StatCounter

View My Stats

01/01/12

OS AVALIADORES DA EUROPA

António Mesquita
O ditador da Alemanha nazi aprecia "O rapto da Europa"


"No passado 10 de Novembro, a S&P enlouqueceu os mercados durante duas horas anunciando por erro a degradação da nota da França. Muitos se interrogaram se a agência não teria lançado essa mensagem deliberadamente para testar as reacções da França. A S&P admite que o erro teve lugar em Paris."

"Le Nouvel Observateur" (1/12/2011)


Dizia Trotsky que a calúnia só pode ser uma força se corresponder a uma necessidade histórica (“Ma Vie”). Não há dúvida que a difamação, deliberada ou por "erro informático", levada a cabo pela agência americana tem força, visto que transformou alguns homens influentes, por um momento, em "baratas tontas".

A "virgindade" da França, no que ao "rating" diz respeito, ficou manchada para muito tempo. No entanto, a Standard & Poor, por outras palavras, já deu a entender que, neste caso, só se antecipou um pouco no tempo e continua de lança-manchas na mão para provar que o tempo lhe veio a dar razão.

O direito penal, provavelmente de todos os países, estabelece uma pena para a difamação, sobretudo quando os danos são avantajados, a menos que o responsável seja inimputável, por exemplo, em razão da idade.

A S&P parece ser também inimputável, apesar de já ter nascido no século XIX. Haveria uma boa razão para isso: é que a eventual punição dum erro, mesmo com consequências catastróficas, poderia criar um mecanismo de auto-censura nos avaliadores do mercado. A sua liberdade deveria, em princípio, ser total, para que os "investidores" possam ter toda a verdade sobre o risco real.  Assim vai o mundo: os incendiários à solta e os bombeiros no pelourinho.

No cerne do problema está a questão de saber se é possível uma avaliação que não crie os factos avaliados e se há algum exemplo no passado longínquo ou recente de total isenção do avaliador. Já é difícil obter resposta para estas questões na avaliação do desempenho nas empresas, com os "mercados", as dificuldades tornam-se tão complexas e "irreais" como as criadas pela política.

"Com efeito, as agências notaram com AAA produtos financeiros que se revelaram em seguida totalmente cancerosos. Ora elas eram pagas ao 'pro rata' do que era vendido pelos bancos, os seus primeiros clientes! Conflito de interesses no estado puro... Fizeram prova da mesma ausência de discernimento no caso da Lehman & Brothers que ainda estava classificada com AAA dois dias antes da sua falência em 15 de Setembro de 2008." (ibidem)

Inimputáveis e reincidentes, jogando com a credulidade (por falta duma bússola impossível, a não ser a defendida por alguns charlatães que usurparam o nome de economistas) de algumas instituições respeitáveis e, à sombra destas, dos que especulam com a vida dos outros.

Com a razão preterida em relação aos "videntes" do mercado, o caminho para as nossas elites é ainda a desregulação. E a Europa, que, segundo o mito, já foi raptada por um touro está à espera que a expulsem do curral.

MUROS RELIGIOSOS (7) O Hinduísmo


Mário Martins

 Brahma, uma das principais divindades do hinduísmo (Wikipédia)


“Aquilo a que se chama o hinduísmo (palavra criada pelos Ingleses por volta de 1830) não corresponde a um domínio separado da vida social, como nos nossos dias acontece com a religião no Ocidente. O hinduísmo é essencialmente e indissoluvelmente um sistema sócio-religioso (…) Colocar a um hindu a questão: ‘Qual é a sua religião?’ equivale portanto a perguntar-lhe: ‘Qual é o seu way of life (maneira de viver)?’ (…).”
                  
Lakshmi Kapani

“Os melhores deuses são hindus”.

                                               O. Herrenschmidt


Se no texto anterior saímos da civilização judaico-cristã para entrarmos no mundo islâmico, com o presente texto iniciamos a abordagem das grandes religiões orientais, não sem grande receio de errar, quanto mais não seja na escolha das citações, tais são as diferenças (talvez impenetráveis para quem não as vive) com as três religiões do Livro (Judaísmo, Cristianismo e Islão). Desde logo o Hinduísmo, segundo a Wikipédia “citado frequentemente como a religião mais antiga”, que marca, indelevelmente, a Mãe Índia.

O Hinduísmo - uma religião sem fundador humano - é uma religião complexa, perante a qual a divisão do divino pela trindade cristã parece simples.

Consoante o olhar que lhe lançarmos, a Índia religiosa poderá surgir como politeísta, como panteísta, ou até como monoteísta.

Politeísta, sem dúvida, dada a abundante diversidade dos cultos prestados a inúmeros deuses e deusas (…) Politeísta, igualmente, é a propensão da religiosidade popular para povoar as árvores, as fontes, as encruzilhadas, as casas, etc., de todas as espécies de “seres” invisíveis, ora protectores ora maléficos, e que convém tornar propícios com invocações e oferendas (…).

A noção de panteísmo parece ambígua, se a referirmos à realidade concreta do hinduísmo. Está sem dúvida presente na generalidade dos fieis, mas mais sob a forma de um sentimento, quase de uma sensação, que de um conceito (…) Não se estabelece uma fronteira rígida entre o visível e o invisível, entre o animado e o inanimado, entre o homem e o animal (ou o vegetal) e entre as próprias consciência humanas, como se obscuramente se apreendesse que um só e mesmo impulso vital anima todas as coisas e as torna participantes do divino (…) Em contrapartida, o hinduísmo filosófico sempre teve uma consciência clara do carácter apenas aparente dessa fragmentação do absoluto através dos seres. Sempre soube que tal difusão universal, se fosse algo de real, destruiria a unidade do divino e comprometeria a sua transcendência (…) O “brahman”, o Uno imparticipável, exclui em absoluto o mundo e as consciências finitas. Aquilo a que se chama panteísmo é aqui verdadeiramente um acosmismo.

O “monoteísmo hindu” reveste-se igualmente de aspectos muito especiais. Com efeito tudo se passa como se o hindu pudesse virar-se sucessivamente, e com toda a sua alma, para diversos deuses, “esquecendo” provisoriamente os outros. Este “monoteísmo alternativo” (…) é absolutamente característico da mentalidade hindu (…) A noção de um Deus ciumento, exclusivo e vingativo é tudo o que há de mais alheio ao hinduísmo (…) Poderíamos notar aqui, recorrendo à terminologia do Islão, que o que distingue um deus hindu é admitir sempre, ainda quando assume o papel de Supremo Senhor, a presença ao seu lado de diversos “associados”. Na perspectiva islâmica, pelo contrário, Alá não pode tolerar tais associados porque a sua simples existência constituiria um insulto à sua transcendência (…).

No plano filosófico-teológico convém (…) estabelecer uma clivagem e uma complementaridade entre, por um lado, o absoluto (o “brahman”) para além de toda a determinação, apenas abordável de modo apofático (negativo) no silencio da meditação, e, por outro, aquilo a que se chama o Senhor Supremo, correntemente representado como criador do universo e preservador da sua ordem imanente (…).

A noção de dharma é essencial no hinduísmo, o qual é “frequentemente chamado de Sanātana Dharma”, que significa em sânscrito, “a eterna lei” (Wikipédia).

O dharma é o conjunto das relações inteligíveis, das “leis” subjacentes ao universo e que o impedem de se desmoronar no caos. A este nível, apresenta-se como uma ordem cósmica que ao mesmo tempo engloba e ultrapassa a realidade humana. Ao nível propriamente humano, consiste no conjunto das instituições, dos modos de vida, dos ritos e dos comportamentos individuais “justos”, no sentido de que são geradores de paz, de estabilidade, de concórdia, de prosperidade, e permitem assim à generalidade das pessoas atingir, em toda a medida do possível, certos bens como o bem-estar material, as satisfações dos sentidos, a saúde, a longa duração da vida, a continuidade das linhagens familiares (…) Ao mesmo tempo, é evidente que os homens não cumprem o seu dharma - apesar de este ser a lei profunda do seu ser - com a mesma espontaneidade infalível dos seres da natureza, por exemplo, os astros, ou os animais. Concretamente, por conseguinte, o dharma conterá sempre uma dimensão de violência coerciva destinada a disciplinar o homem, alinhando o seu comportamento pelo dos seres da natureza. Em termos bergsonianos, o reinado do dharma irá inevitavelmente traduzir-se numa forma de religião “fechada”, em última instância totalitária.

É contra tal encerramento que os renunciantes protestarão constantemente em nome da exigência de liberdade absoluta presente no coração do homem. A personagem do renunciante hindu é em princípio fácil de definir: ele é aquele que, com vista à “salvação”, renuncia aos bens deste mundo, isto é, aos prazeres, às riquezas, ao poder, á fama, etc. (…) A sociedade de castas é um mundo em que cada um está no seu lugar, que explica tudo e tudo justifica, intelectual e moralmente, a começar pelas desigualdades sociais (…) Virando-se para o homem adaptado a essa sociedade de castas, o renunciante considera que ele vive uma existência repetitiva, vivendo por viver sem procurar fazer alguma coisa da sua vida (…) Por isso é que tende logo a atirar-se para os extremos, em busca de uma liberdade metafísica absoluta, que pouco liga a um “livre-arbítro” moral, e ainda menos a uma liberdade política à ocidental (…) O valor fundamental dos renunciantes, o que lhes serve de “moral” no sentido de que rege globalmente as suas relações com o mundo e com os outros, chama-se não-violência (…).

O hinduísmo não é uma “religião do Livro”, baseia-se em vários corpus de textos, que todos se consideram emanados, de uma maneira ou de outra, do absoluto divino que se comunica livremente ao homem.

(…) Deve conceder-se um lugar especial à Bhagavad-Gitâ, ou “Canto dos Bem-Aventurados” (…) (que) constitui na prática um dos textos-chave do hinduísmo (…) Transcendendo as distinções de casta, propõe a todo o hindu, desde o rei ao varredor das ruas, a possibilidade de se tornar um “asceta no mundo”, de participar (…) na obra divina e de merecer em troca a descida da graça (…) A Gitâ é o Evangelho dos hindus.

Os mais altos valores reconhecidos pelo hinduísmo estão efectivamente ligados à atitude ascética e à superação da condição humana que ela pretende alcançar (…).

Concluamos pela não pertinência na matéria das nossas próprias categorias teológicas. A Índia não é propriamente panteísta, nem monoteísta, nem politeísta (…). Nestas condições, quem quer que procure pôr alguma ordem no pulular anárquico das representações e práticas hinduístas tem de adoptar um ponto de vista estrutural, isto é, que tentar ver como é que aqueles diversos aspectos são complementares uns dos outros e formam um sistema (…).


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Michel Hulin e Lakshmi Kapani, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.



NATAL


Mário Faria

(kapplehead.blogspot.com)


25 de Dezembro. Tínhamos dormido rapidinho e nem por isso o almoço começou antes das duas da tarde. Primeiro a sopa para as crianças e só depois o tradicional farrapo velho (obrigatório),  seguido de um prato de carne. Este ano foi leitão. Depois as sobremesas tradicionais. Comeu-se bem e bebeu-se melhor. Já passavam muitos minutos das 16 horas quando acabámos.  Os mais pequenitos foram dormir  e os da  terceira idade sentaram-se nos sofás, encostaram-se e dormitaram ruidosamente.

Os jovens juntaram-se a jogar as cartas (eleven), os mais velhos a sueca  e as mulheres, como do costume, tratavam das coisas, das crianças e de nós. Estava um dia bonito que anunciava um pôr de sol a não perder. Saí e fui até à Foz. Estava um frio agradável e muita gente a passear,  sob os  raios de sol que aproveitavam  os últimos momentos do dia para nos brindar com um elegante crepúsculo, protegido por um tecido muito fino de névoa  que  delicadamente protegia  o sol sem o asfixiar, resultando o alaranjado do ocaso menos agressivo,  mais tímido e frio  a cada minuto que passava. Os numerosos surfistas e os imensos transeuntes  humanizavam o espectáculo, ali à nossa frente. Foi bonito de ver e bom para desfrutar.

Estava a pensar que deveria escrever sobre esta sensação inédita que tinha vivido no dia de Natal, quando me tocaram com uma palmada forte no ombro e ouvi o vozeirão do Zé (da Frutaria) a reclamar : “então, julguei que tinhas morrido, que se passa contigo?”.  Lá lhe dei uma série de desculpas de catálogo e ainda estava a enumerar as brutas tarefas que me cabem e que me roubam todo o tempo, quando o Zé, interrompendo-me se pôs a desfiar todo o fel que trazia no corpo e na alma. A troika, o governo, os deputados, a oposição, os sindicatos, os políticos e esse bandido do Sócrates deveriam  ser todos presos : um bando de malandros, como repetidamente e de formada exaltada acusava . Nem Passos Coelho, nem o nosso Presidente, Pinto da Costa, que antes venerava se salvaram da sua condenação. Vítor Pereira, esse ia direitinho para o Inferno, sem passagem pelo limbo. 

Aquele tom não era do Zé. Havia qualquer coisa que o homem estava a esconder. Não hesitei em perguntar-lhe: “oh pá, deixa-te de cantigas, a mim não me enganas. O que te magoa, de verdade?”. Ficou calado e meditabundo. Esperei, pacientemente. Farto do silêncio que se instalou e quando me preparava para me despedir, começou a falar: “ Estou a pensar separar-me da Marlene. A paixão acabou, o amor foi logo a seguir, o sexo é ocasional e sem graça e a afectividade usa-se no exercício do negócio, obrigatoriamente à frente dos Clientes. Neste processo de desintegração não há culpados, apenas vítimas. Sem filhos e com a família que me resta na parvónia, com as vendas em queda acelerada, sinto-me triste, infeliz e sozinho, sem saber por onde ir ou para onde vou. Para já, vou para casa porque não tenho coragem para tomar outro caminho”. Deu-me um abraço e pediu-me para aparecer. Afastou-se rapidamente, entrou no carro e seguiu o seu destino.

Andei mais um pouco a matutar no que tinha ouvido. Falei comigo mesmo sobre a complexidade do ser humano, conjecturei sobre o futuro, fiz diagnósticos, promessas,  julguei, sentenciei, castiguei  os  culpados e, finalmente mais aliviado e grato pelo próprio reconhecimento da nobreza dos meus pensamentos e propósitos,  resolvi que o melhor era mesmo voltar a casa, para junto da família. E fi-lo em boa hora : já estavam sobressaltados com a minha demora. A minha mãe foi a primeira a condenar-me pela fuga, sem aviso prévio. Estava desesperada porque tinha um mal estar geral e questionava-me o que havia de tomar. “Achas que posso tomar Ben-u-ron ?”.  Respondi, perguntando : “lanchou alguma coisa?”. “Não!”, respondeu-me secamente. “E tem fraqueza ?”, insisti.  “Por acaso até tenho”, respondeu a minha mãe. “Então o melhor é comer uma rabanada e verá como vai ficar mais composta”. “Dizes, bem. É boa ideia. Venha de lá uma”.  Em cheio, as queixas pararam. 
 
Com os miúdos cansados de tanta brincadeira, nós fartos de tanta  fartura, acomodados na ideia que somos solidários por vocação, ansiosos por fazer este Porto campeão e por recolher ao vale dos lençóis,  juntamo-nos novamente à mesa para comer a  canjinha para aquecer o corpo e alma. Despedimo-nos na convicção que para  o ano será  mais do mesmo. A tradição manter-se-á,  enquanto vivermos. Será ?

O Natal é muito cansativo, mas não esquecerei o sol daquele fim do dia,  nem  o frio suavemente agreste que o rendeu , naquele recanto da cidade cheio de um alegre bulício,  contrastante com o clima geral deste Portugal exaurido e com muita gente á beira do desespero.


O NEGRO E MR. HARDING


Proposta de Manuel Joaquim
RECORDANDO O GRANDE ESCRITOR
JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS

Warren Harding 


Warren Gamaliel Harding presidiu (mas estritamente falando não governou) de 1920 a 1923. Suave e bem-falante, temente a Deus, conservador, inculto, isolacionista como era próprio do tempo, subiu todos os degraus da carreira política, desde o jornalzinho de Marion (Ohio) até à Casa Branca. Liberta do capital europeu, a América entrava resolutamente no caminho da expansão e da prosperidade indefinida, ao som da fanfarra de John Felipe de Souza (com Z), em contracanto da literatura expatriada e pessimista de Dos Passos, Hemingway e Scott Fitzgerald. America beautiful, America for ever!  Até quando? 1921 foi um ano de severa crise. Outras já tinha havido. Mister Harding,  impotente, viu afundar-se em escândalos a camarilha que o fizera eleger pelo Grand Old Party de Lincoln, o Republicano. Peita, concussão, venda de empregos e contratos….Alguns dos seus mais próximos colaboradores foram malhar com os ossos na cadeia. Havia justiça! – que se soubesse.

O Presidente, alarmado, lançou-se a correr o país, acompanhado da esposa e de nutrida comitiva. No Alasca, um misterioso telegrama em cifra, cujo conteúdo nunca foi revelado, acabrunhou-o subitamente. Exausto e doente, foi morrer em S. Francisco a 2 de Agosto de 1923. Falou-se de conspiração e de envenenamento; descobriram-lhe o adultério e uma filha ilegítima, imagine-se o horror! Alguma coisa parecia ter apodrecido no reino do Puritanismo. Os homens preferiram calar-se. A sua biografia só viria à luz uns quarenta anos depois.

E os Negros, esses esquecidos: que pediam, suplicavam esperavam eles? Em nome da Constituição: «Todos os homens nascem livres e iguais.» Uns mais, outros menos… Não consta que Mr. Harding haja feito nada. Que podia ele fazer? O Sul (democrático) lá estava, ameaçador. E depois, os Negros, se lhes damos a mão… Para os emancipar, a livre e generosa América lançara-se na Guerra Civil: cinco anos de luta (1860-65), 250 000 mortos, devastações incalculáveis, o Sul em cinzas reduzido a colónia do Norte. Ao «Algodão-Rei» ia seguir-se o reinado de rapina dos carpet-baggers, agentes do capitalismo bancário-industrial do Norte. (Assim chamados por via das maletas de tapeçaria que carregavam consigo.) Um grupo de negros eminentes avistou-se com o Presidente Lincoln na Casa Branca: «Que ia ser o futuro deles?» o Emancipador foi de uma franqueza exemplar: «Isto é uma nação de homens brancos. Aqui nunca vocês conhecerão a igualdade. Voltem para África, ou procurem na América Latina um país onde se possam estabelecer.» Para onde haviam eles de ir? Esta era a sua terra. Aqui tinham nascido, filhos de escravos trazidos pela vontade e força dos seus senhores. Ficaram. O movimento «Back to Africa», que tivera  certa popularidade, iria morrendo aos poucos. A Libéria, criada por compra, fora uma conquista de negros americanos sobre os africanos: para benefício da Firestone Rubber Company sobretudo. ( Paul Robeson faria, nos anos trinta, um filme medíocre a condenar o Retorno à África.)
Após a Guerra Civil, durante a Reconstrução (1866-77), muitos negros do Sul tinham sido eleitos para o Congresso da União. Mas, de 1901 a 1928, só um negro ali figurou: minoria de um, calado. O Ku Klux Klan (1866), respaldado na lei severa e nos costumes, fizera do «Lynch» uma arma de intimidação. Manter o negro no seu lugar era a palavra de ordem. Fosse como fosse. O direito do voto e a cidadania, garantidos pelos Amendments constitucionais de 65 e 68, tornaram-se letra-morta. Os Tribunais, incluindo o Supremo, lavaram daí as suas mãos. A época de Harding foi pois de eclipse para o afro-americano.

Calcula-se que, só na primeira década deste século, tenha havido uns 900 linchamentos, quase todos no Sul. Em 1935-36 ainda ouvi falar de meia dúzia; e assisti às ruidosas campanhas a favor dos «Scottsboro Boys», de Angelo Herndon, e de outros mártires e perseguidos. O Negro subira ao nível da consciência nacional. Foi por então que publiquei (n’O Diabo) aqueles versinhos: « No cabaré dança um negro / com o sorriso todo branco / entalado nos dentes como um  fruto imaginário …»

Embora nunca cessassem de manifestar o seu descontentamento e resistir – à parte algumas insurreições, famosas mas circunscritas: G. Prosser, Nat Turner, Douglass e outros (John Brown era branco e veio mais tarde) – os escravos foram quase sempre de uma cordura impressionante: nada dos quilombos e palmares do Brasil! Refugiavam-se atrás da nostalgia, dos espirituais, da religião cristã, da reserva e dignidade impenetráveis (quanto menos atritos com o branco, melhor!) e da caricatura que deles deram depois o vaudeville e o cinema: superstição, medo, infantilismo, desleixo…indolência! Os seus pregadores, cantores e desportistas, porém, foram sempre extraordinários. (Era de Mathilda, do Tom, de Mr. James e de outros negros meus conhecidos que eu desejaria falar aqui!)

Já antes da Abolição os negros, livres ou escravos, fugiam para o Norte; havia o famoso railroading clandestino. Dos 800 000 que eram em 1790 – 1/5 da população, 90% deles no Sul, onde predominava a cultura do algodão – tinham subido para dez milhões em 1920, 85% deles ainda no Sul, ainda adstritos à gleba. Hoje são mais de 21 milhões, 11% da população, menos de 60% deles no Sul. A procriação dos escravos era favorecida pelos seus senhores , porque rendosa. Primeiro o algodão e a miséria, depois a liberdade, multiplicaram-nos, sempre com a colaboração do branco no lençol-de-cima. Mais de 70% dos negros norte-americanos são de facto mestiços. Muitos têm sangue índio também.

Com a primeira Guerra Mundial, a religião e a indústria fomentaram a migração de uns dois milhões de negros para o Norte. A concorrência desta mão-de-obra ilimitada – o negro era usado sobretudo como «amarelo» ou rompe-greves a menor salário – suscitou a hostilidade dos operários industriais, na maioria europeus de origem. Reciprocamente, para o negro, eles eram «estrangeiros»…Uma parte do grande patronato e as Labor Unions preferiam o imigrante – sóbrio, laborioso, ambicioso e obediente ou conformista – ao negro handicapado pela condição histórica, a ignorância e a rebeldia latente. As restrições à emigração, com o desemprego inerente à crise, e a falta de habitação, agravaram o conflito. O gueto negro entretanto alastrou, lepra dos grandes centros, com todas as misérias inerentes: crime, drogas, jogatina, vagabundagem, prostituição, doenças venéreas, filiação ilegítima, alta mortalidade…Como ainda hoje! O espectro cresceu, e com ele o problema de consciência. Segundo o romancista negro James Baldwin, a nação americana sofre  de um sentimento de culpa que a rói por dentro, como a lagarta ao fruto reluzente. Paralelamente, o Negro padece de um trágico sentimento de inferioridade (e de fealdade) que se traduz em que a maioria dos crimes de negros são praticados contra os seus próprios irmãos de raça. E a Negra, vítima do domínio sexual do branco, torna-se por sua vez dobrada vítima do Negro, da sua exploração, ciúme e despeito…

Com a segunda Guerra Mundial tudo isso piorou, e vieram as batalhas de rua. Dezenas de negros foram chacinados no progrome de Detroit, a capital do Automóvel. Os negros ameaçaram marchar sobre Washington, como os desempregados do tempo de Hoover, a reclamar reparação. Roosevelt lançou a sua Ordem Executiva contra a discriminação nas indústrias de guerra: um gesto apenas, e foi o começo de uma era nova. O Comité Sindical de Organização Industrial (CIO), mais progressista que a A.F. of L.  (Federação Operária Americana), abriu-lhes as portas. Ao tempo, o Partido Comunista advogava um Estado à parte para os Negros, dentro da União, ideia impopular, recentemente avivada por certas organizações. A bola de neve (negra) cresceu, rolou. Os Negros já não pediam, como no tempo de Harding: manifestavam-se, reclamavam, batiam-se. Eisenhower em 1955, John F. Kennedy em 1961, reforçaram a igualdade industrial do Negro. O Supremo Tribunal de Justiça decretou enfim a integração escolar. Escolas superiores, como a Universidade da Cidade de Nova Iorque, dão-lhes entrada gratuita. (Tem hoje cerca de 200 000 estudantes.) Há a igualdade do salário nas profissões organizadas. O gueto transbordou, invade os próprios subúrbios, dantes refúgio das classes desafogadas., Há ainda resistências, evasivas, violências até, por parte de alguns sectores, mas já nada pode deter a onda. No próprio Sul, baluarte do Apartheid, generaliza-se a integração escolar, negros são eleitos. Os porto-riquenhos das cidades, dantes um grupo rival, unem-se-lhes nas reivindicações. (Estes recém-chegados são ainda, em alguns segmentos do Trabalho, mais bem pagos do que os negros nativos.) A polícia, duma severidade proverbial mesmo na repressão dos estudantes brancos, modera-se, procura evitar ensejos de violência. Há forças múltiplas trabalhando para a solução pacífica e progressiva do problema. O negro vai perdendo o seu sentimento de inferioridade. Vemos hoje nessas ruas as loiras nórdicas passeando os frutos da sua livre união com homens de cor… A solução parece estar, com efeito, na convivência, no amor, na intimidade – como o julgou ver no Brasil o Prof. Wagley, sociólogo. O voto negro já pesa nas grandes e até nas pequenas urbes. Os partidários da violência vão perdendo terreno…embora haja quem espere ver sair a Revolução do seio das penitenciárias.

Decerto, é imenso ainda o caminho a percorrer: o desemprego continua a ser, entre os negros, o dobro do que se regista entre os brancos; muito maior a sua mortalidade infantil, e menor a sua perspectiva de sobrevivência individual. A carência de instrução e de costumes de trabalho circunscreve-os ainda às tarefas inferiores. Mas haverá solução total, repentina, para quaisquer problemas? O progresso tem sido tal, nestes cinquenta anos, que bem se pode falar de «revolução». E que nação, etnicamente individualizada e consciente, aceitaria sem temos essa presença perturbadora ? Porque se trata não só de uma questão económica e social, ou mesmo racial, mas de uma confrontação de identidades, de culturas, de ways of life , que põe em perigo o equilíbrio moral da nação. Só quem o não tem em sua própria casa poderá falar de fáceis soluções. A homogeneidade de uma nação de dimensões continentais e multirraciais nunca se fez em dois tempos. Quando deixaremos nós de pensar por slogans, abstracções, ideias feitas, narizes de cera, para encarar a realidade e pensar objectivamente, pela nossa própria cabeça?

Pobre, esquecido Mr. Harding! E que idade, que sonhos, que ilusões tínhamos nós há cinquenta anos? Quantos desenganos desde então não sofremos!


[ Escrito a pedido do Diário de Lisboa para a comemoração do seu 50º aniversário. Este jornal publicara no seu primeiro número, em 1921, um telegrama de Washington dando a notícia do encontro de líderes negros com o Presidente Harding. Este foi o meu comentário ]
________________________________
Este texto  consta no livro “O espelho poliédrico” , das Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, 2ª edição , Editorial Estampa. 1ª edição: Estúdios Cor, 1973.
José Rodrigues Miguéis nasceu em Lisboa em 1901 e viveu muitos anos nos Estados Unidos até à sua morte em 27 de Outubro de 1980.


O PASSADO NA MEMÓRIA DO TEMPO


Alcino Silva

Aljubarrota (Azulejos do Parque Eduardo VII)

Aqui estou, neste recanto do presente lembrando essa grande praça do passado, onde contigo assisti à passagem da história e à construção de quimeras. Estou velho, nessa idade, em que tudo parece perder-se e, no entanto, não deixas que o tempo passe por ti e a formosura de então aparece agora tão viva, apenas com uma diferença, estás mais bela ainda. Dizias-me há um certo tempo que os olhos cansados não me deixavam perceber que estavas mais velha e não compreendias como podia dizer que estavas mais bonita. Mais velha, estás, sem dúvida, pois os anos na sua contagem também te levam a ti, mas são apenas os anos, a beleza essa, a cada dia fica mais enriquecida, mais os teus traços derrubam o meu olhar e se me afasto para resistir ao teu feitiço, à tua chegada, quando os olhos sorriem, extensões imensas da muralha que ergui, caem derrubadas como as cartas de um jogo e de novo fico preso a esse encanto extraordinário dessa perfeição que vive no teu rosto. Talvez a revolução já fosse para mim apenas memória, mas quando surges, Mariana, tudo se incendeia de novo.
Os anos passam e nada se apaga desta memória que vai olhando o tempo desfiar por este Tejo cujas margens me acolhem. Nas noites mais longas sinto aquela brisa que subia do rio e parecia empurrar as gaivotas para terra, não as deixando navegar por sobre as naus que paradas frente à Ribeira pareciam aguardar o que todos pressentiam. Tudo pareceu acontecer num instante, naquela soberba manhã do dia 6 de Dezembro, quando o galope de Álvaro Pais alvoroçou a gente miúda, enchendo de gritos a maralha que tresmalhada se dirigia calçada acima para os Paços da rainha, clamando pelo Mestre. Foi nesse tropel da arraia que te encontrei nessa vez primeira. Estavas imobilizada a um canto, entre a parede de uma casa desses homens honrados que agora nos lançavam encosta além ao assalto desse mundo real, desejosos de mudança e de afirmação dos seus cabedais. Um sorriso nascia em ti, um pouco entre o receio e a inquietude do que vias, e ao descobrir-te tive a certeza que a revolta levaria longe o anseio da cidade. Na profundidade dos teus olhos, a luz intensa de uma estrela, brilhava como se fosse um sol aberto nessas Primaveras que todos os anos chegam enchendo de vida o casario. Dias volvidos, nessa agitação que a rebeldia gerou, e quando a noite parecia desenhar sombras no corpo e no pensamento dos homens, apareceste de novo, em S. Domingos, quando os homens honrados dessa burguesia vilã pareciam contentar-se com a morte do valido da aleivosa e homens dos mesteres lhes saíram ao caminho. Estavas ao meu lado, no instante em que destemido, o tanoeiro Afonso Anes Penedo agarra a espada com a força das suas mãos e exige que se aprofunde o que se começou. Até as chamas das tochas ardentes estremeceram perante a sua coragem e a sua determinação. Senti a tua mão, apertar-me o braço como se o meu apoio te pudesse proteger. Essa mão que escorregando se aconchegou entre os meus dedos, enquanto os nossos olhares viajavam, procurando-se. A cidade viveu dias de uma intensidade que nem as chamas do tempo futuro haveriam de apagar e contigo, percorri essas ruas enxameadas de esperança e de arrojo, a tudo resistindo, aos combates, à fome, ao cerco desses castelhanos de Castela que por terra e mar nos assediaram. Foi nessas noites de sítio que atravessamos o rio em direcção à outra margem onde homens bravios recusavam a rendição e se alçavam nessa resistência da qual se viria a forjar a pátria. Os remos baixavam lentos e silenciosos sobre as águas e só o incêndio, que saindo do teu olhar me devorava a alma, iluminava aquela fantástica noite sobre o Tejo. Como poderia eu olvidar esses dias e noites nos quais as madrugadas pareciam veleiros rumando para o desconhecido com essa fé que embala os homens na descoberta do novo a que chamamos futuro e com essa sedenta necessidade de justiça que a humanidade procura nos caminhos pedregosos da história. 

Os anos passaram e desses e doutros cansaços pareço descansar agora, sentado nestas margens, contando as naus que saem em busca do Atlântico. Da beleza dos ideais da revolução que a nobreza fez sucumbir entre as trevas da sua preguiçosa luxúria, resta apenas a lembrança, uma recordação ténue mas viva desse galope da vontade do povo miúdo gravando páginas de ouro no livro da história. Aljubarrota foi a nossa glória maior, o triunfo que nos alçou por muitos e longos anos. De quando em vez, apareces e quando surges tudo se movimenta na minha memória, como se ontem ainda fosse hoje e eu estivesse a correr pelas ruas rebeldes da cidade revoltada. Por momentos, regresso à Rua Nova, à Rua dos Mercadores, escuto ainda os gritos alegres e fortes do povo e por sobre as cabeças da multidão, como uma bandeira flutuando ao vento, o teu olhar enriquecendo a beleza da rebelião. Para todo o sempre.   




View My Stats