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01/04/09

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FRAGMENTOS PARA A CONSTRUÇÃO DE UM PERSONAGEM – I

Sá Pimenta



Senhora do Ó-S.Nicolau-Porto(nortenho.blogspot.com)



David, arquitecto, de formação tardia, como trabalhador-estudante. Nasceu em 1947, em S. Nicolau, no Porto. Ali para os lados do Infante, em casa materna, com ajuda de parteira habilidosa, como na altura era mais comum. Estudou de dia até aos quinze anos. Sempre com muito gosto pelas formas, pelos grafismos e pelos elementos pictóricos. Fez o Secundário na Escola de Artes Decorativas Soares do Reis, também no Porto. Após o Secundário, trabalhou aqui e acolá sempre ligado às Artes Gráficas. Compôs capas de discos e de livros. Nas horas vagas, passadas muitas vezes sentado à mesa do café, enquanto os companheiros conversavam, outras vezes só, lá pegava num pequeno bocado de papel e unicamente com o lápis, fazia desenhos muito geométricos mas de contida assimetria. A maior parte destes exemplos de criação pura e espontânea ia para o caixote do lixo comum.

Veio o tempo do serviço militar. Apesar do seu discurso e consciência nada belicista, antes pelo contrário, foi mais um que passou por África, trazendo de lá mais más que boas recordações. Não teve coragem nem motivação para o salto. Como tantos da sua geração.

Hoje, com uma estatura entre um e setenta e um setenta e cinco centímetros, pode-se dizer que tem uma estrutura corporal equilibrada. Uma mina, descuidadamente pisada, destruiu-lhe o pé direito. Apesar de tudo, reconstituição parcial e uma prótese muito discreta, fazem dele, ainda hoje, pessoa de passada larga, firme e segura, Sempre numa posição vertical dos pés à cabeça. O olhar sempre em linha recta face ao seu horizonte visual.

De África acumulou economias, já que apesar de não ter habilitações, foi oficial, pois o Exército tinha poucos e criava condições para que alguns dos mais habilitados, em termos escolares, físicos e militares, ascendessem aquela categoria. De imediato os mandavam fazer a guerra onde inventaram que tinha de haver.

Regressado ao seu espaço natural e de bolsa cheia, decidiu retomar os estudos e conseguiu com brilhantismo – em tempo e em classificação – concluir a licenciatura em Arquitectura. Aluno distinto.

PERIGO DE INCÊNDIO

Mário Martins

A Grande Porca


"(...)Pelo Natal de 99, no café Martinho, João Chagas, uma noite, falou-me interessado num jornal de crítica, um semanário (...) ficou assente convidar o Rafael Bordalo. E lá fomos os dois (…) a casa de Rafael Bordalo Pinheiro, que abraçou a ideia com entusiasmo. E assim nasceu "A Paródia", que começou a sua publicação em meados de Janeiro de 1900. Rafael Bordalo e Chagas aventavam ideias para a primeira página do primeiro número, que no parecer de João Chagas devia ser de comentário político.

Desabafei: - Política!... A grande porca.
Rafael Bordalo exclamou, radiante:
- Aí está a primeiras página: Política, a grande porca..."
Declarações de João Saraiva à Vida Mundial Ilustrada de 1946, in blogue “Buraco da Fechadura”

A apreciação que os principais analistas políticos e fazedores de opinião fazem hoje da política portuguesa não deve diferir muito da que se faria antes do golpe militar de 1926, ao qual se seguiu a instauração da ditadura. Ainda recentemente o Professor Medina Carreira lembrou que nesse tempo a política era rotulada de porca e que agora bem poderíamos considerá-la uma porcaria. Entrevista após entrevista, Medina Carreira tem vindo a fazer, com efeito, num estilo algo incendiário, um diagnóstico arrasador da política portuguesa: o crescimento produtivo regrediu ao nível de há 100 anos, a Educação não é um sítio de exigência, a Justiça enreda-se nas suas próprias malhas, a Saúde desperdiça-se, o carreirismo e a corrupção grassam, não há uma cultura de trabalho, de responsabilidade e de respeito pela coisa pública, por este andar o futuro é negro, não fora o facto de estarmos na União Europeia e certamente que já teríamos novamente ouvido o ruído das botas militares a marcharem.

Digamos que não é difícil estar de acordo com este diagnóstico. Que fazer?

Medina Carreira é parco nas soluções: acha que é preciso, em primeiro lugar, requalificar os partidos (como?), que se deve mudar para um regime presidencialista (embora, um tanto contraditoriamente, se manifeste contrário, no actual regime semipresidencialista, à maioria absoluta de um partido), que os políticos devem falar verdade aos portugueses, que a comunicação social deve dar mais espaço à opinião extrapartidária.

A necessidade de mudança para um regime democrático presidencialista idêntico ao dos EUA, como defende Medina Carreira, suscita-me as maiores reservas não só por fazer desaparecer um contrapeso de uma democracia portuguesa ainda pouco madura, como pelo facto de a actual crise mundial de segurança e financeiro-económica ter tido origem, precisamente, na política americana dos últimos anos.

Não me custa supor que o Professor Medina Carreira concordaria que o que sobra ao país em análise avulsa falta em estudo, em propostas e em saber operacional. Neste quadro, é muito animadora a notícia da constituição de uma fundação pelo grupo económico Jerónimo Martins, que terá por missão estudar e fazer propostas de políticas públicas e será presidida pelo Professor António Barreto, que ainda há bem pouco tempo nos presenteou com um exigente Retrato Social de Portugal. Isto talvez nos dê a chave da solução do problema da requalificação dos partidos. Embora o caso de Manuel Alegre nos mostre que uma espécie de dissidência controlada pode influenciar o rumo de um partido, acredito mais numa reforma partidária de fora para dentro. Trata-se de um problema de falta de concorrência extrapartidária. Manifestamente, a democracia portuguesa não precisa de mais partidos, mas sim de mais participação e exigência cívicas fora deles.


A PRAIA DO POETA

Alcino Silva

Pablo Neruda (1904/1973)

Não sei como te hei-de dizer poeta. Há várias noites que estou para aqui sentado a escutar esse vai e vem do Pacífico e não consigo contar-te. Mas enfim, tenho de o dizer de alguma forma, pelo que vou utilizar as mais simples das palavras para que saibas que te vim visitar. Devia-o a mim, mas sobretudo, a ti que me tens guiado neste caminho árduo da vida. Não, não fui à Ilha Negra. Procurei-te mais longe na tua Araucânia. Necessitava com ansiedade de te procurar na praia da tua adolescência que o relato de Volodia tanto me cativou. Tanto gostava ter viajado de comboio como o fazias na sombra do teu pai a partir de Temuco, mas o autocarro pareceu-me mais adaptado ao teu Chile de agora. Santiago estava calma entre a recordação dos militares miseráveis e as neves da cordilheira a esbranquiçar o horizonte. Desviei o olhar e segui para sul. Parei por umas horas em Parral, onde nasceste. Casas velhas de madeira nessa tinta colorida que o tempo estragou, a pequena praça central com a redonda pia da fonte que deixa a água cair e faz diminuir o calor que sentimos nestes dias e a Alameda, chamada Avenida das Delícias. Por aqui cresceste naqueles anos miúdos, mas esta pequena povoação quase nada seria no teu tempo, pelo que decidi prosseguir até mais a sul a essa cidade que te recebeu em casa da «mamadre» que com carinho te fez esquecer a morte que levou a mãe verdadeira. Sinto como gostava que esta viagem tivesse o comboio como serventia para conhecer esse trajecto que te trazia nas férias de Verão juntamente com Albertina que se separava de ti em S. Rosendo a caminho de Concepción. Que lhe contavas poeta nessas longas horas em que a mulher amada se sentava a teu lado com aquele sorriso mágico que te arrancava palavras do bosque onde guardavas o pensamento? Que jornadas fazias enquanto a amavas através daqueles olhos escuros que te levavam a alma em aventuras marinheiras de descoberta? Esta mulher de quem disseste que era um dos mais belos cânticos ao silêncio, falava-te com os olhos e retribuías com essa poesia intensa que espalhaste pelo mundo. Percorro a cidade com lentidão, procurando sentir-te algures entre a natureza e as coisas, mas tudo é demasiado recente nestas ruas tão rectilíneas. Como em Parral, as velhas casas de madeira com as cores a derreterem-se no tempo que parece imóvel junto às suas paredes. A Estação de Santa Rosa a albergar um comboio que parece já não circular para além do museu onde estacionam velhas locomotivas. Atravesso a velha ponte do caminho-de-ferro derretendo-se entre essa ferrugem que invade o abandono e subo até ao Cerro Nielol para tentar perceber melhor esta cidade onde a adolescência fez desabrochar os teus grandes amores que permitiram escrevesses palavras tão belas e sublimes. Procuro a praça central onde as irmãs dançavam provocando escândalo enquanto te aguardavam e indignavam provocadoramente a sociedade de Temuco. Assisto à chegada da festa da tarde voltado para a grandiosidade dos Andes enquanto as águas do rio Cautín que tanto engrandeceu a tua poesia seguem para oeste revoltadas e rebeldes. Por aqui conheceste aquela Blanca de quem dizias que entrava o sol, as estrelas e dois olhos intermináveis quando abrias a porta. Parto cedo no dia seguinte, finalmente em direcção ao destino da minha viagem. Escolho de novo a estrada que logo depois me leva pela margem caudalosa do rio. Esta paisagem num misto de aridez e florestas fechadas, misteriosas e verdes que nos atrai, nos alicia para o seu interior. Atravessamos Nueva Imperial e solicito saída em Carahue. Aqui procuro quem queira levar-me pelo rio Imperial até à foz. Após muito porfiar encontro um velho marinheiro que aceita a minha oferta depois de lhe explicar o que procuro e ao que vou. O teu nome, poeta, abriu-me esta porta que me permite viajar como o fazias até à tua praia. A corrente é forte na mesma dimensão da fragilidade do pequeno e velho barco onde vou, mas o leme segue em boas mãos. Quando nos aproximamos de Nehuentué, o leito abre-se em largura e curva quase manso para dar uma longa volta em direcção ao Pacífico. Imenso, grande, avassalador quase nos prende o olhar sem deixar que se solte. Puerto Saavedra está ali à esquerda e estou já a viver o mundo dos teus poemas a construção desses gritos, desses lamentos, desses braços que abrias à conquista do amor e que lançavas em redes soltas sobre as mulheres que amaste. Cheguei pela tarde, com o sol apaziguado pela viagem a deixar-se tombar sobre o oceano na grandeza do seu gigantesco diâmetro num pastel misturado de vermelho e amarelo a esfarelar-se em azul. Ainda caminhei pelo passeio marítimo por entre palmeiras que teimam em crescer na agressividade do clima quase austral e cheguei até às encostas de Maule que deslizam abruptas até ao mar. Por ali fiquei numa velha casa construída dessa madeira que parece eterna, mesmo quando a cor que a fez reluzir foi já levada pela humidade marítima. Possui uma janela soberba que me permite olhar a aldeia e ao mesmo tempo ficar só. Só agora abro e desfolho na memória os teus Vinte Poemas de Amor. Que poesia tão extraordinária, poeta. Acompanham-me desde a adolescência e agarro-me a cada uma das tuas palavras como um náufrago, pois sei que no dia em que me esquecer de amar há-de ser o último em que poderei olhar o mundo. Mas tu, amaste mais do que tudo as mulheres, olhando nelas, a beleza, a generosidade e a nobreza do planeta. No fundo, sabias que são tudo, por isso, as amaste assim, como as encontramos nas tuas frases soltas arrancadas à alma e espalhadas ao vento. Aqui procuravas Terusa a mulher da Canção Desesperada, cujo nome deixaste escrito juntamente com o teu na areia molhada. Foi para ti como uma maré que chega incansável à praia. Esta Terusa que como disseste será inextinguível até no esquecimento. Esta rapariga que brincava com o sol, abria os olhos para ti e fechava os bosques de copihues para que não partisses. Passam os dias e aqui estou nesta velha casa de madeira que quer perecer com o tempo. O meu já se esgotou, mas não desejo partir. Talvez se esqueçam de mim e conte os dias que restam em Puerto Saavedra, nesta aldeia que disseste que cheirava a vaga marítima e a madressilva. Quem sabe um dia ao amanhecer me surpreenda a mim como a ti uns olhos negros e repentinos. O teu amigo e companheiro Volodia que tudo me contou de ti disse-me antes de vir que esta é uma larga praia melancólica, envolta numa atmosfera de infinita solidão. Sim, sinto essa solidão infinita a envolver-me, a cercar-me os olhos e os gestos, mas que importa se tenho na alma os teus Vinte Poemas de Amor e a Canção Desesperada e com eles posso continuar a amar.

PREPAREMO-NOS E … VÃO !!!


Mário Faria



É vulgar surgirem no nosso país grupos de personalidades, quase sempre os mesmos, ou seus derivados, sejam empresários, senadores, sábios ou doutores que se reclamam de procuradores de soluções para a situação de declínio económico que Portugal vem atravessando, cronicamente e desde há alguns anos.

Estes grupos (convencionais ou de opinião), sempre preocupados com os destinos do país, suscitam-me frequentemente a interrogação: que Portugal os preocupa?

Será o do cidadão comum, pagador de impostos, cuja receita é desbaratada no consumo de bens essenciais, e sobre cujo quotidiano se abate o gigantismo da administração pública e a voracidade das empresas públicas, ou de capitais públicos, detentoras do monopólio da prestação de alguns serviços, onde se acumulam os boys que ganharam o direito àqueles jobs?

Será dos trabalhadores por conta de outrem, de pequenas, médias e grandes empresas que vivem na corda bamba, entre precariedade, baixos salários, pressão tremenda, concorrência cega, desemprego à porta, lay offs, despedimentos colectivos, falências e todas as manobras possíveis que o mercado utiliza e carece na reestruturação empresarial?

Será dos agricultores, pescadores, mineiros e outras profissões de menor notoriedade social de que raramente se fala e cujas tarefas o acordo de integração na UE estrangulou?

Será dos desempregados, reformados e velhos que vivem e são uma praga para o erário público que os suporta porque (ainda) não é possível exterminá-los?

Ou será aquele Portugal do “jet-set”, da feira das vaidades das publicações cor-de-rosa da área económica e da outra, que exibem nas capas as suas fotos, usualmente legendadas com epítetos demasiado elogiosos, quando comparados com os correspondentes desempenhos?

Não deixa de ser interessante que esses grupos (convencionais ou de opinião) pretendam, agora, que a “sociedade civil” (o que é isso?) pressione o Governo a realizar as mudanças indispensáveis. Como? Agravando os impostos dos que mais têm? Bloqueando os aumentos das remunerações escandalosas? Regulando o mercado? Apoiando os sectores mais frágeis? Aumentando o investimento público? Nacionalizando todas as instituições financeiras geridas e levadas a falência por “brancos de olhos azuis”, que nunca erram e raramente se enganam? O problema é que, se essas mudanças vierem, logo se levantarão num coro de protestos daqueles que estão contra: por razões políticas, motivações corporativas ou porque se sentem excluídos.

O apelo destes grupos (convencionais ou de opinião), sem qualquer tipo de juízo preconceituoso, faz lembrar o general que exortava as suas tropas, na véspera de uma batalha, da seguinte forma : “Preparemo-nos e … vão !!!”

Parece-me que a forma de atacar o problema está a ser vista ao contrário. Comecem esses notáveis a pôr a mão na massa que cria obra e não se fiquem apenas pela exibição de gestos e palavras que vendem a muito bom preço, para fazer, dizer ou escrever trivialidades.

É bom que o ataque à crise não se fique na criação de mais observatórios, comissões, manifestos e discursos, idênticos aos saídos de iniciativas anteriores, cujos efeitos na situação económica e no tecido social portugueses nunca foram sentidos.

Um dos notáveis que se vai candidatar como cabeça de lista para as próximas eleições europeias, ditou a receita: “ Como há décadas ensina a social-democracia europeia, é um mix de liberdade e de solidariedade, de concorrência e de igualdade, de mercado e de Estado que reside a virtude.” A virtude? Que virtude? Não há pachorra.

A VOCAÇÃO

António Mesquita
A vocação de S. Mateus (1600-Caravaggio)


"Tendo saído, Jesus viu, ao passar, um homem sentado ao balcão da alfândega, chamado Mateus, e disse-lhe: 'Segue-me'. E, levantando-se, ele seguiu-o."

("Evangelho segundo S. Mateus")


Manuseando ainda as moedas, Mateus é das cinco personagens à volta da mesa a única que interpreta com benevolência o gesto imperioso. O mais jovem como que se refugia no que lhe está mais chegado (Mateus), o que está de costas leva a mão à espada e o homem cabisbaixo que se encontra em frente de Pedro e de Jesus não levanta a cabeça. Há ainda um outro velho que observa a cena, cauteloso.

A diagonal de luz sublinha a direcção da mão apontada ao homem chamado Mateus que parece não acreditar que seja com ele. Na verdade, aquela mão poderia indicar o jovem sombrio. Este é um ser insatisfeito que se aborrece ou que alimenta uma ideia fixa. Na antiga classificação dos temperamentos, seria um colérico. A idade e o traje afastam, porém, essa hipótese, e sobretudo a indicação da luz.

Enquanto estas personagens estão iluminadas pelo mesmo foco de luz natural, as duas que acabaram de entrar, e sobretudo Jesus, têm uma luz própria que não se sabe donde vem. Mesmo aqui o sobrenatural, neste magnífico pintor, assume as formas do quotidiano (trata-se duma luz natural, mas que provém dum foco desconhecido). O corpo de Jesus é quase completamente interceptado por um Pedro claudicante e sem rosto. Vemos a face de Jesus estranhamente iluminada e o arco do braço com a mão quase abandonada (o gesto é imperioso, mas pela doçura).

A brevidade da passagem no evangelho é sugerida pela posição de Jesus, com um pé pronto a girar na direcção da saída (como diz Enrica Zanin) e naquele gesto sem negociação, pois ver, neste caso, é compreender.

Um homem, um publicano, vai deixar tudo o que o prendia até ali e percorrer um caminho novo, sem tempo para pensar. O quadro, na dramaturgia da luz e na oposição entre as figuras sentadas e plano vertical da direita dá-nos o momento em que tudo se decide.

Esta pintura encontra-se na capela Contarelli em San Luigi dei Francesi, em Roma, diante de outro quadro de Caravaggio que descreve o martírio do apóstolo.

O que é uma vocação? Saberia Mateus que a sua não era a de cobrador de impostos? E donde vem a voz que chama para a vocação senão de dentro?

Caravaggio mostra-nos algo parecido com isso na incrível predisposição de Mateus.


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EXERCÍCIO DE INTERTEXTO

Sá Pimenta

Fernando Pessoa


A partir de Fernando Pessoa

“O poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente”
Serei um fingidor?
Fingidores seremos da dor que nos rói os ossos
Tão completamente é a mágoa, quase demente
Que fingimos não poder serem nossos
Os sentimentos que nos avassalam a mente
E ao escrever vamos desnudando nosso ser
Que quem nos lê não acreditará um bocadinho
Quanto é doloroso este sentir e viver
Querendo e não podendo dar nosso ninho
Que nos importa que a roda da vida ande
Mais valia que a atacasse a imobilidade
Porém também acreditamos que ela desande
Para na volta encontrarmos alguma felicidade


O POEMA


Cristina Guerreiro
Mar Crepúsculo - 2004 (Gustavo Fernandes)



Escrevinhou-o com a mão esquerda em concha, a cabeça deitada sobre o mesmo lado a fazer sombra sobre as rimas, da direita tirou o sustento para as letras e pronto.

Estava dito.

Mas não queria que soubessem.

Era segredo.

Poesia é sempre segredo, que não viessem com coisas, aquelas que se arranjam para decifrar rebuscado nas concepções simples da vida o que de simples a vida é: Há fome, come-se. E poesia é pão. Mete-se aos pedaços na boca mas faz-se de modo fechado e recatado no alimento básico e reconfortante da massa que acomoda os sentidos ao lugar. Poesia é isso, sabe-se que existe mas não se conta, não se explica, saboreia-se no silêncio.

Agora depois de escrita, o problema acontecia: Onde escondê-la de olhos profanos?
A gaveta, a gaveta é um bom lugar para dormirem sossegados os verbos terminados em ar. Como o ar que falta quando se diz amar, devagar, suspirar, cantar. Não, a gaveta é remexida, devolvida a mãos inconscientes que amachucam o coração e o espremem até pingar no forro o sangue de quem a fez.

E dentro de um livro? Hum... espremida entre linhas muito rectas, muito sisudas, muito certas dos seus pontos finais e de interregnos de capítulos... Não! Vá lá entender-se a quebra dos versos no acatado da prosa e entre páginas de seu semelhante, como saber qual a poesia original? Melhor não!

Pois se do evidente tantas vezes se cega, que melhor sitio para a esconder se não à vista de todos?

Deu-lhe um beijo, lembrou-lhe ali mesmo já a saudade e contente do seu feito deitou a folha poética ao mar.


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