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01/04/18

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

(Baalbek ruins)


Acreditara que as tuas últimas palavras se tinham escoado no derradeiro poente e que de seguida só Sils tinha aparecido no teu destino e de pé havia ficado aquela saudade da perda do que amamos. Mas o acaso saiu-me ao caminho, um desses instantes fortuitos que nos acontecem quando olhamos apenas por curiosidade sem a intenção da descoberta. Tinha-te procurado nas aldeias do Cáspio onde se albergam os pescadores de esturjão, regressei ao deserto, atravessei a Anatólia e percorri as margens escaldantes do Amu Dária e só desisti quando compreendi que a tua ausência era irreversível, havias partido com esses tons definitivos do absoluto. No entanto, agora, neste momento estavas de novo ali, com as tuas palavras que voltei a ler com essa vontade de beber como quando chegamos a um oásis, após a travessia de areias ferventes. Voltei a ver-te agora à sombra do Damavand com a sua cúpula brilhante dessa alva brancura que à noite brilha como lua cheia no apogeu e de dia é uma bússola que impede que qualquer rota fique sem destino. Contigo fiquei ao longo de intensos dias, como se revisitássemos aquele vale do Lahr, com as suas margens nuas de pedra áspera, nesses cinzentos e castanhos que umas vezes nos devastam a alma e outras nos enchem de beleza, e as correntes do rio, devastadoras no degelo, arrastando tudo na sua levada, sem destino, com essa pressa angustiante de chegar a lugar desconhecido, para mais adiante no espaço se deter quase extinto, por falta de corrente, de água, como a vida quando a alma se esvazia de sentimentos e se perde em infinitas recordações. Não há vegetação que nos abrigue que nos permita uma sombra para que os olhos se deslumbrem com a luminosidade, se espantem com a grandeza. Quantas interrogações fizemos sem resposta e quantas explicações encontramos para conforto da alma. Voltaste ao deserto sírio, a Baalbeck, à infância, a todos os lugares que percorreste nessa demanda de um momento de felicidade que ansiamos, e ambos nos questionamos sobre o que é essa felicidade. “Satisfação, harmonia, equilíbrio, paz espiritual?(1), foi a tua interrogação sussurrada no meu ouvido. Acompanhei-te nessa procura do tempo que foi. Também eu olhei o Aral de altura majestosa, esse mar nos limites do deserto que deixou de existir, derreti o olhar nas paredes cerúleas da mesquita de Samarcanda, vi as tuas montanhas azuis e o silêncio profundo chegou-me, quase dramático, em Salang. Sinto o teu olhar perscrutador voltado para mim e aproximas-te. Em redor, só o ruído do caudal do rio existe como som e começas a falar, tão baixo que quase não te ouço, “O silêncio entrou a jorros por mim adentro, alcançou o meu coração devoluto, ganhou peso, afundou-se e encheu-o até à borda”(1), e no entanto, prossegues, “Esta terra, este cenário maravilhoso, movido por um amor único e indivisível, era para mim uma redescoberta!(1) Volto a olhar-te nessa comoção intercalada de êxtase e de mágoa, porque recordo ainda outras palavras tuas com que me recebeste à chegada do Egipto, quando visitei a mais amada das rainhas num último adeus, “Eu tinha despachado as recordações. Queria que a minha bagagem fosse cada vez mais leve. Nenhum objecto, nenhuma fotografia, nenhum livro. Nenhum nome. E nenhum tecto por cima da cabeça… Queria despojar-me de toda a carga: tinha diante de mim um caminho assim tão longo? – E sem destino!(1) Senti a alma despedaçada como se atravessada pela espada da fé com que bárbaros e indignos violentam as leis de Deus e dos Homens. Assim fiz de todas as recordações, mas sabes, “o passado demora tanto tempo a morrer”! Por instantes voltei às montanhas da tua infância, ao verde das florestas subindo serranias agrestes, senti a violência do mundo no tempo em que me foi dado viver, desacreditei e voltei a acreditar, mas quando deixamos as alturas do Lahr, olhando uma última vez a luz imperecível do Damavand, percorri os tempos que atravessamos, os acontecimentos, as humanidades, os amores infinitos, tudo o que perdemos a cada dia que termina e acreditei ouvir nas tuas ternas palavras, um grito surdo de esperança, “Encheis esta terra com os vossos chocalhos de barro e silenciais os rouxinóis. Mas em horas esquivas, oiço de novo o seu canto que me comove o coração. As lágrimas de comoção não são suficientes! – As fanfarras aí estão!(1)

(1) Annemarie Schwarzenbach em “O Vale Feliz”, teodolito, Lisboa, Outubro de 2017

A manhã acordara cedo, ainda a madrugada não se deitara e a lua aparecia cheia, naqueles dias de gravidez em que não desperta com a luz diurna e prossegue o seu sono pausado sem perturbação pelo dia dentro. Foi nessa manhã que me aguardaste, como nos dias antigos, em que juntos, partíamos, para às escondidas espreitarmos as constelações. Mas nessa manhã, os teus olhos não estavam acesos, apenas um pequeno foco se perdia na distância do tempo e não me deixava navegar, nesse oceano profundo que vive em ti, como os pescadores que adormecem agarrados aos peixes. Nem quando a tua mão se amparou na minha para um equilíbrio seguro de uma travessia que parecia custosa. Porque não acendeste as lanternas, os círios, os feixes de luz, os quasares distantes com que me prendias nas noites sem vento e destruías as tempestades que assolavam a minha aldeia de sonhos vivos com casas de solidão e tristeza? Havia uma beleza granítica e imponente que te abriu um sorriso, longínquo, interior, ausente. Os caminhos prosseguiram e voltamos a perder-nos no espaço amplo do silêncio.

No mundo á minha volta, continuam a acontecer episódios sem nome, os Judeus prosseguem, impunemente, a matança de palestinianos e o Estado espanhol persiste em prender, homens e mulheres, pelas suas ideias e actos políticos, desenterrando todos os esqueletos do Vale dos Caídos.
  



EFEITOS DE REPRODUÇÃO

António Mesquita




"Como no modelo das bonecas russas, a participação acaba por tornar-se uma organização dentro da organização, uma burocracia dentro da burocracia. O resultado deixa-se em geral denunciar sob o nome de burocracia e celebrar sob o de participação. Esta dupla apreciação acaba por ter um efeito imobilizador; cauciona-se por razões de princípio aquilo que se considera nefasto na realidade. O indivíduo particular resigna-se, quanto a si, a estratégias pessoais visando a acomodação ou o aumento da influência própria, ou então à sua defesa ou à sua imunização."

"Politique et complexité" (Niklas Luhmann)

E, noutro passo, diz Luhmann que hoje nos é difícil compreender "até que ponto as esperanças ligadas às reivindicações de participação estavam sobreavaliadas, e até que ponto as ideias sobre a sua implementação e os seus custos podiam ser ingénuas."

O resultado decepcionante deste anseio da geração de sessenta e setenta, cujas origens o sociólogo remonta à Idade Média, quando o indivíduo podia aspirar a fazer parte dum todo, é normalmente interpretado como uma consequência dos obstáculos levantados pelo poder dominante. Esses crentes desiludidos podem, assim, poupar-se a uma análise do problema de fundo, atribuindo o seu fracasso às vicissitudes da luta de classes.

Mas o ponto passa, segundo Luhmann, por saber se é razoável esperar que o indivíduo possa participar (ter, realmente, uma palavra a dizer?) na própria sociedade democrática, quando esta, pela sua complexidade, passou a ter uma estrutura horizontal em que os vários sistemas se reproduzem e auto-regulam com recurso a teorias auto-referentes, relacionando-se os sistemas entre si como um organismo e o seu meio ambiente.

O facto é que o indivíduo só ganha voz, integrado num sistema (partidário, económico, mas também como espécimen do telespectador na medioesfera), nisso perdendo o que o distingue enquanto indivíduo particular.

LUTA IDEOLÓGICA

Manuel Joaquim



Ao ouvir e ler notícias e opiniões, nestes últimos dias, sobre a situação política, recordei-me de um livro, lido há muitos anos, 'O Lobo das Estepes', do escritor alemão Hermann Hesse, prémio nobel da literatura em 1946, publicado em 1927. Caracterizando personagens, pessoas, o autor, defendendo maior autenticidade e sagacidade, em determinada altura do texto, refere que há personagens na vida que se limitam a mastigar palavras e a vomitá-las.

Os recentes acontecimentos internacionais têm sido uma oportunidade para o desabrochar de papagaios da palavra e da escrita, nos jornais, na rádio, nas televisões, martelando sem qualquer pudor, falsidades, distorções e calúnias para justificarem os lugares e dinheiros que recebem.

O pequenino, conhecido por “o robot da SIC”, fala ao domingo à noite, sobre tudo. Sobre o envenenamento do espião na Inglaterra, sabia perfeitamente o que se tinha passado e sobre as causas e objectivos. Nem os EUA tiveram tantas certezas, pois têm-se referido ao “alegado” envenenamento. A Rússia e outros países têm pedido provas que até agora não foram apresentadas. 

Quando acontecem crimes em alguns países da Europa são imediatamente apelidados de actos terroristas e logo são referidos os refugiados e imigrantes, vítimas de perseguições em países onde o nazi-fascismo renasce, domina aparelhos de estado e se organiza internacionalmente com a cobertura amplificada dos meios de comunicação.

Quando acontecem crimes nos EUA, e estão a acontecer cada vez mais, as notícias desaparecem e não merecem grandes comentários. Assim aconteceu com a grande manifestação da juventude americana contra as armas. Denunciar os dirigentes políticos que recebem dinheiro dos seus fabricantes, para a comunicação, não é importante. 

O assassinato da dirigente política brasileira não foi terrorismo. A intoxicação ideológica tentou justificar a morte pelas suas opções políticas. O assassinato, nestes dias, também no Brasil, em pleno hospital, de um dirigente do Movimento dos Sem Terra, não foi terrorismo, nem tampouco notícia. O ataque a tiro da caravana de Lula não teve significado. 

Nada se diz da diligência efectuada por Christine Lagarde, junto da União Europeia, para constituir um fundo, no prazo de seis meses, para responder a possíveis problemas financeiros. Entretanto, o sector financeiro, especialmente a banca, continua a emagrecer aceleradamente em Portugal e na Europa, com despedimentos de milhares de trabalhadores e encerramento de centenas de estabelecimentos.

O Novo Banco, o banco constituído pela parte boa do Banco Espirito Santo, apresenta prejuízos em 2017, na ordem dos 1.400 milhões de euros. O maior banco da Alemanha, o Deustsch Bank decidiu abandonar Portugal, consequência da sua muito difícil situação financeira, sobre a qual não se deve falar.

Fala-se da guerra da Síria, em situação de desespero, tentando encobrir o que na realidade se passa. O terrorismo, aí, já não é feito por terroristas, mas por rebeldes. Palavras piedosas pelas vítimas dos bombardeamentos dos aviões russos. Mas nada sobre os milhares de mercenários pagos mensalmente que fazem a guerra com armas e munições fornecidos pelos EUA e países lacaios para a rapina das riquezas desse país. Existem provas e documentos sobre tudo isto nas Nações Unidas. A situação de desespero é fruto da derrota militar que se avizinha e das suas consequências. É um salto qualitativo na correlação de forças a nível mundial. É o fim do poder unipolar no mundo. 

As ideias que germinaram e germinam na cabeça de alguns, de destruírem, principalmente, a Rússia e a China, não vingarão, sob pena de também serem destruídos. O que está a alimentar as notícias, para além da Síria e das escapadelas de Trump, são as eleições na Rússia e a figura de Putin.  Um manjerico, sem pelo e outras coisas na cabeça, verte, no Público, veneno de lacrau sobre a eleição de Putin, cumprindo, zelosamente, o manual de instruções que lhe deram. 

A luta dos povos e dos trabalhadores em quase todos os países da Europa acentua-se. As eleições locais e nacionais nos vários países não têm correspondido aos interesses das classes dominantes. A militarização aumenta com sucessivas provocações nas fronteiras de diversos países. A luta ideológica acentua-se.

É com apreensão que vejo o que está a acontecer a nível mundial.



AS MÁSCARAS DE EME

Mário Martins


  https://www.google.pt/search?q=mascaras+de+teatro



Eme – personagem de género incerto, que desta vez é masculino – está com uma crise de identidade. Se atravessa a rua é peão, mas se for atropelado será sexagenário, entra no carro e é automobilista, já nos transportes públicos é passageiro, no tempo do emprego duradouro foi profissional, trabalhador e colaborador (por esta ordem), na segurança social é pensionista, na saúde utente, mas no médico é doente, nos serviços de identificação é cidadão, já na câmara é munícipe, nos actos eleitorais é eleitor, às vezes votante, outras vezes abstencionista, nas finanças é contribuinte, na justiça, se não for autor, será réu ou testemunha, numa loja ou serviço é cliente, no desporto praticante ou adepto, nos espectáculos e na velhice é sénior, se for casado é, em princípio, marido, se não for será solteiro, companheiro, divorciado ou, menos vezes, viúvo, no sindicato é sócio, na política, ele é a favor ou contra a geringonça? entra numa igreja e é crente ou turista, em Portugal e na Europa é português, mas na América profunda será, quando muito, espanhol, para outras raças é branco, enfim, para um extraterrestre condescendente não passa de um abstracto habitante do terceiro planeta à volta de uma vulgar estrela de uma galáxia espiral não menos vulgar. No palco social da vida bem gostaria Eme de ser apenas Eme…    

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