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01/11/22

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva







A madrugada ia terminando o seu caminho com os primeiros rumores do trabalho. O silêncio que subjaz à noite começava a ser penetrado por um crescendo de ruídos. Rostos dormentes embarcavam nos transportes em direcção a um dia longo de canseiras. É o momento do dia em que os sorrisos ainda carecem de coragem. Com o correr do tempo a multidão alastra e move-se agora a um ritmo mais apressado. O sol despontou e ergue-se também ele mostrando a fadiga de uma volta ao planeta. O burburinho da estação com os olhares nos ecrãs, procurando linhas e horários. Sentamo-nos no longo banco de pedra, voltados para Oriente para onde nascem os raios de luz que nos acolhem e confortam. No horizonte surge, lenta e silenciosa a velhinha 1400 laranja que só quando acelera se denuncia com o trabalhar crepitante do motor. Acolhe-nos a carruagem vermelha e branca recuperada do cemitério onde a quiseram esquecer. Confortável e de janelas amplas que se podem abrir. Sentirmos de novo o vento a roçar na face, faz-nos viajar para outra época. A linha estende-se ao longo de casas e ruas enquanto a paisagem não se despe do tecido urbano, mas aos poucos vão surgindo os campos verdes, já sem o brilho do estio, sentindo-se até alguma tristeza outonal. Percorremos as terras do Sul do Entre-Douro e Minho, berço da nação e das suas primevas casas senhoriais, senhores feudais de largos senhorios. O Outono ainda não semeou as suas cores melancólicas. O verde predomina pelos campos de cultivo e as pequenas florestas arbóreas. Quando a composição se volta para Sul, penetramos no longo túnel de gratas lembranças de uma infância de há muito. O extenso túnel, o comboio vagaroso, as lâmpadas de uma luz amarela empobrecida iluminando rostos já cansados da viagem que já levava mais de duas horas. Por fim, daquela boca escura saía com fragor a poderosa máquina a vapor, rodando entre as paredes da montanha acelerando ainda um pouco mais até ao apeadeiro no final da curta recta. Ao descermos para o negrume da noite lá encontrávamos a senhora Milinha com um candeeiro para nos iluminar um pouco do carreiro ao longo da linha até à vetusta casa de pedra sem corrimão auxiliador nas escadas. Por ali ficávamos uma semana, entre o calor que descia da ramada extensa que cobria o terreiro enquanto uma frágil corrente de água cantava dia e noite tombando no tanque que aparava a fonte. Quando o comboio silvava corríamos pelo estreito caminho para fantasiarmos mundos enquanto olhávamos assombrados as vielas movendo as enormes rodas entre cores de vermelho e preto. Foi assim durante vários anos pelas terras de A Sibila, até que um dia tudo acabou. Agora a saída do túnel é rápida e já não se escuta o silvo que alertava para a presença do comboio que aparecia do interior da terra. A casa de pedra ainda lá reside, modernizada, com o granito coberto e paredes de um branco puro. Os tuneis sucedem-se e quando o olhar já procurava a nitidez da luz, vimo-nos sobre o Tâmega sobre uma albufeira que faz engrossar o caudal, elevando-o, fazendo-o adquirir a forma de lago a embelezar a paisagem. Por baixo da mansidão destas águas ainda resta a ponte onde os bravos do General Silveira detiveram os franceses de Soult. Entramos em declive, lento e prolongado e quando de novo tomamos o rumo para Leste, surge então o Douro, num dos seus expoentes de beleza. O olhar sente-se agradecido e as imagens sucedem-se sem que consigamos desviar a atenção. Procuramos gravar o que vemos, mas tudo é demasiado elevado para uma memorização suficiente e nítida. É um momento de grande majestade do rio. O lago imenso, as montanhas descendo com delicadeza sobre as suas margens. Em frente, enquanto a linha vai deslizando em curva, o Bestança, forma um recanto suave e no encontro das águas aparece-nos aquele pequeno núcleo de Porto Antigo, de onde não nos apetece sair quando por ali passamos. Ainda pasmados vemos surgir a brancura do rendilhado da bela ponte de Mosteirô. A partir daqui, temos o Douro e a linha. Deixamos de pensar e permitimos que o olhar saia pela janela e vá vadiar pelo encanto que a paisagem oferece. Como num álbum em que viramos a folha e sorrimos com todo o rosto ao ver fotografias que admiramos, é também assim este rio que desce para o mar enquanto subimos para a soberba dos socalcos vinhateiros. A linha curvando com delicadeza como se colocando numa posição que nos permita observar a enseada de Aregos, a quietude das águas, o rumor do silêncio como uma névoa bailando sobre o casario e a imaginação a levar-nos na companhia do Eça pela encosta acima. O comboio agora balanceia com doçura e o que nos rodeia é de certa forma ainda o século XIX com aquele ar romântico que nos faz pensar em aldeias perdidas no tempo. Quando acordamos, passávamos já pela aldeia de Agustina agora parte da cidade maior. Ultrapassadas as pontes, o fascínio persiste com mais delicadeza. Deixamos de pensar, limitamo-nos a usufruir de uma sensação irrepetível. O comboio, o rio e na margem oposta a mais bonita estrada do mundo como lhe chamaram. Há um misto de realidade e devaneio no que vemos e, sobretudo, no que sentimos. Uma última curva, a composição parece inclinar ligeiramente, enquanto atravessa a pequena ponte sobre o rio Pinhão que proveniente das alturas de Jales se entrega nos braços do Douro, rumando ambos sem pressa para o oceano distante. Em frente a ponte maior nos seus três meios arcos a proteger o tabuleiro e a pequena vila que continua sem perder o ar de aldeia. Ficamos enquanto a 1400 prossegue o seu caminho até ao Pocinho, desde que lhe vedaram a passagem até Barca d’Alva, esta pequena aldeia que nos traz sempre a memória de Adriano, “Foi em Barca d´Alva, quando o sol nascia, uma ceifeira cantava, cantando vertia, trovas na fronteira, quando o sol nascia”. Deambulamos pela rua com o pavimento revestido pelos fatigados cubos de granito que ali permanecem desde a infinitude dos tempos. A paisagem altaneira que protege o rio, ainda não se engalanou com as cores outonais. Passeamos o olhar pelos azulejos da estação com as suas representações vinhateiras, à sombra das quais tem vivido o Pinhão. Sente-se no ambiente o remanso dos tempos correndo com lentidão, como se o movimento parasse, se acomodasse no deslumbre do que os olhos vêem. Mas de facto, a vida prossegue. De regresso à estação, o sol estende-se como um afago sobre as flores que se escondem nos canteiros. Escuta-se uma curta buzina leve e a 1400, já se aproxima quase em silêncio para nos levar de retorno na companhia do Douro. Já não é a laranja, mas a azul a que leva desenhada as asas de uma gaivota. É no dorso dessas asas que nos sentimos na descida do Douro até à cidade junto ao mar. 

ESPERANDO PELA PAZ

Manuel Joaquim



Wikipedia-Disparos de armas de artilharia anti-aérea durante um bombardeio de aviões da OTAN a capital da Iugoslávia, em 1999.




Com a entrada de tropas russas na Ucrânia, em Fevereiro de 2022, foram dadas notícias muito destacadas que não tinham existido guerras na Europa desde o fim da 2ª guerra mundial até agora. Utilizando uma expressão do meu Amigo Jorge Cruz, os alcagotes que diziam e dizem isso, querem desinformar que após o fim da 2ªa guerra mundial, os conflitos mantiveram-se sempre. A divisão da Alemanha, a formação da Nato e depois a formação do Pacto de Varsóvia como resposta, as tentativas de subversão em alguns países, a recusa por parte da Nato/EUA da aceitação de negociações para a fusão das duas Alemanhas, as campanhas de provocações sistemáticas que podiam ter levado a novos conflitos bélicos.

A Jugoslávia sofreu a partir dos anos de 1980 ataques sistemáticos contra a sua economia, foram criados e alimentados grupos armados na Bósnia, no Kosovo e na Macedónia, Na madrugada de 24 de Março de 1999, a Nato iniciou o bombardeamento da Jugoslávia. A cidade de Belgrado, capital do país, foi bombardeada. Hospitais, aeroportos, prédios governamentais, fábricas, infraestruturas, igrejas, museus e zonas históricas, foram destruídos. A Nato justificou o ataque efectuado aos geradores de energia de um hospital infantil para salvar vidas mas o que aconteceu é que muitas crianças que estavam nas incubadoras e outras faleceram por falta da energia. Uma fábrica de tabaco foi bombardeada para causar efeitos psicológicos aos fumadores.

Aconteceu que nessa ocasião bombardearam de forma intencional a embaixada da China. Como já referi em artigo anterior, a China não se esquece e não perdoa. Isto é a prova de que os problemas com a China não são de agora, mas são desde 1949, ano da Revolução Chinesa.

O Prof Michel Chossudvsky, do Canadá, professor do Centro de Pesquisa em Globalização da Universidade de Otava, Canadá, acabou de apresentar, em 21 de Outubro de 2022, em Belgrado, o livro “A guerra de Agressão EUA – OTAN contra a Jugoslávia”, publicado pelo Fórum de Belgrado em 2021, que deve ser lido.

Em 2014 EUA/Nato investiram fortemente na desestabilização da Ucrânia. Organizaram um golpe de estado violento, depondo o presidente e governo eleitos segundo as regras consensualmente estabelecidas. As novas autoridades passaram a estar ao serviço de interesses que até aí não eram aceites pelas populações. A dinâmica do processo político desenvolveu-se de tal modo que os russos decidiram intervir. Hoje, o conflito, já não é mais entre a Ucrânia e a Rússia. Hoje é um conflito entre EUA/Nato e a Rússia.

Espero que durante o mês de Novembro se encontre o caminho para a PAZ.

INSONDÁVEL NATUREZA

Mário Martins


https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=besta+imagens




Hoje a pergunta (…) talvez seja esta: és um humano ou uma besta? Porque as bestas dos tempos modernos (…) sem cauda, nem marcas maldosas muito evidentes, não se distinguem dos humanos a não ser quando agem.”
Gonçalo M. Tavares
Revista Expresso de 9Set2022
 


Chamam-te, a ti Natureza, - desculpa este tratamento de colegas de escola, mas o tratamento por você seria feio, e por V. Exª. demasiado cerimonioso e fora de moda, e de qualquer modo, tu és uma escola de vida e de morte -, chamam-te, com todo o sentido, Mãe, porque todos nascemos do teu “ventre”, com a radical diferença de ser impossível cortar o cordão umbilical.

Dispensas divindades porque és absoluta, és a causa de ti própria, em ti não há antes nem depois.

Não te confundes com o universo físico, ao qual faz sentido interrogar o que existia antes dele e o que será no futuro.

És imaterial e intangível. Parafraseando a conhecida máxima do Livro de Tao, “Toda a gente te conhece e, contudo, ninguém te conhece.”

És todo-poderosa mas imperfeita, porque facultas a beleza e o bem estar à custa do sofrimento e do absurdo da morte. E porque dotaste o ser humano de um comportamento indesejável. O teu sentido é não teres sentido.

Por isso, és um alfobre de deuses para uma espécie humana que, no fundo, não te aceita tal como, a seus olhos, te apresentas. 

Vivendo o ser humano a sua condição naturalmente imperfeita, não se pode tomá-lo como padrão do bem. O erro, muito comum, em que até um pensador e escritor de créditos firmados como Gonçalo M. Tavares incorre, está em confundir o humano com o humanitário. 

O humano é o que é, tão capaz do bem como do mal. Não só as bestas de que fala o autor são igualmente humanas como, pior do que isso, cada um de nós carrega em si um exemplar, pronto a acordar e a fazer estragos, reunidas as condições propícias.
Hélas!

VIAGEM AO ANTROPOCENTRO

António Mesquita




"Desce à cratera do Yocul de Sneffels que a sombra do Scartaris vem beijar antes das calendas de Julho, ó viajante audaz, e tu chegarás ao centro da Terra. Eu o fiz."

Arne Saknussemm.



É, bem avançados no romance de Júlio Verne, "Viagem ao Centro da Terra", que a cifra do manuscrito dum alquimista islandês do século XVI, Arne Saknussemm, é desvendada. Como se o feito em si de chegar ao âmago do planeta devesse ser escondido a sete chaves do resto da humanidade. Porquê? O professor Lidenbrock e o seu sobrinho Axel, o narrador, acompanhados de Hans  um guia local, munidos das suas lâmpadas Ruhmkorff, afinal descobriram um outro mundo de luz, com um mar interior, atmosfera, e animais exóticos a alguns quilómetros de profundidade...

Sabemos que  os três exploradores não atingiram o fim da viagem porque uma explosão por eles provocada os expeliu pela cratera do Stromboli, o vulcão da Sicília, a 5 mil quilómetros de distância do ponto de entrada da sua expedição.

O filme "Il Buco" (entre nós, "Das Profundezas") de Michelangelo Frammartino (prémio do 78o. Festival de Veneza) aparentemente não foi inspirado por Júlio Verne, mas pela façanha de  Giulio Gècchele de 1961. Um grupo de jovens espeleólogos piemonteses dirigiram-se para o sul, na Calábria, para explorar o fundo do Abismo do Bifurto, a 682 metros abaixo da terra, a mais profunda gruta de Itália. 

A paisagem montanhosa é um cenário de majestade com um velho pastor que fala a linguagem do seu burro. Como na reportagem da escalada da Torre Pirelli, em Milão, que aparece ao princípio, os milionários que sobem, vendo os habitantes da torre como pássaros nas suas gaiolas, têm a sua o onomatopeia.

Há assim três linhas narrativas que se entrelaçam com o fundo quase documental da descida ao Bifurto. O da reportagem milanesa sob o signo da curiosidade  inútil, o do velho pastor e testemunha (António Lanza) que cai a meio do filme para não mais se levantar ( a sua morte coincide com o momento em que o fundo do despenhadeiro é atingido, com o gesto do explorador "trancando" o empreendimento) e, claro a proeza de espeleologia que não tem rostos, nem palavras, apenas as magníficas imagens de Roberto Berta, veterano de Godard e Resnais.

As páginas incendiadas da revista Epoca com as fotos de Kennedy ou Sofia Loren parecem-se um pouco com a auscultação do médico no casebre do pastor. A sala de cinema, com as suas luzes de presença, nas cenas em que a acção ocupa uma luzinha no canto do écrã, é, de resto, o anticlímax, ou a distância brechtiana que impedem a ilusão dramática.

Culminando o fim da "descoberta" o cartógrafo do grupo desenha a figura da gruta  até ao fundo, pronta para um novo esquecimento de arquivo. Frammartino fala numa espécie de colonização.

A estas histórias paralelas, poderíamos acrescentar, sem que esteja no filme, mas sim, porventura, na memória dum espectador da minha geração, a aventura islandeza de Júlio Verne. Aventura falhada, tecnicamente, se assim podemos dizer, mas que alimenta o fogo sagrado da imaginação.

Vasco Baptista Marques, na sua crítica no Expresso diz que o objectivo do filme "reside na configuração de um universo não antropocêntrico, onde - sem perder a sua dignidade - o Homem se descobre reduzido às suas reais proporções (daí que a realização faça questão de colocar a palavra ao nível dos demais ruídos do mundo)".

Não antropocêntrico é o que não nos é possível conceber. É a quarta narrativa paralela. Assim seja, para glória de Frammartino.






VLADIMIR, O PEQUENO


Talvez os ucranianos, apesar de todas as declarações de fraternidade, não tenham podido esquecer o Holodomor e as suas réplicas. Talvez não queiram ser "espanhóis", como  nós não queremos - e os Filipes não foram assim tão maus. Vamos negar-lhes esse direito porque há  "nazis" no meio deles, porque a CIA manobrou estes anos todos, ou porque a NATO bombardeou Belgrado? Nem os piores crimes que se possam atribuir à NATO justificam a guerra que lhes moveu Putin. Sejamos justos: esse homem não tem perdão. Não é Pedro o Grande quem quer.

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