StatCounter

View My Stats

01/10/23

195

ALÔ? ALÔ?

António Mesquita

Marcel Proust, ao estilo de Picasso, pela I.A.


"Como todos nós agora, eu já não achava suficientemente rápida, nas suas bruscas mudanças, a magia admirável à qual alguns instantes chegam para que apareça junto de nós, invisível mas presente, o ser com quem queremos falar, e que permanecendo à sua mesa, na cidade que habita (para a minha avó era Paris), sob um céu diferente do nosso, com um tempo não forçosamente o mesmo, no meio de circunstâncias e de preocupações que nós ignoramos e que esse ser nos vai dizer, se acha de repente transportado a centenas de léguas (ele e todo o ambiente em que continua mergulhado) para junto da nossa orelha, no momento em que o nosso capricho o ordenou." (*)

Marcel admira-se do milagre do telefone, que desde o final do século XIX, lhe permite , através da voz, ter junto de si a presença do ente querido que está, noutra cidade,  a muitos quilómetros de distância. 

Acho que, com a habituação e a banalidade dessa ferramenta, hoje nós perdemos o sentimento desse "milagre". A voz que nos chega pelo smartphone é algo de desligado do ser que convocamos. Não vem à nossa presença a pessoa que fala do outro lado. Já Mc Luhan, o mediólogo canadiano dizia "medium is message". Quer dizer, neste caso,  o telefone mais do que transmitir a palavra à distância, modifica, subtilmente, a nossa relação com os outros. 

O mesmo se estará a passar com a imagem, a extática da fotografia e a que mexe do vídeo que hoje entraram na nossa vida graças à fada da tecnologia. O alvoroço com que recebemos estas inovações gastou-se depressa. E o que nos parecia um enriquecimento da nossa experiência e da nossa memória cedo nos deixa a sensação do logro, porque esses suportes nunca substituirão a realidade, nunca nos aproximarão dos vivos, nem nos trarão de volta os mortos.

Um efeito inesperado desses novos meios de comunicação é o de esquecermos mais depressa o que é importante e de perdermos, sem nos apercebermos disso, o acesso ao passado. As imagens tornam-se efígies das pessoas que representam, "protegendo-as", se já não fazem parte do mundo dos vivos, de eventuais intromissões no seu "sono eterno".

Era essa, talvez, a primitiva função dos túmulos - a de protecção contra os espíritos e, nalguns casos, de preparação para a outra vida.  Suleiman, um dos chefes muçulmanos que, segundo Chateaubriand, se encontrou com Napoleão no interior da grande pirâmide, terá dito nesse cenário, referindo-se ao famoso faraó: "Era um poderoso rei do Egipto, cujo nome se crê ter sido Quéops. Ele queria impedir que qualquer sacrilégio viesse perturbar o repouso da sua cinza."

Dou-me conta, nesta altura, e depois de ter grifado algumas palavras para obviar ao seu sentido literal e "démodé" que nem assim me livro de leituras desviantes. Precisaria de usar mais aspas,  menos porque a nossa é, claro, a "era da suspeição", mas porque a avalanche da informação desvalorizou a tal ponto o sentido "consagrado" que só nos resta ser prolixos. 

É ainda, como se percebe, o problema que enunciei com a citação de Proust.
Não se trata de maldizer a tecnologia que é parte do chamado progresso. Feliz ou infelizmente, só podemos constatar que é ele (ou o sistema de que faz parte) que nos conduz inexoravelmente ao desconhecido. 

Como dizia Raul Brandão, "sejamos humildes, porque a gente chega ao fim da vida sem ter entendido nada deste mundo, quanto mais do outro..." 
  
O outro mundo do Raul não é o dos almas penadas. Num certo sentido, é  o mundo novo com que tantos sonharam.

(*) Marcel Proust, "Du Côté de Chez Guermantes"

AINDA A IA: O CONTRADITÓRIO

Mário Martins

https://www.google.com/search?client=firefox-b-d&q=intelig%C3%AAncia+artificial




Um robô não pode ferir um humano ou permitir que um humano sofra algum mal. Os robôs devem obedecer às ordens dos humanos, exceto nos casos em que essas ordens entrem em conflito com a primeira lei. Um robô deve proteger a sua própria existência, desde que não entre em conflito com as leis anteriores.”

As 3 leis (ou regras) da robótica, definidas pelo celebrado autor de ficção científica Isaac Asimov, no seu livro “Eu, Robô”, publicado na década de 50 do século passado.

(O mesmo autor viria, mais tarde, a definir um quarto princípio, segundo o qual “Um robô não pode causar mal à humanidade ou, por omissão, permitir que a humanidade sofra algum mal.”)

“O maior risco da Inteligência Artificial é a Estupidez Artificial. Não conheço um único caso até à data de danos causados por Inteligência Artificial demasiado inteligente.”

Pedro Domingos
Revista do Expresso, 23Jun2023


E se a solução dos potenciais riscos da Inteligência Artificial (IA) fosse mais IA?

É essa a tese de Pedro Domingos, professor de Engenharia Informática na Universidade de Washington. Para o autor, “Os potenciais benefícios da IA são extraordinários: curar doenças, gerir melhor as cidades e o ambiente, gerar riqueza, fazer novas descobertas científicas, (e) o maior perigo é que a obsessão com os seus riscos nos leve a perder esta oportunidade sem par.”

No seu artigo, Pedro Domingos refuta, ponto por ponto, os riscos apontados pelos críticos da IA, classificando-os em existenciais e (diria eu) relacionais.
Pedro Domingos começa por apontar um erro genérico, “que subjaz à visão pessimista da IA, que é a chamada ‘falácia do homúnculo’, a ideia de que dentro de cada sistema de IA existe um ‘mini-homem’ com todas as características dos seres humanos: emoções, desejos, preconceitos, intenções, motivações, autonomia, até mesmo a consciência.” Este erro, sublinha o autor, “é natural e muito comum, porque os seres humanos raciocinam por analogia e quando vêem um sistema comportar-se de forma inteligente imediatamente projectam nele as outras características das únicas entidades inteligentes que conhecem: os seres humanos e outros animais.”

Caberá aqui mencionar, a propósito, o Professor António Damásio, para o qual (cito de memória) “as emoções têm estado demasiado ausentes das mesas das conferências”. 

Na visão optimista de Pedro Domingos “A inteligência artificial é extremamente diferente da humana (…) Os algoritmos de IA são apenas isso: algoritmos, ou seja, sequências de instruções dadas por nós que o computador executa sem se desviar um milímetro. O alarmismo em torno da IA foca-se em particular nos algoritmos de aprendizagem automática, (em que) o computador desenvolve os seus próprios algoritmos a partir dos dados (…) A fonte do alarme é a ideia de que quando o computador começa a aprender por si próprio é impossível prever o que vai aprender e pode começar a fazer coisas arbitrariamente malignas. Mas isto é uma ilusão. Os sistemas de aprendizagem automática, como muitos outros, são governados por objectivos fixos (…) O sistema faz uma vasta procura para encontrar o melhor modelo de acordo com estes critérios (…) É física e matematicamente impossível que o sistema decida por si próprio começar a evoluir noutras direcções, por exemplo para satisfazer os seus próprios desejos (que não tem).”

“E se a IA decidir que a melhor forma de atingir os seus objectivos é exterminar a Humanidade? O problema aqui não é a maldade da IA, mas a sua incompetência. E a solução para a incompetência é mais inteligência, não menos. E se, apesar de tudo, a IA seguir o caminho errado? Sendo muito mais inteligente do que nós, não nos será impossível detectá-lo? Não. Tecnicamente a IA é o subcampo da informática, que procura resolver problemas intratáveis, isto é, problemas que, no pior caso, demoram tempo exponencial a resolver, mas cujas soluções podem ser rapidamente verificadas. E mesmo que uma malévola IA ao nível da humana surgisse amanhã, teria poucas hipóteses contra nós. Os nossos cérebros têm maior capacidade computacional total, as nossas necessidades de energia são vastamente menores, a nossa mobilidade e dexteridade são muitíssimo melhores, aprendemos mais a partir de muito menos dados, temos milhões de anos de experiência de combater adversários, etc.. A possibilidade de a IA exterminar a Humanidade pertence aos filmes de ficção científica, não à realidade.”

Ao nível dos riscos (que eu tomei a liberdade de classificar como relacionais), um deles “é que a IA conduzirá a um aumento maciço da desinformação on line, os humanos serão facilmente manipulados por ela, e isto será o fim da democracia. (Mas, segundo o autor,) “A realidade comprovada por vários estudos é que a desinformação on line pouca diferença faz. Os mass media, por exemplo influenciam muito mais os eleitores. Além disso, a quantidade de desinformação on line é já vasta, e o limite principal é o da nossa atenção, não a capacidade de produção que a IA aumentaria. (…)
Nos anos 50 a preocupação era que os anúncios de televisão nos manipulariam com grande facilidade, mas as pessoas rapidamente aprenderam a não lhes dar credibilidade, e o mesmo começa já hoje a acontecer com o ChatGPT. Mais importante, no entanto, é que a melhor forma de combater a desinformação on line é precisamente através da IA (…) O grande problema é que em muitos casos a IA ainda não é suficientemente sofisticada para detectar a desinformação. A solução, mais uma vez, é mais inteligência, não menos.”

Quanto ao risco de desemprego, o autor sublinha que a Revolução Industrial, que automatizou o trabalho manual, não levou ao desemprego em larga escala, criando, pelo contrário, muito mais empregos do que eliminou, e que o mesmo acontecerá com a IA. Considera ainda que a IA é a melhor solução para aumentar a produtividade e, assim, compensar o envelhecimento da população.

Por outro lado, como não podemos impedir o uso da IA por regimes autoritários para fins repressivos, a solução é desenvolvermos a nossa IA melhor e mais rapidamente do que a desses regimes, tal como “a melhor forma de combater o uso da IA por criminosos é assegurar que a Polícia tem melhor IA”.

O tempo dirá, enfim, qual das duas visões estará mais próxima da realidade. Esperemos que seja a optimista…

UMA ASSOCIAÇÃO EMÉRITA

Manuel Joaquim

https://www.rostos.pt/inicio2.asp?cronica=12001370




Em 14 de Julho de 2011, constituiu-se a “ Associação Conquistas da Revolução – Defender Abril * Construir o Futuro”, para, de acordo com o Artigo 3º dos seus Estatutos, “preservar, divulgar e promover o apoio dos cidadãos aos valores e ideais da Revolução, iniciada em 25 de Abril de 1974, esse que foi o momento mais luminoso da História de Portugal, cultivando o espírito revolucionário e a consciência social progressista, com a construção de uma democracia política, económica, social e cultural amplamente participada, que a Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de Abril de 1974, viria a consagrar”.

A Associação, Artigo 4º, “organizará, por iniciativa própria ou em colaboração com outras entidades nacionais ou estrangeiras, conferências, colóquios, seminários e outros eventos de natureza cultural publicando sob o seu patrocínio ou contribuindo para a publicação de boletins, livros e outros tipos de comunicação, designadamente em artigos de revistas e jornais”.

Em Outubro de 2016,

publicou em livro, com o título “ A CONQUISTA DOS DIREITOS DEMOCRÁTICOS - 40º Aniversário da Constituição” uma compilação de textos com as intervenções realizadas no Ciclo Comemorativo do 40º Aniversário da Constituição da República, promovido pelo núcleo do Porto, 

em 28 de Março de 2015, 

por António Madureira - arquitecto, professor jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, participante no CRUARB, Baptista Alves - coronel engenheiro da Força Aérea, reformado, Director do SAAL, foi autarca no Município de Sintra, sobre “Direito à habitação – intervenção participada na cidade – Os projectos SAAL e CRUARB”;

em 9 de Junho de 2015, 

por Alfredo Maia – jornalista do Jornal de Notícias, foi Presidente do Sindicato dos Jornalistas, Pedro Tadeu – jornalista do Diário de Notícias, Rui Pereira – foi jornalista, investigador e docente universitário, sobre “ O direito à informação na Constituição da República e o quadro actual”;

em 14 de Abril de 2016, 

por Guilherme da Fonseca – juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional, José Castro Carneiro – Coronel de Infantaria, reformado, foi um dos Capitães de Abril no Porto, Manuel Freitas – dirigente sindical têxtil, Mestre em Sociologia do Trabalho pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sobre “A conquista dos direitos democráticos nos campos jurídico, militar e laboral”.

Tão importante como os textos publicados é a Introdução efectuada por Jorge Sarabando, moderador dos debates realizados e coordenador do núcleo do Porto, onde faz a história do 25 de Abril até à actualidade.

O problema da habitação é actualmente um dos problemas mais graves em Portugal. A política de habitação que se pretendeu desenvolver logo a seguir ao 25 de Abril de 1974, se  tivesse continuidade, hoje, a realidade seria muito diferente para muito melhor. A leitura dos textos da iniciativa de 28 de Março de 2015, permite compreender a situação.

Os textos sobre o direito à informação, muito interessantes, devem ser complementados com o livro publicado em 2017 “O 25 de Novembro e os Media Estatizados”, de Ribeiro Cardoso. É um livro de leitura obrigatória para quem pretender estar informado sobre acontecimentos que marcaram o processo da revolução portuguesa. Os saneamentos na RTP, a Emissora Nacional, o Rádio Clube Português, os afastamentos no Dário de Notícias, O Século, a Anop, o República, a Renascença, são assuntos tratados com rigor, que devem ser conhecidos e meditados.

A Associação tem realizado desde 2018 jantares comemorativos do 25 de Abril, com intervenções de Alfredo Maia, D. Januário Torgal Ferreira, Juiz Conselheiro Noronha Nascimento, Prof Sandra Tavares, Coronel Delgado Fonseca, Pedro Tadeu, prof Ana Sofia Ferreira, quase sempre com intervenções musicais de Eduardo Baltar Soares e Nuno Meireles.

Em 2019 realizou uma sessão comemorativa do 31 de Janeiro, com Sargento Lima Coelho e o jornalista Júlio Roldão.

Comemorou o centenário do nascimento de Vasco Gonçalves, que aconteceu em 3 de Maio de 1921, com concerto em Valadares com Fausto Neves, Manuel Rocha, Carlos Canhoto, Hugo Brito, Alexandre Weffort, Olga Dias, com intervenção do Coronel Baptista Alves; colóquio na Câmara de Matosinhos, com Comandante Henrique Mendonça, Coronel Castro Carneiro, Profs. Avelãs Nunes e Manuel Loff e Jorge Sarabando; produção de medalha comemorativa, do artista Acácio Carvalho; exposição evocativa com apresentação do livro “Cem cravos para Vasco Gonçalves” com o Prof. Avelãs Nunes e Jorge Sarabando; Colectânia documental sobre os eventos realizados no âmbito da comemoração.

Realizou na Fundação Engº António Almeida, um Acto de homenagem a Salvador Allende e aos democratas chilenos, 50 anos depois do golpe de Pinochet, com Cátia Martins, Roberto Merino, Cidália Santos, Ana Ribeiro, Grupo Maduro Maio, Guilhermino Monteiro, Hugo Brito, Paulo Vaz de Carvalho e Pedro Marques.Encontros com Frei Bento Domingues, Prof Sérgio Branco, D. Januário Torgal Ferreira, Jorge Sarabando, Pezarat Correia, Augusto Baptista, coronéis Castro Carneiro e Baptista Alves, com publicações numa série chamada “Cadernos de Abril”.

No passado dia 22 deste mês de Setembro, no Auditório da Biblioteca Municipal Florbela Espanca, da Câmara Municipal de Matosinhos, realizou-se um Encontro com o Almirante Martins Guerreiro, militar de Abril, com intervenções dos Comandantes Américo Rodrigues Soares e Mário Simões Teles, que teve um momento musical com Pedro Marques. As intervenções destes dois Comandantes foram de homenagem ao Homem, ao Cidadão e Revolucionário Almirante Martins Guerreiro.

O Almirante Martins Guerreiro, na sua intervenção contou episódios da organização e da  luta política antes e após o 25 de Abril, muitos desconhecidos da maioria dos assistentes ao acto.

Mais documentos para a história do 25 de Abril de 1974, que certamente vão ser publicados nos próximos tempos, que devem merecer a melhor atenção.

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Atravessamos o Douro, da Régua para a N222, pela nova ponte metálica para uso de peões e velocípedes. A meio do percurso, voltamo-nos para o local que deixávamos e procuramos o Peso na encosta, a cidade alta, aquela que primeiro olhou o rio. A Régua, essa chegou do mar, veio com o comboio, com a sua paragem, que a fez nascer e crescer e alcançar o Peso que sobranceiro dominava a paisagem. Agora é o Vinho que lhe dá grande parte da vida. Quando o olhar se volta para Leste na procura da estrada que nos leva, aparece majestática e pesada face à natureza que a rodeia, a ponte da auto-estrada a que deram o nome do poeta imenso da região das fragas e socalcos e logo nos assalta o pensamento o seu depoimento em poemário, “De seguro, / posso apenas dizer que havia um muro / e que foi contra ele que arremeti / a vida inteira”. As também palavras de Miguel Torga na visita ao mosteiro de Santa Maria das Júnias, deixam-nos sempre no umbral do deslumbramento quando descreve o cenário e refere-se aos monges que ao longo de centúrias ali penaram com “O corpo a magoar-se contrito no cilício quotidiano da realidade e a alma a ouvir de antemão, enlevada, a música da eternidade” (1). Hoje o poeta observa da altitude da ponte que leva o seu nome, o seu Douro inesquecível. A N222, como muitas das estradas construídas durante os anos de chumbo, segue os contornos da paisagem, perde-se em curvas e contracurvas, mas evita despesas com construções que pudessem melhorar o traçado e diminuir riscos. Durante longos anos, percorrê-la era um gasto de tempo e um risco de vida, mas poupava o regime para as suas contas certas e o atraso do país, mas a partir da Régua, o traçado altera-se, alonga-se em rectas num patamar nivelado, entre a montanha e o caudal do rio. O património arquitectónico escasseia, mas sobra em natureza, em paisagem, em horizonte de beleza. Deixamos a Rota do Românico e embrenhamo-nos na Rota do Vinho do Porto. Até Bagaúste quase não há espaço para a estrada e o rio parece um ribeiro manso em tempo de Verão e quase não se acredita na sua navegabilidade. A partir da barragem é como se pudéssemos abrir os braços e assalta-nos como uma espécie de alegria. Não há habitações e as Quintas debruçam-se no pináculo das encostas por onde se chega trepando por íngremes caminhos. Uma entidade internacional descreveu os vinte quilómetros seguintes como uma das mais bonitas estradas do mundo. Sente-se essa delícia quando se viaja neste espaço. A montanha desdobra-se como as dobras de um lençol, rasgadas em socalcos que nesta época se desembrulham num painel de cores irrepetível. No lado oposto, o granito que se derruba sobre as águas só deixa lugar para a linha ferroviária e em certos espaços nem para ela há lugar tendo de rasgar caminho pelo interior daquela muralha de pedra, mas é tudo isto que engrandece o que os olhos contemplam. Por vezes a sequência montanhosa aceita um rasgão para a passagem de um pequeno afluente do grande rio e vemos pequenas estradas e nomes de lugares que se acham em vales perdidos ou entre desfiladeiros que se comprimem. Em Folgosa, sente-se uma abertura, o Douro alarga-se e parece imobilizar as águas, e o azul com o verde predominante e terra à mistura levam-nos para uma outra dimensão temporal. É impossível não parar, olhar o horizonte oposto e aguardar a passagem do comboio na outra margem. Há uma espécie de neblina que apaga os sons e a velhinha 1413 passa como um fantasma que desliza na luz celestial da tarde. A imobilidade que sentimos fez-nos lembrar palavras que lemos algures, “A alegria é imperecível, pensei, e a dor apenas nos recorda o belo que em nós se reflecte em imagens efémeras e que voltamos a amar em cada hora que uma imagem de idêntica beleza desperta o nosso olhar. Queremos detê-lo, dele nunca mais nos apartar. E então ele mergulha no nosso coração e converte-se em recordação, como tudo o que possuímos, a que aspiramos e que reencontramos”(1). Deixamo-nos ir, vagarosamente, como se uma necessidade nos empurrasse e uma vontade nos detivesse. Na foz do Távora paramos em meditação, da extensão do rio, no trabalho humano para domesticar a natureza e a força desta na resistência a persistir como nasceu. A luta hercúlea entre ambos gera cenários como aqueles que o Douro vive na sua lenta procura do mar. A nós que viajamos aparece-nos como um anfiteatro que nos gera um sentimento emocional que nem sempre podemos explicar ou explicitar. É um embevecimento sem limites. “Mas era precisamente a similitude da beleza que tanto me comovia, a pureza do ar, o resplendor sobre as montanhas, a serena jovialidade da terra e da bendita abundância, o suave sopro do azul”(1). Na foz do Rio Torto, deixamos a N222 e percorremos os dois quilómetros que nos separavam da pequena vila do Pinhão. A estrada perdeu fulgor, tornou-se numa pequena via, estreita e não fosse a paisagem que a rodeia, não teria encanto. Talvez por isso, levamos o olhar na margem oposta e deixamos o pensamento vadiar, em razões de reflexão sobre o sentido da vida e da morte, “Então voltamos a habituar-nos à ideia de que a nossa Terra também continua a sua interminável rotação, enquanto nós caminhamos para o nosso fim corpóreo e tudo o que fazemos é efémero”(1).


[1] Annemarie Schwarzenbach em “Escritos Africanos”, Relógio D’Água, 1ª edição, Lisboa, Março de 2023

PELA PROTEÇÃO E VALORIZAÇÃO DA RIBEIRA DO PORTO

José Castro

(Fotografia aérea da Ribeira de Artur Pastor)




Em 21 de setembro de 2022 a Academia Europeia de Cinema escolheu a Ribeira do Porto para ingressar na “Lista de tesouros da cultura cinematográfica da Europa”.  É o único lugar de Portugal que consta dessa lista de 35 espaços simbólicos para o cinema europeu., locais onde foram rodados filmes de consagrados realizadores: a praia Sète (que foi cenário de mais de 100 filmes de Agnès Varda), o Círculo de Belas-Artes em Madrid (muito relacionado com filmes de Almodovar), a Colegiada de Sant Vicenc em Cardona-Catalunha  (onde foi rodado o filme “As badaladas da meia-noite” de Orson Welles), o Memorial Eisenstein (na rua Smolenskaya nº 10 em Moscovo, onde se encontram vários materiais deste realizador) ou  a Escadaria de Odessa (cenário do filme “O Couraçado Potemkin”).

A Ribeira do Porto foi cenário de 3 filmes de Manuel de Oliveira: “Douro, faina fluvial” em 1931  (que escandalizou as autoridades ao mostrar a vida duríssima, e gente de pé descalço),  “Aniki Bobó” em 1942 e “Porto da minha infância” em 2001.  

A Academia Europeia de Cinema considera que a  Ribeira do Porto e os outros locais da “Lista de tesouros da cultura cinematográfica europeia”,  por  serem  lugares tão especiais  precisam de ser  preservados para as gerações futuras. A classificação da Ribeira em 1996 pelo Comité do Património da Unesco como centro do “Património Mundial da Humanidade” também foi no mesmo sentido da proteção e valorização. Mas para isso acontecer, as entidades públicas e os cidadãos  têm que fazer frente aos interesses imobiliários que continuam a expulsar  tantos  moradores (gentrificação)   e a descaracterizar a zona da Ribeira.  É mais um combate que todos temos que travar  pela memória, pelo património cultural ...
View My Stats