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01/04/09

A PRAIA DO POETA

Alcino Silva

Pablo Neruda (1904/1973)

Não sei como te hei-de dizer poeta. Há várias noites que estou para aqui sentado a escutar esse vai e vem do Pacífico e não consigo contar-te. Mas enfim, tenho de o dizer de alguma forma, pelo que vou utilizar as mais simples das palavras para que saibas que te vim visitar. Devia-o a mim, mas sobretudo, a ti que me tens guiado neste caminho árduo da vida. Não, não fui à Ilha Negra. Procurei-te mais longe na tua Araucânia. Necessitava com ansiedade de te procurar na praia da tua adolescência que o relato de Volodia tanto me cativou. Tanto gostava ter viajado de comboio como o fazias na sombra do teu pai a partir de Temuco, mas o autocarro pareceu-me mais adaptado ao teu Chile de agora. Santiago estava calma entre a recordação dos militares miseráveis e as neves da cordilheira a esbranquiçar o horizonte. Desviei o olhar e segui para sul. Parei por umas horas em Parral, onde nasceste. Casas velhas de madeira nessa tinta colorida que o tempo estragou, a pequena praça central com a redonda pia da fonte que deixa a água cair e faz diminuir o calor que sentimos nestes dias e a Alameda, chamada Avenida das Delícias. Por aqui cresceste naqueles anos miúdos, mas esta pequena povoação quase nada seria no teu tempo, pelo que decidi prosseguir até mais a sul a essa cidade que te recebeu em casa da «mamadre» que com carinho te fez esquecer a morte que levou a mãe verdadeira. Sinto como gostava que esta viagem tivesse o comboio como serventia para conhecer esse trajecto que te trazia nas férias de Verão juntamente com Albertina que se separava de ti em S. Rosendo a caminho de Concepción. Que lhe contavas poeta nessas longas horas em que a mulher amada se sentava a teu lado com aquele sorriso mágico que te arrancava palavras do bosque onde guardavas o pensamento? Que jornadas fazias enquanto a amavas através daqueles olhos escuros que te levavam a alma em aventuras marinheiras de descoberta? Esta mulher de quem disseste que era um dos mais belos cânticos ao silêncio, falava-te com os olhos e retribuías com essa poesia intensa que espalhaste pelo mundo. Percorro a cidade com lentidão, procurando sentir-te algures entre a natureza e as coisas, mas tudo é demasiado recente nestas ruas tão rectilíneas. Como em Parral, as velhas casas de madeira com as cores a derreterem-se no tempo que parece imóvel junto às suas paredes. A Estação de Santa Rosa a albergar um comboio que parece já não circular para além do museu onde estacionam velhas locomotivas. Atravesso a velha ponte do caminho-de-ferro derretendo-se entre essa ferrugem que invade o abandono e subo até ao Cerro Nielol para tentar perceber melhor esta cidade onde a adolescência fez desabrochar os teus grandes amores que permitiram escrevesses palavras tão belas e sublimes. Procuro a praça central onde as irmãs dançavam provocando escândalo enquanto te aguardavam e indignavam provocadoramente a sociedade de Temuco. Assisto à chegada da festa da tarde voltado para a grandiosidade dos Andes enquanto as águas do rio Cautín que tanto engrandeceu a tua poesia seguem para oeste revoltadas e rebeldes. Por aqui conheceste aquela Blanca de quem dizias que entrava o sol, as estrelas e dois olhos intermináveis quando abrias a porta. Parto cedo no dia seguinte, finalmente em direcção ao destino da minha viagem. Escolho de novo a estrada que logo depois me leva pela margem caudalosa do rio. Esta paisagem num misto de aridez e florestas fechadas, misteriosas e verdes que nos atrai, nos alicia para o seu interior. Atravessamos Nueva Imperial e solicito saída em Carahue. Aqui procuro quem queira levar-me pelo rio Imperial até à foz. Após muito porfiar encontro um velho marinheiro que aceita a minha oferta depois de lhe explicar o que procuro e ao que vou. O teu nome, poeta, abriu-me esta porta que me permite viajar como o fazias até à tua praia. A corrente é forte na mesma dimensão da fragilidade do pequeno e velho barco onde vou, mas o leme segue em boas mãos. Quando nos aproximamos de Nehuentué, o leito abre-se em largura e curva quase manso para dar uma longa volta em direcção ao Pacífico. Imenso, grande, avassalador quase nos prende o olhar sem deixar que se solte. Puerto Saavedra está ali à esquerda e estou já a viver o mundo dos teus poemas a construção desses gritos, desses lamentos, desses braços que abrias à conquista do amor e que lançavas em redes soltas sobre as mulheres que amaste. Cheguei pela tarde, com o sol apaziguado pela viagem a deixar-se tombar sobre o oceano na grandeza do seu gigantesco diâmetro num pastel misturado de vermelho e amarelo a esfarelar-se em azul. Ainda caminhei pelo passeio marítimo por entre palmeiras que teimam em crescer na agressividade do clima quase austral e cheguei até às encostas de Maule que deslizam abruptas até ao mar. Por ali fiquei numa velha casa construída dessa madeira que parece eterna, mesmo quando a cor que a fez reluzir foi já levada pela humidade marítima. Possui uma janela soberba que me permite olhar a aldeia e ao mesmo tempo ficar só. Só agora abro e desfolho na memória os teus Vinte Poemas de Amor. Que poesia tão extraordinária, poeta. Acompanham-me desde a adolescência e agarro-me a cada uma das tuas palavras como um náufrago, pois sei que no dia em que me esquecer de amar há-de ser o último em que poderei olhar o mundo. Mas tu, amaste mais do que tudo as mulheres, olhando nelas, a beleza, a generosidade e a nobreza do planeta. No fundo, sabias que são tudo, por isso, as amaste assim, como as encontramos nas tuas frases soltas arrancadas à alma e espalhadas ao vento. Aqui procuravas Terusa a mulher da Canção Desesperada, cujo nome deixaste escrito juntamente com o teu na areia molhada. Foi para ti como uma maré que chega incansável à praia. Esta Terusa que como disseste será inextinguível até no esquecimento. Esta rapariga que brincava com o sol, abria os olhos para ti e fechava os bosques de copihues para que não partisses. Passam os dias e aqui estou nesta velha casa de madeira que quer perecer com o tempo. O meu já se esgotou, mas não desejo partir. Talvez se esqueçam de mim e conte os dias que restam em Puerto Saavedra, nesta aldeia que disseste que cheirava a vaga marítima e a madressilva. Quem sabe um dia ao amanhecer me surpreenda a mim como a ti uns olhos negros e repentinos. O teu amigo e companheiro Volodia que tudo me contou de ti disse-me antes de vir que esta é uma larga praia melancólica, envolta numa atmosfera de infinita solidão. Sim, sinto essa solidão infinita a envolver-me, a cercar-me os olhos e os gestos, mas que importa se tenho na alma os teus Vinte Poemas de Amor e a Canção Desesperada e com eles posso continuar a amar.

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