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01/12/20

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BARCO NEGRO

Manuel Joaquim


Amália Rodrigues


A “Antena Um” transmite programas semanais, de autor, de muita qualidade. “ Viva a Musica – Lugar à Musica Portuguesa”, de Armando Carvalheda, é a redescoberta da música lusa que nas diversas emissoras de rádio simplesmente não passam. “O Fado e Outras Grandes Músicas” e “Vozes da Lusofonia“, programas de Edgar Canelas, algarvio, é o encontro com o Fado, com os fadistas, com os músicos e cantores que só lá acontece. As horas das noites de domingo, a seguir ao noticiário da meia-noite, são horas de bom gosto ao ouvir o programa que nos é oferecido. 

No passado dia 16 de Novembro o programa foi dedicado a “Amália Rodrigues – Amália Rodrigues em Paris – 3ª parte”, com a participação de Frederico Santiago, pesquisador e coordenador das edições discográficas de Amália e responsável pelo tratamento e edição integral da obra da cantora na Valentim de Carvalho. Os comentários à vida e obra de Amália Rodrigues, a sua passagem por França, as gravações efectuadas, a sua internacionalização, foram muito importantes para o desvendar de algumas situações mal conhecidas. A certo momento falaram de um fado que Amália cantou em Paris, "Barco Negro", que apareceu primeiramente no filme "Les Amants du Tage", de 1955.

"Barco Negro" é um poema de David Mourão Ferreira que utiliza a música de uma canção brasileira, “Mãe Preta”, de autoria de Piratini (António Amabile) e de Caco Velho (Matheus Nunes) que se referia ao drama de uma ama negra no tempo da escravatura, canção que chega a Portugal, nos primeiros anos da década de 50, na voz da fadista Maria da Conceição, regressada do Brasil. Esta canção passava na rádio com muita frequência e muita gente a conhecia. Aconteceu que a censura a proibiu. Nunca mais ninguém a ouviu nas rádios. É a partir daí que aparece a canção “Barco Negro” cantada pela Amália Rodrigues.

Ao ouvir uma parte desta história, lembrei-me de que quando era muito jovem, teria 10 anos de idade, assisti a uma grande discussão entre diversos homens na taberna do senhor Serafim, que ficava em frente a minha casa, sobre as canções “Mãe Negra” e “Barco Negro”, que a Pide tinha proibido a primeira e  que a Amália se tinha aproveitado do seu êxito para cantar a segunda. 

Todos reconheciam as qualidades de Amália Rodrigues e reconheciam que a letra do fado, que tinha por tema o amor de uma mulher por um homem morto num naufrágio,  era muito bonita. Foi a partir desta discussão que o nome de Amália Rodrigues me despertou curiosidade e atenção. Os meus Pais, todos os dias, ouviam rádio, ouviam música. A minha Mãe gostava de ouvir fado e o rádio teatro, o Tide. Eu, muitas vezes, ouvia rádio sozinho. Eu gostava de ouvir a Amália Rodrigues. 

Este ano comemora-se o centenário do nascimento da Amália Rodrigues. Estão a ser publicados livros e discos comemorativos. “Amália – Ditadura e Revolução – a história secreta”, de Miguel Carvalho, é um livro com cerca de 600 páginas. É um livro que resultou de uma grande investigação. “Amália – A raiz e a voz”, é um livro organizado por Arnaldo Saraiva, com desenho na capa de Álvaro Siza, publicado pelo Jornal do Fundão, terra das raízes de Amália Rodrigues. 

Hoje, a canção "Mãe Negra" é cantada pela Dulce Pontes,  pelo Paulo de Carvalho e por outros.




UM BELO TRIBUTO

António Mesquita


O filme de Fellipe Barbosa "Gabriel e a Montanha" inspira-se num caso real. O amigo do realizador, Gabriel Buchmann, como preparação da sua tese académica, quis "estudar a pobreza" no mundo e lançou-se numa aventura juvenil à volta do globo para acabar morrendo de hipotermia a 3 mil metros de altitude, em África, no Malawi, em 2009.

Os capítulos do filme correspondem a quatro países africanos (Quénia, Tanzânia, Zâmbia e Malawi). Ele parece saber o que quer, estudar as pessoas no seu meio, viver entre elas, durante a sua breve estadia, aprender os seus costumes, as suas expressões, sem pecado de "turistar". Procura distanciar-se tanto quanto é possível das recomendações do guia de viagem. Entre os Massais do Quénia, por exemplo, veste-se como eles e come o que eles comem. Ajuda com o dinheiro da sua bolsa algumas famílias indígenas.

A meio da viagem recebe a visita da sua namorada do Brasil e apesar do prazer físico e das saudades desafogadas, as discussões são frequentes por causa das ideias fixas de Gabriel, do seu irrealismo. Quando voltou a ficar só, quis ainda "queimar os últimos cartuchos" numa expedição arriscada, no Monte Mulanje, no Malawi. Aventura-se à última incursão ao cimo gelado, com as sandálias de sempre que para ele são uma espécie de talismã. Vemo-lo nas cenas finais afligido pelo frio e com os pés doridos, perdido na bruma.

Vasco Baptista Marques, no "Expresso", fala de sobranceria cultural. Como se este jovem estivesse convencido de tudo sem provas, apenas pelo sentimento da sua superioridade face à cultura indígena. Mas devemos notar que ao nível pessoal, Gabriel estabelece relações fáceis e cria empatia à sua volta. É caso para dizer que existe aqui uma intolerância das ideias aliada a um instinto seguro e a uma bonomia natural.

Há uma cena capital para compreender a personagem. Vencido o cume do Kilimanjaro, no Quénia, Gabriel enterra sob a neve uma fotografia do pai. Esse gesto remete-nos para um idealismo de um outro tipo, quase religioso. A "irresponsabilidade" de Gabriel talvez seja uma forma de heroísmo consagrado ao culto do seu progenitor. Tanto no sentido de se achar transfigurado por essa inspiração, como na vocação de um sacrifício. O seu optimismo cego, é o oposto da visão do grande dramaturgo russo citado por Cristina Campo:

"O famoso pessimismo de Tchekov é afinal o único optimismo possível, o optimismo do médico quando se torna mediador: ver o mundo como é, os nossos semelhantes como são e juntamente tentar "ler de outra forma", decifrar o gigantesco significado hieroglífico com a única chave que lhe é dada: a força de aceitar ao mesmo tempo a ordem do mundo e aquilo que continuamente a supera."

Claro que o filme se projecta numa outra dimensão, para lá da pessoa real que foi Buchmann. Como se pode ver por este extracto do livro "Gabriel, as Montanhas e o Mundo" de Alícia Uchôa e Fátima Chaves de Melo Buchmann, essa pessoa parece ser mais simples e adolescente no seu entusiasmo e ingenuidade do que a personagem interpretada por João Pedro Zappa.

"Etapa mundo comunista-ortodoxo-budista cumprida, parto pra rodar pelo mundo indiano, depois pelo pouco que me conheço, sei que não conseguirei resistir a ir pro Nepal pra cruzar o Himalaia no auge do inverno, e depois cruzo o mundo árabe – Paquistão, Irã e Síria – pra cair na África, origem dos povos e onde não faço ideia do que me espera… Já me resignei a deixar a costa oeste africana pra uma próxima viagem e farei a rota Cairo-Cape Town com o que estiver pelo caminho antes de voltar pra casa no fim de julho..."

Ou neste seu mail de 5 de Junho de 2008:

"Tenho que botar essas coisas na cabeça. Europa, América Latina e Ásia são Disneylândia. Mas a África não. É outra parada. Tô criando essa consciência aos poucos, não posso ser tão destemido por essas bandas quanto sou normalmente, não sei se o meu anjo da guarda se garante tanto por lá."



NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva 



Agora que o tempo parece mais acelerado, por muito que se esforce em retê-lo, nessa marcha inevitável para a eternidade, pelo Outono, aproxima-se do rio, e enquanto caminha numa lentidão meditativa, deixa correr os afluentes da memória. O olhar, vagueia enquanto caminha pelas velhas ruas de uma cidade que já foi operária. Aquelas artérias cheias de vida e hoje sonolentas e envelhecidas, esquecidas até por quem as devia cuidar. A sua estreita largura, a ausência de passeios, o empedrado, as janelas coloridas, os vasos à porta. Quando espreitamos, vemos corredores, ladeados de outras casas, escondidas do olhar de quem passa. Chegam-lhe os sons das meninas da infância que povoavam a sua vida e desapareceram para sempre, uma que nem chegou a conhecer o nome, pois em criança era o diminutivo que prevalecia, a outra partiu já tarde, em silêncio, por vontade própria, e quando a informação lhe chegou sentiu essa dor inapagável do irremediável, do que é definitivo, do nunca mais. A pequena artéria abre-se numa nesga de pedra e permite que o olhar procure a praia na outra margem, o comboio que passa em direcção à ponte nova e elegante, em paralelo com a centenária que cumpriu o papel que lhe destinaram. Depois é o granito que nasce soberbo do outro lado, que aceitou descansado o mosteiro que já não é, as orações a Deus substituídas pelo ferro das armas. Como somos tão cruéis com nós próprios! A velha cidade que já esteve emparedada entre grandiosas muralhas, nasce pousada na encosta. O ocre das cores das paredes, a voz das mulheres chamando alguém, as escadas sem fim, abruptas sobre as águas, os labirintos esguios de ruas cujos nomes se perdem no tempo. O olhar perde-se também no horizonte como alguém que está em viagem, na procura, não do desconhecido, mas do que há muito aconteceu. Os olhos castanhos, dessa cor amendoada que lhe faz recordar o aroma da canela, as palavras pronunciadas com ternura e o espaço onde o rio encontra o mar, onde a procurava, entre áleas apertadas, entre muros altos que protegiam o viver de gentes enriquecidas. Mas essa foi uma época de olhares sucessivos, encontrados em cada curva da estrada e que foram deixando um rasto na memória que, olhado à distância, aparecem com uma grandeza ainda maior e quase feliz, diluindo até, as dificuldades que o quotidiano apresentava. Nos românticos caminhos que foram de há dois séculos, sente a tranquilidade desses finais de tarde, quando o sol vai descendo entristecido sobre o poente enquanto enrola os seus laços dourados nos ramos das heras que cobrem paredes e deixam desenhos de verde sobre os muros ou brilham sobre um dourado fosco no que ainda resta das cores das buganvílias. A taiga, a imensa estepe, o silêncio sentido na travessia de longas florestas de bétulas e que um outro Outono começava a cobrir de neve, transformando esse silêncio num longo momento de solidão, de encontro com o nosso eu, a nossa existência e o que nos rodeia. Regressam os olhos amendoados num rosto quase asiático e de beleza extasiante. O escaldante deserto das caravanas infindáveis, as velhas ruas de uma cidade morta pela água que deixou de chegar e o azul encantador da mesquita que se ergue soberba por entre o dédalo de ruas. As montanhas azuis olhadas de uma altura assustadora, os tons esbatidos pela distância não amorteciam o fascínio atractivo que exercem com as suas eternas neves, cobrindo a pedra nua. Os caminhos que tentou adivinhar e que desejou percorrer. A ponte bela e elegante que permite olhar o passado e o infinito em cada um dos seus lados e deixa ver a pequena aldeia que já foi, separada da cidade e na qual a burguesia enriquecida foi pousando em dias de repouso e prazer. É de novo, o enredo dos caminhos, a poesia das flores que transbordam das paredes e dão um colorido que fazem adivinhar jardins cativadores e repousantes, onde sabe bem saborear o declínio das tardes entre chilreios de pássaros que se acolhem no interior da copa das grandes árvores preparando o repouso nocturno. Quando por fim sobe ao alto cerro onde a ponte atravessa o rio e estira o olhar vivido para a longitude marítima, onde os dois azuis se misturam e confundem, apura o ouvido para os cativantes sons do longínquo, “águas passadas do rio, meu sonho vazio, não vão acordar”, enquanto uma moldura como um rodela de espantoso vermelho tremeluzindo cobre o horizonte, repleto de amarelas tonalidades, num cenário de fim de vida, recortando a figura minúscula de um cargueiro que atravessa a mancha, aparecendo obscurecido pela contraluz. Em baixo, a alguma distância, os sons tardios dos sinos da igreja, atravessam aquela evolução crepuscular. Tangem tristes, fatigados, num esforço para que o seu dobre chegue ainda às almas dos crentes. Ao escutá-los, na solidão desse dia, já não pergunta por quem dobram os sinos.
       

 







A VERDADE EM PESSOA

Mário Martins

https://portugalalupa.blogs.sapo.pt/pelos-passos-de-fernando-pessoa


“O mito é o nada que é tudo”

Fernando Pessoa



Como qualificar este excerto (citado por Pedro Teixeira da Mota in “A mítica ideia de um império” – Revista Expresso, 2020-09-26) de uma entrevista dada em 1926, a propósito do Quinto Império Português, por esse grande pensador que Fernando Pessoa também foi?: 

Há só uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. De instinto, a Humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível. O mundo conduz-se por mentiras; quem quiser despertá-lo ou conduzi-lo terá de mentir-lhe delirantemente e fá-lo-á com tanto mais êxito quanto mais mentir a si mesmo e se compenetrar da verdade da mentira que criou. Temos, felizmente, o mito sebastianista, com raízes profundas no passado e na alma portuguesa. Nosso trabalho é pois mais fácil; não temos de criar um mito, senão que renová-lo. Comecemos por nos embebedar desse sonho, por o integrar em nós, por o encarnar. Feito isso, cada um de nós independentemente e a sós consigo, o sonho se derramará sem esforço em tudo que dissermos ou escrevermos, e a atmosfera estará criada, em que todos os outros, como nós, o respirem. Então se dará na alma da nação o fenómeno imprevisível de onde nascerão as novas descobertas, a criação do mundo novo, o Quinto Império. Terá regressado El-Rei D. Sebastião.”

Cínico e provocador? Talvez. Desconcertante e fascinante? Sem dúvida.

As frases que mais me impressionam (isso do Quinto Império não me interessa), sobretudo num tempo, como o actual, de descarado uso político da mentira, são essas de sustentarem que “de instinto, a Humanidade odeia a verdade, porque sabe, com o mesmo instinto, que não há verdade, ou que a verdade é inatingível.”; e que “o mundo conduz-se por mentiras.” Frases que, lidas simplesmente, certamente farão as delícias da extrema direita populista, mas cujo significado, em contexto, é mais complexo. 

O contexto é o da construção ou renovação de um mito, quer dizer, por definição, do que não é real ou verdadeiro, embora inspirado nele. Poderemos então concluir que o mito, como não é verdadeiro, é uma mentira? Definindo-se esta como falsidade, engano, ou embuste, o mito será uma mentira se quiserem tornar o que é apenas símbolo em coisa real e verdadeira mas, despido dessa intencionalidade, é uma alegoria que, na psicologia humana, tanto se confunde com o real e o influencia.

No entanto, a afirmação de que não há verdade, ou que a verdade é inatingível, transcende o contexto mitológico para se situar numa exegese do conhecimento. No artigo anterior defendi, na mesma linha pessoana, a impossibilidade humana de aceder à verdade natural, quer dizer, à que existe fora de nós (lembremo-nos que só existimos há pouco tempo), mas sem, com isso, pôr em causa, no patamar humano, a verdade assente na prova.

A força simbólica do mito, tão cara a Pessoa, não é, de facto, tudo.
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