. Mas é o que me proponho fazer, pensando no último filme de Ken Loach ( ver entrevista no Expresso de 17 do mês passado): "O pub de Old Oak" que conta a história comovente da reacção da comunidade de Durham, antiga cidade mineira no norte de Inglaterra, à chegada dum grupo de refugiados sírios. Claro que a essência dessa ligação está  no choque que os de fora sentem no meio duma cultura estranha, com as dificuldades de entendimento mútuo que se imaginam.

Graças à vocação de TJ, o dono do pub, abandonado pela mulher e pelo filho, as famílias de imigrantes encontram alguns pontos de apoio. A jovem fotógrafa do grupo, Yara, é a interlocutora. Apesar dum punhado de "old timers", saudosos do orgulho mineiro, tentarem sabotar essa amizade, o filme acaba numa espécie de hino à fraternidade entre os povos. 

Não passaram duas semanas desde a visão do "Pub de Old Oak" e Dublin está a ferro e fogo por causa do medo do estrangeiro e, segundo o "Guardian", centenas de pessoas, em Rosslare, uma cidade costeira mais ao sul, juntaram-se para se oporem à conversão dum segundo hotel em acomodação para refugiados. A alegria genuína que se vê no filme de Ken Loach não é posta em causa por estes incidentes que estão em linha com o que se passa um pouco por toda a Europa, com o avanço da xenofobia e da extrema direita. 

É mais um país que se encontra enclaustrado na sua montanha mágica, com a ideossincrasia do sanatório e temendo que uma mudança de ares e  alguns novos hábitos ameacem o seu pedacinho de sol na varanda.

Lembremo-nos que o livro de Thomas Mann saiu em 1924, em plena decadência da chamada república de Weimar que acabou, como sabemos, nove anos depois com a ascensão avassaladora do nazismo, quando   o judeu, quase que por definicão o "estranho entre nós", foi mais uma vez exorcizado como a origem de todos os males.

É, no entanto, necessário  introduzir uma nuance nesta problemática da imigração, sem a qual, a começar pela Europa, conheceremos uma nova idade das trevas. Não se pode responder ao medo do estrangeiro, com uma ingénya abertura  de fronteiras que, aliás, favoreceria a reconfiguração planetária imposta pela crise climática. 

Se as culturas são o que são é porque sabem criar anti-corpos para defender a sua identidade. Deixar esse papel à extrema direita e aos Trumps de qualquer latitude é simplesmente suicida.

A HUMANIDADE

Mário Martins

https://blogcarlossantos.com.br/wp-content/uploads/2020/04/Humanidade




Um modo de fazer de conta que não há diferenças de vário tipo entre os seres humanos (sejam elas sociais, culturais, de género, de maioridade, de carácter, de gosto, et cetera) é falar do seu somatório em relação a tudo o que não é da nossa espécie, quer dizer, falar da humanidade. Esta, sendo coisa que não existe, não passando, por isso, de mero conceito, padroniza cada ser humano, ignorando as diferenças em relação aos demais, que tanto ocupam a nossa vida e alimentam a imprensa, a literatura, a 7ª. arte. De um ponto de vista horizontal, cada ser humano concreto reconhece-se no espelho das diferenças dos outros, mas, verticalmente, como que deixa de existir para dar lugar a um conceito de falsa igualdade, embora útil e necessário. A humanidade homogeneíza o que é, de facto, heterogéneo. Daí o corolário: “todos iguais, todos diferentes”. 

Sabemos que a linhagem dos primatas, à qual pertencemos, surgiu há cerca de 65 milhões de anos, ou seja, cerca de 1 milhão de anos depois da catástrofe que dizimou os dinossauros, no fim do período geológico denominado Cretácio. Esta é uma escala de tempo que, verdadeiramente, não conseguimos apreender. Basta ter presente que 1 milhão de anos corresponde a 10.000 vezes o tempo de 100 anos, que alguns de nós conseguem viver.

Durante quase toda a nossa história estivemos sempre na mesma linha ancestral dos chimpanzés, com os quais compartilhamos cerca de 99% de ADN. É esta pequena diferença de 1% ou, no jargão científico, este defeito, que justifica o humano. Para alguns cientistas, o Homo erectus, que tinha o corpo de um humano adulto mas o cérebro de um bebé, e viveu num período situado entre um milhão e oitocentos mil anos atrás até há apenas vinte mil anos, é a linha divisória: tudo o que surgiu antes dele tinha carácter macacóide; a partir daí tudo se tornou humanóide, o que significa, por esta teoria, que o período de maturação da espécie denominada homo erectus durou qualquer coisa como 63 milhões de anos…Comparativamente, o homem moderno – o homo sapiens – precisou de “apenas” 1 milhão e meio de anos para emergir, há cerca de 300.000 anos atrás. 

Vinda da “noite dos tempos”, a humanidade continua sozinha neste mundo estranho e impiedoso (a predação, toda a sorte de cataclismos, o sofrimento de crianças, aí estão para o ilustrar), onde a vida se alimenta da morte. Quer sejamos ou não a única civilização do universo, o sentido do vasto cosmos e da nossa existência não é humanamente concebível. Esse é um domínio reservado da Natureza (considerando esta uma realidade não física absoluta – seja lá isso o que for - que determina tudo o que existe, aquilo a que os cientistas, à sua maneira, chamam leis da física), um mistério essencial a que ninguém pode aceder. É este “espaço” ininteligível que os homens, assolados pelo desconhecido e pela angústia existencial, preenchem com a sua imaginação e cultura, criando mitos, religiões (não cabe aqui examinar o papel individual e social que estas desempenham), divindades e paraísos celestiais, quer dizer, aquilo que a Natureza não é. Ecce Homo.






POEMA

Manuel Joaquim


https://images.app.goo.gl/UXzEDu35uDjEbHLv5



Ao mexer em papéis antigos, encontrei um conjunto de folhas com textos e poemas escritos, nos anos de 1993 e 1994,  por Gonçalo Leite, um Bom Amigo e Colega, muitos deles dedicados a colegas de trabalho, demonstrando uma rara sensibilidade transmitida numa escrita de qualidade.

Em homenagem a este Colega que não deve ser esquecido pelos demais, com votos de melhor saúde, permito-me publicar com sua autorização, um dos poemas.

“ (Um dia aconteceu que os homens se levantaram de seus leitos – após uma longa noite de pesadelos – e olharam assombrados para as ruas onde cravos e gritos de alegria saiam em conjunto dos interstícios das pedras. Afinal de contas a vida iria tornar-se possível, embora certos corvos andassem ocultos por entre nuvens invisíveis num céu extremamente azul) 
Caiu-te do peito o cravo
que trazias, emprestado;
conseguiste entrar no favo
sem nunca teres trabalhado.

Viste o Sol sorridente,
viste um povo em alegria;
viste-te impotente
para o venceres nesse dia!

Mas o saber esperar
foi a tua obstinação,
para, de novo, humilhar
um Povo, uma Nação!

Da alegria fingiste-te parte,
da frente fingiste ser;
com trabalho e com arte 
conseguiste convencer.

Esta gente desprevenida
em discursos e traições
que até te entregou a vida,
caído nas ilusões.

Dizias que eras do martelo,
E também eras da foice;
no trabalho um desvelo….
E lá escondeste o coice!

Também o punho erguido
era da tua estimação,
mas mudaste de partido,
que era outra a tua missão.

Serviste-te da mentira
para o poder alcançar.
Cuidado, que estás na mira
E um dia hás-de pagar!

Sempre promessas, promessas
De um futuro melhor…
É pena que te esqueças 
que isto está cada vez pior.

Vinte e cinco de Abril,
dia de alegria aos molhos;
hoje as lágrimas são mil
a caírem-me dos olhos.

Porto 20 (Vésperas do 25) Abril 1993

Gonçalo  “

01/11/23

2050

Mário Martins



https://www.google.com/search?q=ponto+de+interrogação




Em 2023, 2050 parecia um ano distante, mas as projecções e cenários já davam uma ideia do que podíamos esperar.”
Revista do Expresso, de 4 de Agosto passado.


“É Quinta-Feira, dia 4 de Agosto de 2050. Está um dia quente como agora está quase sempre. Já não temos uma ou duas ondas de calor por ano como no início do século, são mais de cinco e chegam a durar um mês.” Assim começa o artigo da Revista do Expresso, baseado em estudos prospectivos.* 

As praias e as zonas ribeirinhas encurtaram. A temperatura global aumentou 1,5 C e as emissões de dióxido de carbono continuaram a subir até 2045. As temperaturas máximas começam a chegar aos limites humanos de resposta fisiológica. Os trabalhadores agrícolas, varredores de ruas ou operários da construção civil já não conseguem trabalhar ao sol em determinados períodos do ano e foram criadas regras para os proteger, como o governo espanhol tinha feito em 2023, ao proibir o trabalho ao ar livre em dias de temperaturas extremas.

Somos agora um pouco menos de 10 milhões. Mas se o país tivesse fechado as portas à imigração seríamos menos de 9 milhões, o que, segundo os especialistas, poria em causa o funcionamento da economia. Muitos imigrantes foram abandonando as suas terras para fugir aos problemas criados pelo crescimento acelerado da população. Países como Níger, República Democrática do Congo, Mali, Somália, República Centro-Africana, Chade e Angola, duplicaram o número de habitantes em 30 anos. Além disso, as alterações climáticas tornaram muitos lugares inabitáveis. As pessoas vão ter de sair dessas zonas, senão morrem.

A boa notícia é que algumas das pessoas que tinham mais de 70 anos em 2023 podem ver como é o país em 2050 porque temos mais de 10 mil portugueses com idades acima dos 100 anos: mais mulheres – quase 9 mil – do que homens.

Já em 2022, a Direcção Geral de Saúde alertava para o risco de aparecerem doenças associadas ao aquecimento global, como a febre amarela, infecção por vírus Zika, Dengue ou Malária, para além do risco esperado da prevalência de doenças crónicas. Apontava ainda para o risco das infecções virais com potencial pandémico, para a mortalidade associada ao calor e frio extremos, a resistência aos antibióticos, e as emergências em saúde pública. Foi útil que a Organização Mundial de Saúde tivesse criado em 2023 um grupo de trabalho para preparar a resposta à crise de saúde seguinte, quer fosse uma pandemia, uma crise ligada ao clima ou uma quebra da cadeia de fornecimento de alimentos. 

Os insectos e as algas ganharam mais espaço na alimentação nas últimas décadas, tal como a FAO recomendava, incorporados como ingredientes em alimentos processados e rações para animais.

Nas marmitas de almoço para o trabalho levamos mais alimentos das hortas que existem nos telhados dos edifícios, em terraços, varandas e cozinhas. Também desperdiçamos menos porque Portugal foi obrigado pela Comissão Europeia a reduzir o desperdício alimentar per capita na restauração e em casa, em 30% até 2030.

Agora, nos campos agrícolas, por década, temos mais dois ou três anos de seca severa do que tínhamos no passado e contam-se entre 20 e 45 dias de risco extremo de incêndio todos os anos. 

As cidades tornaram-se mais verdes. Os carros são eléctricos e mais partilhados. Os transportes públicos melhoraram e andamos mais de comboio. Já em 2023, em Berlim, estava a nascer uma cidade dos dias de hoje: sem carros voadores nem arranha-céus, com habitação acessível, ruas quase sem carros, espaços verdes, biodiversidade e um uso eficiente de água e energia. Dentro das nossas casas é praticamente tudo eléctrico e quase 100% com origem renovável.

Quanto à economia portuguesa, as nossas empresas tornaram-se mais digitais porque foi esse o rumo do mundo. Os custos dos equipamentos e da computação foram diminuindo, e houve avanços na neurotecnologia, realidade virtual e nanotecnologia, além de muitas aplicações da inteligência artificial.

Continuamos também a explorar o Espaço. Por exemplo, a NASA e a Agência Espacial Europeia conseguiram levar a espécie humana a Marte, embora a tão falada “colonização” do planeta seja ainda um sonho longínquo. Confirma-se a existência de vida microbiana simples em Marte e Enceladus, uma das luas de Saturno, através do estudo de amostras do solo marciano, trazidas para a Terra.

Somos 9,7 mil milhões, a população mundial deverá crescer até aos 10,4 mil milhões em 2086 e só então começará a diminuir, segundo as Nações Unidas.

O artigo lembra que o retrato de Portugal em 2050 dependerá, em parte, do que os portugueses fizerem do país nas próximas duas décadas e meia.

À guisa de comentário final, 26 anos são um período largo de tempo em que pode acontecer algo de totalmente inesperado que mude as regras do “jogo”. Mas se “é difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro” – frase geralmente atribuída ao famoso físico dinamarquês Niels Bohr, um dos pais da mecânica quântica - é de elementar prudência levar a sério os avisos e recomendações fundados no conhecimento de que dispomos em 2023, o qual permite traçar um 2050 virtual.


*Projecções de População Residente 2018-2080”, INE 2020; “Ageing Report 2021”, Comissão Europeia 2021; “Eurostat Population Projections  2022-2100”, artigos científicos do “Roteiro Nacional para a Adaptação 2100”, APA/FCUL 2022 e 2023; “Migrações e Sustentabilidade Demográfica”, FFMS, 2017; “Plano Nacional de Saúde 2021-2030 – Projecções e Prognóstico”, DGS, 2022; “Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050”, 2019; “Skills Forecast Trends and Challenges to 2030”, OCDE, 2018; “The Future of Food and Agriculture-Alternative Pathways to 2050”, FAO 2018; “Relatório do Estado do Ambiente-Cenários Macroeconómicos para Portugal 2050”, APA, 2022.

CABRA-CEGA

António Mesquita


O vilão do filme, Jean Fournier (um magnífico Melvil Poupaud), alguém que vive de "fazer mais ricos os ricos" gaba-se sempre de fazer a sua sorte que vamos saber depois, passa por contratar dois capangas para fazer desaparecer o seu sócio e ficar com a empresa e fazer o mesmo com o amante da mulher. Prepara-se para despachar a sogra que lhe descobriu o jogo num acidente de caça, quando é alvejado por engano por um caçador furtivo. A ironia forçada no caso deste marido que troçava da mulher por comprar uma lotaria...

Como um Hitchcock filmado em Paris,  o filme prende o espectador do princípio até ao fim, tal é a mestria da sua construção. Mas fica-se com a sensação que a espécie de justiça que nele triunfa - o mau é punido com o seu próprio mal, por obra e graça da deusa do acaso - não corresponde à experiência comum. Se Jean salvasse o seu casamento com mais um  crime às costas, o mundo não deixava de ser o que é. É o espectáculo de todos os dias em toda a parte: a roda da sorte não favorece justiça nenhuma, a não ser na lotaria.

O filme de Allan é um divertimento bem conseguido e o que é o cinema do mestre inglês do suspense? Neste tempo em que as audiências desertaram as salas de cinema em favor do "streaming" de pantufas, herança dos tempos do Covid, só 2% da produção dos estúdios franceses, por exemplo é que que deram algum lucro. O grande cinema tem os dias contados se só contar com o mercado.

Como em obras anteriores, "Match Point" (2005) é o que me ocorre de momento, o conceito de  sorte tem merecido a atenção do realizador. A multidão de adeptos da "raspadinha" estão aí para testemunhar a sua actualidade.

Em "Guerra e Paz",  Tolstoi consagra um capítulo a meio da obra, num arriscado àparte da empolgante narrativa, a esse tema. Por que se deslocaram as forças de vários países europeus para leste em 1812, o ano em que Napoleão invadiu a Rússia? As ínumeras causas dos acontecimentos deixam transparecer a ideia de que ninguém realmente decidiu coisa nenhuma. Simplesmente, aquelas consequências tinham que seguir-se àqueles actos voluntários ou não da  colmeia humana. Não se pode destacar a ambição do famoso corso, nem a susceptibilidade de Alexandre, o czar,  por causa  da desfeita francesa ao duque de Oldemburgo. Diz Tolstoi ( e podemos aceitar ou não a ideia da predestinação que o resultado é o mesmo): " Nos acontecimentos históricos, os chamados grandes homens são etiquetas que dão nome aos acontecimentos, e tal como as etiquetas, não têm senão a mais pequena relação com o acontecimento em si. Cada acto deles,  que lhes aparece como um acto da sua própria vontade, é num sentido histórico, involuntário e relacionado com todo o curso da história e predestinado desde a eternidade".

Oiçamos Schopenauer: "Toda a nação troça das outras e todas têm razão." Razões é o que não falta às diversas partes nos vários conflitos mundiais neste momento. Era preciso decidir numa instância universal incontestávell que não existe. Mas em que seria diferente essa decisão do chamado "julgamento da História", isto é,  se a justiça é diferente da "relação de forças", parece ser o resultado da distância no tempo e do esquecimento. Se não fosse o poema de Homero quem lamentaria Tróia?

Voltando a Woody, um crítico destacou que a  certa altura, este divertimento envia mensagens subliminares à pessoa que assiste no escuro da sala. Como a obsessão com os combóios eléctricos de Jean que faz lembrar, a quem acompanhou o caso, que tal brinquedo figura nas alegações da filha adoptiva de Mia Farrow no célebre processo que envolveu o realizador há alguns anos atrás. A biografia entra subrepticiamento num enredo hitchockiano, como uma assinatura invisível.

Cito as palavras de Owen Gleiberman   sobre "Coup de Chance": "(...) O crime diz bem com Woody Allen. Já sabíamos disso, naturalmente. Sabíamos desde "Crimes and Misdemeanors", o drama que se tornou chocante quando apareceu em 1989 - e se o virmos hoje, é ainda chocante, porque o tema do filme não é só que as pessoas normais cometem crimes (vemos  isso todos os dias no cinema). É que elas parecem perturbantemente normais quando o fazem. Martin Landau como um suave oftalmologista burguês que contrata alguém para matar a sua amante parecia representar a torcida essência de todo o criminoso amador, e o facto de que ele se safou é a parte inquietante. Faz-nos pensar: quantos pessoas como essa andam por aí?"

Diferentemente, neste "Golpe de Sorte", o criminoso não se safou. Foi apanhado pela má sorte, o que a meu ver diminui o filme.
O pensamento do cineasta sobre a vida, certamente motivado pelo a sua experiência pessoal, expressa-se nestas palavras que uma vez proferiu: " Life is full of misery, loneliness, and suffering, and it’s all over much too soon". Todos gostaríamos de acreditar que pelo menos a sorte tem uma venda nos olhos. 

Mas Woody Allen não é talvez um bom guia. Allan Bloom acha que a palavra "eu' é de difícil definição e que "quando Woody Allen se dispôs a ajudar-nos, tornou-se ainda mais difícil fazê-lo." (*)


(*) "The closing of the american mind"

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Para montante do Pinhão, o Douro dispensa a companhia das estradas, concede em relação ao caminho-de-ferro, desde que a linha rompa a pedra dura da montanha e se deixe engolir pelas entranhas desta, espreitando aqui e ali para deleite de quem viaja face à natureza que se deixa surpreender em cada recanto. As estradas envia-as para o planalto, tanto a Norte como a Sul. Voltamos a atravessar o rio à procura da nossa N222 e iniciamos a subida, afastando-nos da leveza da água que viveu connosco os cento e cinquenta quilómetros anteriores. Não é uma escalada, é mais uma subida patamar a patamar ou para não descolarmos da paisagem aqui tratada por mão humana, socalco a socalco, volteando por entre quintas e casas isolados. O rio só o voltaremos a encontrar mais uma vez, antes do fim. Elevamo-nos em altura e afastamo-nos para Sul. O nosso olhar vadia agora entre as cores das folhas da vinha, o verde perdendo espaço para os vermelhos, amarelos e castanhos, numa mistura de encanto irrepetível em cada degrau da montanha que vai descendo como uma cascata. A cor da terra, os muros de xisto, há algo nesta envolvência que nos prende, nos arrebata, nos faz aparecer o mundo com uma candura que nos embala e consola a alma. Os Deuses aprimoraram a mão na construção deste palácio de natureza que parece inovar a cada horizonte que ao nosso olhar se oferece. Os quase riscos brancos que perturbam o azul parecem um esboço de figuras que estão para nascer, uma pincelada que não estraga nem dilui o anil que cobre o fundo como uma protecção do que em baixo se expõe. Ainda estamos longe do cimo da escalada quando paramos no segundo miradouro, um palco onde nos podemos deter e deixar que os olhos absorvam o painel extenso que se estende à nossa frente. São momentos de silêncio, de repouso, sem os atritos da vida nem os obstáculos que a humanidade cria a si própria, pese embora a efemeridade do tempo que nos é concedido viver. A curva delicada do rio, a suavidade das encostas que à distância parecem nuas das cores que fazem nascer o vinho, o matiz da terra num acastanhado acobreado, a pequena vila do Pinhão ao longe, onde o Douro se esconde numa outra curva fechada, o sossego das montanhas como cordilheira estendida, os tons de verde e o cromático das folhas que apresentam o início do Outono. Há bonança nesta perfeição que vemos, desenhada com cuidado e temperança, com o brilho de quem não sente perturbado o ambiente no momento da criação. De que necessita mais a humanidade para além desta natureza paisagística para obter o que tanto procura e parece quase não encontrar, esse estado a que ela própria define como ventura, satisfação, alegria? E no entanto, se deslocarmos o pensamento para além deste horizonte, só vislumbramos sombras, céus plúmbeos, Deuses impiedosos servidos por fanáticos de mente deformada e demente desenterrando passados bíblicos, fantasias ficcionadas em nome das quais arrasam tudo o que não se conforma com os seus pesadelos. Como podemos deixar que a história se repita a cada século?! Como é possível é a pergunta que nos acompanha por estes dias, sem resposta, sem solução e com a convicção que estes alienados podem vencer, impor a sua loucura, pouco se importando se enterram, povos, história e a própria humanidade. E podem vencer porque se sentem apoiados “pelos senhores à força, mandadores sem lei” que desfilam pelos seus palácios para servir em taças douradas o fel do seu poder desmedido, sem se darem conta que o chão a seus pés se derrete levando-os de vez para o altar do inferno, mas com o risco de arrastar a humanidade para esse flagelo. Olhando com a alma embotada pelos pensamentos, apelamos à música de Savall dedicada aos Bórgia, aquele lamento desesperado na morte de Lorenzo O Magnífico, o pranto e a dor misturados numa nascente de água jorrando pelas faces, caindo desamparada na pedra nua, “quem trará água ao meu manancial? Quem será a fonte de lágrimas para os meus olhos, para chorar de noite e de dia”. No canto e nos sons da música, pressente-se o grito das pedras da calçada quando o lúgubre cortejo passa. É um grito humano face ao destempero mental de vampiros sedentos que só saciam a sua raiva violenta no desprezo brutal por tudo quanto é a vida. De novo, e mais uma vez, voltamos a saber por quem os sinos dobram. Não queremos, nem desejamos sair do êxtase deste desenho tão natural e tão belo com a música soberba criada pelo catalão. Sacudimos a alma com desespero para acordarmos deste pesadelo e em voz alta dizemos, para nos separarmos desta realidade tão abrumadora, “Ó meu amor, não acredites na vida mesquinha, não duvides. Dá-me a tua mão e vamos partir por essa estrada fora direitos ao céu!”(1). Ervedosa do Douro está ali a dois passos e a vila de S. João da Pesqueira um pouco mais adiante. São já terras beirãs no alto Douro. O seu património são as vinhas. Do ponto de vista arquitectónico não há muito para ver e sentir, não porque falte passado a estes espaços territoriais, mas antes por não serem local de passagem, mas de estio. Quando o caminho nos levar para Vila Nova, subiremos à aldeia de Trevões para encontrar o que está em registo, mas hoje, ficamos por aqui. Descobrimos a parte mais antiga desta pequena vila, um quase quadrado um pouco afastado da estrada com a sua Torre do relógio e uma mistura do antes com as melhorias do presente sem parecer que estraga ou desfeia. 




[1] Raul Brandão em “Os Pescadores”, Frenesi, Lisboa, 2002

DAVID E GOLIAS

Manuel Joaquim


"David com a cabeça de Golias" de Caravaggio




Há dois dias a minha neta estava a estudar para a escola a Convenção sobre os Direitos da Criança. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos a ONU declara que as crianças têm direito a ajuda e assistência especiais. Reconhece também que para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade a criança deve crescer num ambiente familiar, feliz, com amor e compreensão, ser educada num espírito de paz, dignidade, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade. A convenção foi adoptada pela ONU em 1989, é válida em Portugal desde 21 de Setembro de 1990 e foi aprovada por 196 países.

Vendo os telejornais, deparamos com imagens e comentários sobre a morte de milhares de crianças e muitas mais feridas em resultado de bombardeamentos indiscriminados sobre populações indefesas. Como é possível isto acontecer e ouvir comentários de ilustres personagens da nossa terra a defenderem a continuação da guerra e não pronunciando uma única vez a palavra PAZ? Esta gente terá mente saudável? Não é possível! 

Como será o comportamento daquelas crianças e daquela gente que escaparem à morte, mesmo estropiadas, perante a sociedade e os seus inimigos? 

A sociedade não está a voltar à idade média como alguns dizem. A Idade Média foi um período onde apareceram condições para a organização da sociedade em novos moldes, para a criação das universidades, para o desenvolvimento das artes e das ciências. Em resultado das guerras a sociedade está simplesmente a ser destruída, o seu património e conhecimento destruídos.

Estamos em pleno período da discussão e aprovação do Orçamento do Estado para 2024. É do conhecimento de toda a gente os problemas nas áreas da saúde e da educação. Com a possível aprovação de 2% do PIB para o sector militar por imposição da NATO, para alimentar guerras, como vai ser o futuro?

Quando era criança, os meus Pais contavam-me uma lenda, a lenda de Pedro Sem, que era um mercador muito rico, com muitos barcos, e que, um dia, uma grande tempestade naufragou-os todos com todas as riquezas que possuía. E Pedro Sem passou a ser o Pedro sem Vintém. 

João Correia Nunes, autor do romance histórico A Nora e os Alcatruzes, descreve a situação de Nuno Tristão, “em meia dúzia de anos de pescador quase modesto passou a principal armador do burgo e dos mais influentes homens bons da Câmara”. Que “ tinha na altura já mais do que precisava, mas menos do que queria” Meteu-se em grandes negócios e na política e o destino levou ao naufrágio de toda a armação. A desgraça chegou.

Miguel Esteves Cardoso, homenageado em Penafiel entre 23 e 29 de Outubro, na “Escritaria 2023”, numa das suas crónicas diárias, na passada sexta-feira, 20 de Outubro, no Público, com o título “A teimosia competitiva”, escreveu:
“A erosão existe. Está a ver aquela arriba majestática que preside à Praia das Gaivotas? Desabou. Levou tempo. Mas desabou. E sabem que mais? Não foram as vagas da tempestade que a deitaram abaixo: foram as ondinhas da manhã seguinte.
A chateza persistente é a fisga de David perante a cagança de Golias. David deve ter atirado duas mil pedradas e Golias virado de costas, a conversar com os fãs. Mas, a certa altura, Golias baixa-se para ver se apanha um mosquito que lhe está a picar a canela, e põe-se a jeito para levar com um calhau nos cornos.
Como se diz em latim, “Eu não tenho nada, mas sou chato como a potassa”?
Quantas pessoas fazem ideia do mal que passaríamos neste mundo sem a potassa?”.

Hoje, David está a usar mais que pedradas. Leva tempo mas tudo pode desabar.  E nada será como dantes.

01/10/23

195

ALÔ? ALÔ?

António Mesquita

Marcel Proust, ao estilo de Picasso, pela I.A.


"Como todos nós agora, eu já não achava suficientemente rápida, nas suas bruscas mudanças, a magia admirável à qual alguns instantes chegam para que apareça junto de nós, invisível mas presente, o ser com quem queremos falar, e que permanecendo à sua mesa, na cidade que habita (para a minha avó era Paris), sob um céu diferente do nosso, com um tempo não forçosamente o mesmo, no meio de circunstâncias e de preocupações que nós ignoramos e que esse ser nos vai dizer, se acha de repente transportado a centenas de léguas (ele e todo o ambiente em que continua mergulhado) para junto da nossa orelha, no momento em que o nosso capricho o ordenou." (*)

Marcel admira-se do milagre do telefone, que desde o final do século XIX, lhe permite , através da voz, ter junto de si a presença do ente querido que está, noutra cidade,  a muitos quilómetros de distância. 

Acho que, com a habituação e a banalidade dessa ferramenta, hoje nós perdemos o sentimento desse "milagre". A voz que nos chega pelo smartphone é algo de desligado do ser que convocamos. Não vem à nossa presença a pessoa que fala do outro lado. Já Mc Luhan, o mediólogo canadiano dizia "medium is message". Quer dizer, neste caso,  o telefone mais do que transmitir a palavra à distância, modifica, subtilmente, a nossa relação com os outros. 

O mesmo se estará a passar com a imagem, a extática da fotografia e a que mexe do vídeo que hoje entraram na nossa vida graças à fada da tecnologia. O alvoroço com que recebemos estas inovações gastou-se depressa. E o que nos parecia um enriquecimento da nossa experiência e da nossa memória cedo nos deixa a sensação do logro, porque esses suportes nunca substituirão a realidade, nunca nos aproximarão dos vivos, nem nos trarão de volta os mortos.

Um efeito inesperado desses novos meios de comunicação é o de esquecermos mais depressa o que é importante e de perdermos, sem nos apercebermos disso, o acesso ao passado. As imagens tornam-se efígies das pessoas que representam, "protegendo-as", se já não fazem parte do mundo dos vivos, de eventuais intromissões no seu "sono eterno".

Era essa, talvez, a primitiva função dos túmulos - a de protecção contra os espíritos e, nalguns casos, de preparação para a outra vida.  Suleiman, um dos chefes muçulmanos que, segundo Chateaubriand, se encontrou com Napoleão no interior da grande pirâmide, terá dito nesse cenário, referindo-se ao famoso faraó: "Era um poderoso rei do Egipto, cujo nome se crê ter sido Quéops. Ele queria impedir que qualquer sacrilégio viesse perturbar o repouso da sua cinza."

Dou-me conta, nesta altura, e depois de ter grifado algumas palavras para obviar ao seu sentido literal e "démodé" que nem assim me livro de leituras desviantes. Precisaria de usar mais aspas,  menos porque a nossa é, claro, a "era da suspeição", mas porque a avalanche da informação desvalorizou a tal ponto o sentido "consagrado" que só nos resta ser prolixos. 

É ainda, como se percebe, o problema que enunciei com a citação de Proust.
Não se trata de maldizer a tecnologia que é parte do chamado progresso. Feliz ou infelizmente, só podemos constatar que é ele (ou o sistema de que faz parte) que nos conduz inexoravelmente ao desconhecido. 

Como dizia Raul Brandão, "sejamos humildes, porque a gente chega ao fim da vida sem ter entendido nada deste mundo, quanto mais do outro..." 
  
O outro mundo do Raul não é o dos almas penadas. Num certo sentido, é  o mundo novo com que tantos sonharam.

(*) Marcel Proust, "Du Côté de Chez Guermantes"

AINDA A IA: O CONTRADITÓRIO

Mário Martins

https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=intelig%C3%AAncia+artificial




Um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal. Os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que essas ordens entrem em conflito com a primeira lei. Um robô deve proteger a sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.”

As 3 leis (ou regras) da robótica, definidas pelo celebrado autor de ficção científica Isaac Asimov, no seu livro “Eu, Robô”, publicado na década de 50 do século passado.

(O mesmo autor viria, mais tarde, a definir um quarto princípio, segundo o qual “Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.”)

“O maior risco da Inteligência Artificial é a Estupidez Artificial. Não conheço um único caso até à data de danos causados por Inteligência Artificial demasiado inteligente.”

Pedro Domingos
Revista do Expresso, 23Jun2023


E se a solução dos potenciais riscos da Inteligência Artificial (IA) fosse mais IA?

É essa a tese de Pedro Domingos, professor de Engenharia Informática na Universidade de Washington. Para o autor, “Os potenciais benefícios da IA são extraordinários: curar doenças, gerir melhor as cidades e o ambiente, gerar riqueza, fazer novas descobertas científicas, (e) o maior perigo é que a obsessão com os seus riscos nos leve a perder esta oportunidade sem par.”

No seu artigo, Pedro Domingos refuta, ponto por ponto, os riscos apontados pelos críticos da IA, classificando-os em existenciais e (diria eu) relacionais.
Pedro Domingos começa por apontar um erro genérico, “que subjaz à visão pessimista da IA, que é a chamada ‘falácia do homúnculo’, a ideia de que dentro de cada sistema de IA existe um ‘mini-homem’ com todas as características dos seres humanos: emoções, desejos, preconceitos, intenções, motivações, autonomia, até mesmo a consciência.” Este erro, sublinha o autor, “é natural e muito comum, porque os seres humanos raciocinam por analogia e quando vêem um sistema comportar-se de forma inteligente imediatamente projectam nele as outras características das únicas entidades inteligentes que conhecem: os seres humanos e outros animais.”

Caberá aqui mencionar, a propósito, o Professor António Damásio, para o qual (cito de memória) “as emoções têm estado demasiado ausentes das mesas das conferências”. 

Na visão optimista de Pedro Domingos “A inteligência artificial é extremamente diferente da humana (…) Os algoritmos de IA são apenas isso: algoritmos, ou seja, sequências de instruções dadas por nós que o computador executa sem se desviar um milímetro. O alarmismo em torno da IA foca-se em particular nos algoritmos de aprendizagem automática, (em que) o computador desenvolve os seus próprios algoritmos a partir dos dados (…) A fonte do alarme é a ideia de que quando o computador começa a aprender por si próprio é impossível prever o que vai aprender e pode começar a fazer coisas arbitrariamente malignas. Mas isto é uma ilusão. Os sistemas de aprendizagem automática, como muitos outros, são governados por objectivos fixos (…) O sistema faz uma vasta procura para encontrar o melhor modelo de acordo com estes critérios (…) É física e matematicamente impossível que o sistema decida por si próprio começar a evoluir noutras direcções, por exemplo para satisfazer os seus próprios desejos (que não tem).”

“E se a IA decidir que a melhor forma de atingir os seus objectivos é exterminar a Humanidade? O problema aqui não é a maldade da IA, mas a sua incompetência. E a solução para a incompetência é mais inteligência, não menos. E se, apesar de tudo, a IA seguir o caminho errado? Sendo muito mais inteligente do que nós, não nos será impossível detectá-lo? Não. Tecnicamente a IA é o subcampo da informática, que procura resolver problemas intratáveis, isto é, problemas que, no pior caso, demoram tempo exponencial a resolver, mas cujas soluções podem ser rapidamente verificadas. E mesmo que uma malévola IA ao nível da humana surgisse amanhã, teria poucas hipóteses contra nós. Os nossos cérebros têm maior capacidade computacional total, as nossas necessidades de energia são vastamente menores, a nossa mobilidade e dexteridade são muitíssimo melhores, aprendemos mais a partir de muito menos dados, temos milhões de anos de experiência de combater adversários, etc.. A possibilidade de a IA exterminar a Humanidade pertence aos filmes de ficção científica, não à realidade.”

Ao nível dos riscos (que eu tomei a liberdade de classificar como relacionais), um deles “é que a IA conduzirá a um aumento maciço da desinformação on line, os humanos serão facilmente manipulados por ela, e isto será o fim da democracia. (Mas, segundo o autor,) “A realidade comprovada por vários estudos é que a desinformação on line pouca diferença faz. Os mass media, por exemplo influenciam muito mais os eleitores. Além disso, a quantidade de desinformação on line é já vasta, e o limite principal é o da nossa atenção, não a capacidade de produção que a IA aumentaria. (…)
Nos anos 50 a preocupação era que os anúncios de televisão nos manipulariam com grande facilidade, mas as pessoas rapidamente aprenderam a não lhes dar credibilidade, e o mesmo começa já hoje a acontecer com o ChatGPT. Mais importante, no entanto, é que a melhor forma de combater a desinformação on line é precisamente através da IA (…) O grande problema é que em muitos casos a IA ainda não é suficientemente sofisticada para detectar a desinformação. A solução, mais uma vez, é mais inteligência, não menos.”

Quanto ao risco de desemprego, o autor sublinha que a Revolução Industrial, que automatizou o trabalho manual, não levou ao desemprego em larga escala, criando, pelo contrário, muito mais empregos do que eliminou, e que o mesmo acontecerá com a IA. Considera ainda que a IA é a melhor solução para aumentar a produtividade e, assim, compensar o envelhecimento da população.

Por outro lado, como não podemos impedir o uso da IA por regimes autoritários para fins repressivos, a solução é desenvolvermos a nossa IA melhor e mais rapidamente do que a desses regimes, tal como “a melhor forma de combater o uso da IA por criminosos é assegurar que a Polícia tem melhor IA”.

O tempo dirá, enfim, qual das duas visões estará mais próxima da realidade. Esperemos que seja a optimista…

UMA ASSOCIAÇÃO EMÉRITA

Manuel Joaquim

https://www.rostos.pt/inicio2.asp?cronica=12001370




Em 14 de Julho de 2011, constituiu-se a “ Associação Conquistas da Revolução – Defender Abril * Construir o Futuro”, para, de acordo com o Artigo 3º dos seus Estatutos, “preservar, divulgar e promover o apoio dos cidadãos aos valores e ideais da Revolução, iniciada em 25 de Abril de 1974, esse que foi o momento mais luminoso da História de Portugal, cultivando o espírito revolucionário e a consciência social progressista, com a construção de uma democracia política, económica, social e cultural amplamente participada, que a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1974, viria a consagrar”.

A Associação, Artigo 4º, “organizará, por iniciativa própria ou em colaboração com outras entidades nacionais ou estrangeiras, conferências, colóquios, seminários e outros eventos de natureza cultural publicando sob o seu patrocínio ou contribuindo para a publicação de boletins, livros e outros tipos de comunicação, designadamente em artigos de revistas e jornais”.

Em Outubro de 2016,

publicou em livro, com o título “ A CONQUISTA DOS DIREITOS DEMOCRÁTICOS - 40º Aniversário da Constituição” uma compilação de textos com as intervenções realizadas no Ciclo Comemorativo do 40º Aniversário da Constituição da República, promovido pelo núcleo do Porto, 

em 28 de Março de 2015, 

por António Madureira - arquitecto, professor jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, participante no CRUARB, Baptista Alves - coronel engenheiro da Força Aérea, reformado, Director do SAAL, foi autarca no Município de Sintra, sobre “Direito à habitação – intervenção participada na cidade – Os projectos SAAL e CRUARB”;

em 9 de Junho de 2015, 

por Alfredo Maia – jornalista do Jornal de Notícias, foi Presidente do Sindicato dos Jornalistas, Pedro Tadeu – jornalista do Diário de Notícias, Rui Pereira – foi jornalista, investigador e docente universitário, sobre “ O direito à informação na Constituição da República e o quadro actual”;

em 14 de Abril de 2016, 

por Guilherme da Fonseca – juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional, José Castro Carneiro – Coronel de Infantaria, reformado, foi um dos Capitães de Abril no Porto, Manuel Freitas – dirigente sindical têxtil, Mestre em Sociologia do Trabalho pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sobre “A conquista dos direitos democráticos nos campos jurídico, militar e laboral”.

Tão importante como os textos publicados é a Introdução efectuada por Jorge Sarabando, moderador dos debates realizados e coordenador do núcleo do Porto, onde faz a história do 25 de Abril até à actualidade.

O problema da habitação é actualmente um dos problemas mais graves em Portugal. A política de habitação que se pretendeu desenvolver logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, se  tivesse continuidade, hoje, a realidade seria muito diferente para muito melhor. A leitura dos textos da iniciativa de 28 de Março de 2015, permite compreender a situação.

Os textos sobre o direito à informação, muito interessantes, devem ser complementados com o livro publicado em 2017 “O 25 de Novembro e os Media Estatizados”, de Ribeiro Cardoso. É um livro de leitura obrigatória para quem pretender estar informado sobre acontecimentos que marcaram o processo da revolução portuguesa. Os saneamentos na RTP, a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português, os afastamentos no Dário de Notícias, O Século, a Anop, o República, a Renascença, são assuntos tratados com rigor, que devem ser conhecidos e meditados.

A Associação tem realizado desde 2018 jantares comemorativos do 25 de Abril, com intervenções de Alfredo Maia, D. Januário Torgal Ferreira, Juiz Conselheiro Noronha Nascimento, Prof Sandra Tavares, Coronel Delgado Fonseca, Pedro Tadeu, prof Ana Sofia Ferreira, quase sempre com intervenções musicais de Eduardo Baltar Soares e Nuno Meireles.

Em 2019 realizou uma sessão comemorativa do 31 de Janeiro, com Sargento Lima Coelho e o jornalista Júlio Roldão.

Comemorou o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, que aconteceu em 3 de Maio de 1921, com concerto em Valadares com Fausto Neves, Manuel Rocha, Carlos Canhoto, Hugo Brito, Alexandre Weffort, Olga Dias, com intervenção do Coronel Baptista Alves; colóquio na Câmara de Matosinhos, com Comandante Henrique Mendonça, Coronel Castro Carneiro, Profs. Avelãs Nunes e Manuel Loff e Jorge Sarabando; produção de medalha comemorativa, do artista Acácio Carvalho; exposição evocativa com apresentação do livro “Cem cravos para Vasco Gonçalves” com o Prof. Avelãs Nunes e Jorge Sarabando; Colectânia documental sobre os eventos realizados no âmbito da comemoração.

Realizou na Fundação Engº António Almeida, um Acto de homenagem a Salvador Allende e aos democratas chilenos, 50 anos depois do golpe de Pinochet, com Cátia Martins, Roberto Merino, Cidália Santos, Ana Ribeiro, Grupo Maduro Maio, Guilhermino Monteiro, Hugo Brito, Paulo Vaz de Carvalho e Pedro Marques.Encontros com Frei Bento Domingues, Prof Sérgio Branco, D. Januário Torgal Ferreira, Jorge Sarabando, Pezarat Correia, Augusto Baptista, coronéis Castro Carneiro e Baptista Alves, com publicações numa série chamada “Cadernos de Abril”.

No passado dia 22 deste mês de Setembro, no Auditório da Biblioteca Municipal Florbela Espanca, da Câmara Municipal de Matosinhos, realizou-se um Encontro com o Almirante Martins Guerreiro, militar de Abril, com intervenções dos Comandantes Américo Rodrigues Soares e Mário Simões Teles, que teve um momento musical com Pedro Marques. As intervenções destes dois Comandantes foram de homenagem ao Homem, ao Cidadão e Revolucionário Almirante Martins Guerreiro.

O Almirante Martins Guerreiro, na sua intervenção contou episódios da organização e da  luta política antes e após o 25 de Abril, muitos desconhecidos da maioria dos assistentes ao acto.

Mais documentos para a história do 25 de Abril de 1974, que certamente vão ser publicados nos próximos tempos, que devem merecer a melhor atenção.
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