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01/07/14

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CARTAS DE LONGE (última)

Alcino Silva

 

Cabo de Hornos, Ilha de Hornos, Província Antártica Chilena, 30 de Junho de 2014

à redação da Periscópio

caros periscopianos, o Inverno agrava-se a cada dia que passa, as temperaturas baixam, o solo endurece, as águas gelam e da cordilheira sopra um vento cortante que nos queima a pele ao mínimo descuido. No interior da casa, a lenha crepita no sossego da noite e irradia esse calor que conforta o corpo e aquieta a alma. Nos próximos tempos, os dias mais quentes não excederão os zero graus. Nas manhãs em que o sol faz brilhar a brancura do solo, tento caminhar em direcção ao cerro Prat, mas a desistência chega pouco depois, face ao frio e ao vento. Escrevo no tempo presente, mas este, como podem ver pelo endereço remetente, é já passado. Não foi a inclemência invernal que me venceu, mas antes as notícias, apesar de escassas, que chegaram do país distante que me contavam desse governo ocupado por vadios que vão devastando as esperanças e os sonhos da pátria, arruinando uma sociedade que nunca deixando de ser débil parecia desejar renascer dessas sombras onde a mergulharam cinquenta anos de autocracia e destempero mental. Os excrementos do fascismo renascem alimentados pela seiva de uma burguesia neandertal, sustentada nessa criatura de anormal intelectualidade que na boçalidade da sua ignorância, acredita presidir aos destinos do país. Sentindo a nação transformada num imenso campo de concentração a céu aberto, onde o saber, a criatividade, a educação e a cultura são mergulhados em tinas de gases fétidos, deixei a província da Última Esperança e rumei a sul, afastando-me o mais que pude de um destino que rasga o peito de qualquer humano que acredite que o sonho é a aventura central da humanidade. Escrevi as duas últimas cartas de despedida, uma a Neruda, o poeta que deixou o livro da minha vida, e uma outra para vós com um sentido abraço final. Ao poeta da Aracâunia, falei-lhe dos seus Vinte Poemas de Amor e de como também eu, escutei os silêncios da minha Albertina, não nesse comboio a caminho de Concepción, mas antes na varanda da vida, enviando cartas por todos os comboios que iam passando. Também eu inclinado nas tardes lhe lancei as minhas tristes redes, mas apenas o seu silêncio acossou as minhas horas perseguidas. Nas pedras do cais do porto de abrigo onde me acolhi em busca de refúgio, não havia elos de ferro onde pudesse amarrar as cordas da minha solidão e apesar de romper as mãos, agarrando-me, a maré cheia da alegria acabou por afastar para longe a tristeza onde repousa a minha alma. Ah, poeta se soubesses como eu a amei, escrevi ainda em rodapé da carta, mas tudo terminou como no último dos poemas do teu livro, como se dissesse ainda, é a hora de partir, a dura e fria hora que a noite prende a todos os horários, mas disse-o com as palavras da minha canção desesperada, A noite escura, as águas revoltas e eu só, nessa luta constante e intensa para chegar mais longe ao destino sem nome e sem lugar onde possa, por fim serenar. E a segunda carta é esta que vos envio do ponto mais meridional do hemisfério sul se esquecermos as longínquas Ilhas Ramirez. Aqui reina o vento e a chuva e o mar envolve ambos no seu manto de cinza e de frio. Aqui não há solidão nem silêncio, pois neste lugar habitam os elementos da natureza sob esta pedra musgosa batida pela água que se ergue do mundo do mar e da outra que tomba do universo. Daqui não é possível fugir, mas também é certo que as maldades do mundo não penetram na pureza desta natureza ancestral. Por vezes caminho até ao monumento ao albatroz errante a ave que enche o ar com o seu voo majestático e belo. Há dias no regresso e ao olhar a pequena capela no outro extremo, cuidada pelo faroleiro e família,recordei palavras de Sophia carregadas dessa beleza que a poetisa lhe incorporava. Apenas pude lembrar de forma solta nos interstícios do pensamento, pois nada trouxe comigo, exceptuando a memória, ou que restava dela, e a alma magoada. «Quando saíres da aldeia, à direita encontras um caminho de terra amarela, vais por ele e sobes a colina. Ao chegares, encontras uma igreja, entra e ajoelha-te, contempla as grandesparedes brancas e escuta o silêncio». Não alongo esta carta, sintam no interior destas palavras um desses abraços estendidos que deixamos àqueles que connosco comungam os dias de esperança, que não desistem do sonho que vive desde o romper da história no mais profundo da alma humana, acreditando que a pátria de Damião de Goes, de 1383, dos poetas e dos homens livres há-de renascer sobre os escombros da pestilência dessas criaturas imundas que hoje povoam os corredores dos palácios onde acreditam governar. Nas tardes em que o vento e a chuva estabelecem uma trégua, abeiro-me da falésia e admiro o voo do albatroz errante com os quase três metros das suas asas estendidas planando. Por momentos, sinto a alma apaziguada, mas então ocorre-me à memória o texto que abre o livro de Hemingway e já não sei se os sinos não dobrarão por mim.

Águas passadas do rio

Meu sono vazio

Não vão acordar

Rios que vão dar ao mar

Deixem meus olhos secar

Águas do rio correndo

Poentes morrendo

P'ras bandas do mar

Águas das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto a cantar

José Afonso

 

 

 

A LESTE DO PARAÍSO

António Mesquita

Hoje, 16 de Junho, dia em que escrevo esta crónica, passei pelos Poveiros e ladeei o jardim de S. Lázaro que tantas vezes ateavessei no caminho da escola.

Parecia parado no tempo, com os seus quatro portões fechados como que protegendo a bela sombra das suas árvores com o pequeno lago no meio e perto de uma fonte que já vi algum aluno das Belas Artes ( a escola fica a cem metros) a desenhar, mais os seus caracóis de mármore. Não estava, de facto, vivalma lá dentro.

Com essa decisão do município, subitamente, o prosaico jardim junto à velha Biblioteca, ganhou um mistério inesperado. Lembrei-me logo do filme de Vittorio de Sicca sobre os Fizzi-Contini e da Dominique Sanda a dar um pulinho para olhar para além do muro.

Tínhamos ficado do lado de fora a olhar por cima do gradeamento aquele silêncio surpreendente misturado ao perfume das tílias. Mas, enfim, aquele era, apesar de tudo um espaço público e não seria exorbitante pedir um aviso qualquer a explicar a estranha ocorrência (confesso que não dei a volta). Perguntei a uma varredora da câmara pelo que se passava e também ela se dava agora conta que o jardim estava mesmo fechado. Depois do almoço voltei a passar por lá e o gradeamento estave cheio dos habituais fregueses dos bancos do jardim, alguns comendo a sua bucha e a olhar para aquela frescura posta em sossego. Pareceu-me que eles eram um pouco como aquelas pessoas que vão para a Foz contemplar as ondas (não o mar).

Diga-se o que se disser, ele há poderes de todos os feitios e tamanhos, embora nos queiram fazer crer que o que conta faz parte da gente da televisão (com a excepção do Facebook do presidente).

Porque a televisão está longe de ser apenas a empresa, pública ou privada, que conta histórias de adormecer em pé a milhões de dependentes. Está tão entranhada nos vários modos de fazer política e de representar o mundo político-partidário que usurpou o nosso direito a ter uma opinião própria, e, como diz Jerry Mander merecia bem que se acabasse com ela.

Reconheço que este foi um 'triplo salto mortal' na lógica do que eu estava a dizer sobre um dos mais conhecidos jardins do Porto...mas está tudo ligado, como diz o outro.

 

 

 

 

 

 

PARTIDO SOCIALISTA (PS)

Mário Faria

http://batente.blogspot.pt/2006_07_01_archive.html

 

Durante algum tempo, colaborei activamente no Fórum do Público. Em 2002 discutia-se a crise no PS depois da saída de Guterres que ficou empanado depois da queda no pântano. Ness altura, escrevi o seguinte:

“Seria muito importante para a esquerda que o PS ousasse promover uma séria reflexão sobre o projecto do socialismo democrático. Aprofundamento ou revisão, eis a questão. O PS, pelo que se lê, parece apenas interessado em demonstrar que é mais apto para gerir o capitalismo que o bloco de direita. Assim sendo, é de esperar que o Congresso vote (algumas) mudanças na continuidade, o que pressupõe que não haverá renovação programática nem mexidas substanciais nas práticas do partido. Ferro Rodrigues estará mais posicionado à esquerda, mas não vai renovar. Haverá ajustes tácticos na acção política e a (des)promoção de alguns quadros do partido, com o objectivo do melhor (re)posicionamento do PS para o regresso ao governo. É (muito) pouco e vai custar caro ao PS não ser capaz de aproveitar esta oportunidade para retomar a iniciativa e marcar a agenda política. É fácil tirar partido do enorme descontentamento popular face ao desempenho do actual elenco governativo, como aliás, os resultados da última sondagem (SIC/VISÃO) indiciam sobe a popularidade dos líderes políticos dos principais partidos nacionais. Afinal, os portugueses parecem claramente preferir “A vitória dos Marretas” ao “Triunfo do Cherne”.

Em concreto, depois de 2005, tivemos um governo maioritário do PS sob a liderança de José Sócrates que não conseguiu resolver a crise financeira que assolou o país (e o “mundo civilizado”) e ficou como principal responsável pela bancarrota que levou o país ao abismo e à condição de protectorado. Desse tempo, restou ao PS o PEC4 para esgrimir com a direita a coragem do partido em afrontar os mercados; o socialismo foi para a gaveta (mais uma vez) e repousa lá sem acordar.

A situação actual do PS não é (exactamente) igual à de 2005 em que conseguiu chegar á maioria absoluta, orgulhosamente só; hoje não poderá dispensar a presença de aliados que o ajudem na travessia do Rubicão. A José Seguro não resta outro caminho que fechar-se no seu labirinto e vitimar-se: não tem aliados fora da estruturae pariu as directas como meio de salvação. Está ligado à máquina; António Costa em termos programáticos pouco adianta e esconde-se em lugares comuns, politicamente correctos e sem compromissos. Subliminarmente da sua mensagem fica a vontade defirmar uma aliança com as forças de esquerda. É minha convicção que António Costa vai privilegiar o entendimento com a direita da esquerda, através de Marinho e Pinto e o seu PT, a esquerda da esquerda com o Livre & Associados e com o Bloco se este aceitar juntar os trapinhos e transformar-se numa espécie de MDP/CDE do PS: independente mas non tropo. Gostava de acreditar que o projecto político de António Costa é abrangente a toda a esquerda: um programa de salvação nacional inclusivo aquem quiser por bem entrar. De esquerda, obviamente. “A esquerda está sempre do lado do devir, da criação de um direito; a direita naturalista preserva direitos constituídos e responde a determinações realistas; ela não precisa de construir um pensamento, só precisa de alimentar o conformismo”. Esta é uma luta desigual, segundo António Guerreiro, muito mais exigente para a esquerda que tem de ser capaz de criar projectos utópicos para combater o hiper-realismo da direita. Não acho que haja gente capaz para teorizar essa nova utopia e por isso o futuro continuará muito difícil para a esquerda.

O BES é a face perfeita para simbolizar a origem da crise e os seus efeitos. Dá para perceber que os altos dignatários do banco representam a face visível da desordem e da corrupção que é o habitat por excelência do sistema; o dito capitalismo social não é para valer, é para vender. Enquanto não houver vontade e músculo para deter essa gente com poderes ilimitados, estamos tramados. Sem criar demasiadas expectativas políticas, é urgente criar uma alternativa ao actual governo, com princípios, alvos, processos e direitos sociais claramente definidos politicamente. Poucos, mas bons. E para executar, se obtiverem o favor da maioria. A credibilidade começa aí e a políticados pequenos passos fica com pernas para andar. Nesta fase do campeonato, não creio que possa ser de outra maneira.

 

O REGRESSO

Mário Martins

 

Eduardo Lourenço está de volta ao solo pátrio.* E com que agudeza de espírito. Como se de um mestre pintor da renascença se tratasse, o velho pensador traz-nos a perspectiva. A nós, consumidores da informação-entretenimento instantânea. É como quando entramos numa catedral. Tudo muda. A velocidade e a atitude, fenómeno que não passou despercebido a esse outro (jovem) pensador, que é Gonçalo M. Tavares. EL acha que Portugal "é uma espécie de milagre intermitente", dada a grandeza de Espanha no espaço ibérico. Na época dos descobrimentos "a Europa era, ela própria, pensada como o centro do mundo. E o centro da Europa era a península e a cabeça da península era este reinozinho chamado Portugal. À época, chegar à Índia era quase como ter chegado à Lua". Mas "500 anos de Portugal como país colonizador acabaram em Abril de 1974 (…) e agora o nosso problema é que, pela primeira vez desde a tomada de Ceuta, voltámos ao nosso cantinho". Sobre a Europa, EL não é complacente: "Só nós, europeus, é que entramos em depressão. Nunca vi os árabes terem esse discurso. Isso tem a ver com a fé (…) Mesmo com todos os problemas que tem, é um continente altamente privilegiado. As nossas doenças são de gente rica".Estamos "inseridos num fenómeno de crise, não direi planetária, mas pelo menos ocidental. Por outro lado, "temos pelos menos três versões da Europa desde o século XVI, devido ao acontecimento mais importante da história europeia, que foi a Reforma. A Reforma criou duas Europas, porque mudámos de religião. Pior do que isso, é a mesma religião em duas versões (…) E há ainda uma terceira, que é a Europa ortodoxa propriamente dita, que não se alterou até 1917, e que voltou à mesma, apesar de tudo o que aconteceu na Rússia (…) A crise da Europa não é uma crise superficial, é uma crise profunda. É que a civilização e a cultura à qual nós pertencemos é crítica desde a sua origem. Este é o continente onde foi inventada uma forma de pensar o mundo e de nos pensarmos a nós próprios que é laica na sua essência e que se chama filosofia (…) É uma civilização em que tudo é debate. Até Deus é discutível. Nas outras civilizações, Deus é a resposta. Para nós, Deus é a questão (…) O futuro diálogo é o diálogo entre a parte mais antiga do planeta, que é o Oriente, e a parte mais nova, a América, com a Europa no meio. O elo histórico desse diálogo e dessa possibilidade de contacto é a Europa. Temos a sensação que começou um novo período na história da humanidade. Portugal terá o destino que tiver a Europa. O que caracteriza a história da humanidade é a sua imprevisibilidade. Mas navegamos há 800 anos e não vamos naufragar à primeira onda, não creio".

Saudemos, pois, o regresso do velho mestre ao "labirinto" e a sua mensagem de esperança.

Revista Jornal Expresso 2014-06-13.

 

 

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