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01/10/13

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AS AMIGAS

Cristina Guerreiro

Engoliu. Não havia alimento para descer, nem água, tão pouco cuspo que tudo lhe havia secado no instante e até as lágrimas que sentia a arder não vinham, só o queimado a incendiar desde a boca do estomago até aos lábios apertados que não tinham perguntas a fazer perante o que acabara de ouvir. Depois de se ouvir as palavras que ouvira não há nada a dizer, não há nada a dizer, escutava na sua cabeça e rasgavam-lhe gritos mudos por dentro na interrogação, queria fugir e sentia-se pálida nos pés, nas mãos, no rosto e tudo lhe incendiava porém.

Engoliu as palavras que ouviu. Caíram como pedras para dentro de um estomago oco, ofendendo a alma.

Baixou os olhos, sentiu vergonha de si e não sabia porquê.

Às vezes achava-a triste e intrigava-se com tão profunda melancolia, uma quase queda para dentro de si que a fazia desaparecer, engolida como se fosse um chão de si mesma a abrir-se em fenda que depois se quisesse cerrar como sepultura. Tinha receio de a abordar nesse estado por lhe parecer tão delicada. De outras, os olhos pareciam chamá-la a pedir ajuda e ela não estava certa se era pedido de socorro ou apenas o mote para iniciarem conversa de circunstância.

Acabaram a falar por intermédio de terceiros e ao final de um par de horas, a conversa deslizava como se uma necessidade de ambas as tivesse posto naquela posição por uma força maior.

Não se tornaram inseparáveis, mas amiúde a procura aproximava o diálogo intimista e revelador e um dia ela perguntou-lhe porque era ela uma mulher tão triste.

Não houve resposta.

As lágrimas rebolavam pela face, pelo pescoço, pela camisola, era um rio silencioso imparável.

A outra não sabia o que fazer. Muda, deu-lhe a mão e assim se mantiveram até o choro acalmar e por fim se esgotar num silêncio seco, com uma despedida às pressas sem olhar.

E por cada vez que o assunto era aflorado vinham as lágrimas, a mão já não chegava para o consolo porque já o sabia e escondia-se num cruzar de braços, e as palavras começaram a fazer perguntas sobre tanta água, tanta amargura, tanta morte no olhar.

Era o amor e o desamor.

Amava um homem e estava presa a um outro do qual não se podia libertar sob pena deste se condenar a um destino que lhe cobraria a vida inteira ensombrando-lhe o coração, impedindo-lhe no fundo, de amar.

E a verdade, não conta?

Não, não conta, o que contava era o que se via e o que se via não era o que ela mostrava de verdade, porque lágrimas e dor e amor, só com ela se permitia libertar, a mais ninguém, nem ao amor, preferia fingir que tudo estava bem a pensar num gesto desesperado, e a quem estava presa, mentia igualmente, fazia de conta que estava como sempre tinha sido.

Até quando? Uma vida dupla até quando? Um dia iria olhar para o espelho e haveria de querer escolher ou então não saber qual preferir ou pior nenhuma aceitar, liberdade, liberdade no coração e na alma, mais lágrimas até haverem mares que afoguem homens e nenhum se salve para salvar-te...

As quatro estações rodaram e as lágrimas não fizeram nem um ribeiro, vieram sorrisos, gargalhadas, palmas. Estava bonita, um semblante brilhante e iluminado, faladora, parecia ter rompido de uma pele velha apertada para surgir viçosa.

A amiga chegou-se perto e sorriu-lhe, ela correspondeu. Perguntou-lhe como estava, como ía a sua vida, que a via bem e feliz e ela respondeu que não a queria metida nas suas coisas, não eram do seu rosário, que não se envolvesse em assuntos que não lhe diziam respeito.

Ela engoliu.

Sentiu vergonha de si, mas era da amiga também.

 

O DIA EM QUE O POETA MORREU

Alcino Silva

Manuel António Pina

A noite chegava com a sua tristeza, a sua escuridão, os seus negros temores, os seus silêncios e vazios, transformando a solidão numa vastidão oceânica, chegava e sorrateira roubava o espaço à melancolia do dia, cobria-a como quem estende um manto e deixa apenas momentos ocos, o olhar sem nada. O seu pensamento caminhava derrotado como em tantos outros crepúsculos outonais, no delírio de lágrimas silenciosas que tombavam escondidas na alma, enquanto procurava a luz desse sorriso que não olvidada e lhe servia de protecção perante estes vapores cinzentos que a noite trazia e se transformavam em espaços dessa escuridão que esconde as estrelas e o afogavam nos temores negros das trevas. Entre as gentes, perdido no trânsito, fugia clandestino, camuflava na estrutura do automóvel os seus medos nocturnos, como uma criança refugiada no canto do quarto, desabrigada e aguardando que alguém acenda uma luz que a proteja. Num primeiro instante não compreendeu, mas quase logo saiu do torpor que o levava e os seus ouvidos débeis escutavam a notícia que tornava a noite ainda mais escura, dessa negrura impenetrável que chega a submergir a tristeza e atrai para si todos os pavores encobertos. A notícia repetia-se e não deixava dúvidas, o poeta não resistira à chegada da noite e deslizava vencido pela mágoa do corpo que lhe fugia deixando a alma no desamparo do sonho. Na recordação da viagem pela vida, ouvia-se a voz grave da notícia lendo as belas palavras escritasdo poeta e a sua atenção maravilhada agarrou-se à poesia com mãos de náufrago e procurou no sorriso que iluminava os seus olhos o amparo que necessitava, como todos os dias, mas ainda mais agora que o poeta partira. Mas na ânsia de chegar a terra, a memória traiu-o e na mensagem que enviou não eram as palavras do poeta que seguiam, mas as suas, «Entra com o teu olhar no meu quarto, e não deixes que as sombras da noite me levem». No escuro surgiu um farol e os versos que o poeta deixava como bandeira, sopravam agora os ventos do seu destino e no porto de abrigo que procurava, a sua mensagem prosseguia, «Entra no meu quarto e fica, com a clara e limpa luminosidade do teu olhar, corre as cortinas que encerram a minha solidão, e estremecem as paredes de silêncio, entra no meu quarto e deixa-me o teu olhar». A escuridão do crepúsculo que arrastava a vida do poeta transformou o infinito universo numa tempestade boreal, agigantou o mar que o arrastava e o sorriso que o protegia pareceu então perder-se como se a luz última definitivamente se apagasse. Susteve o alento que lhe restava na poesia do poeta que se extinguia e com ela enfrentou o adamastor que lhe cercava o caminho, lembrando-se por fim das verdadeiras palavras do trovador para vencer a adversidade e o medo e recitou-as e nova mensagem escreveu, como um apelo, um cântico, como alguém que estende os braços abandonados antes de cair no abismo do desconhecido, “Protege-me com ele, com o teu olhar, dos demónios da noite e das aflições do dia, fala em voz alta, não deixes que adormeça, afasta de mim o pecado da infelicidade”.(1)

(1) – Manuel António Pina, Completas

 

UMA EXPERIÊNCIA ELEITORAL

Manuel Joaquim

http://www.tvi24.iol.pt

Em quase todos os processos eleitorais que se realizaram após o 25 de Abril desempenhei funções nas Mesas de Voto. Nas penúltimas eleições participei na Assembleia de Apuramento Geral, que reúne no segundo dia seguinte ao da realização da eleição, para apuramento definitivo dos resultado eleitorais de todo o distrito doPorto, que tem o trabalho de analisar os resultados, as votações, os critérios e os documentos de muitas mesas de voto.

Foram pontos privilegiados para observar a personalidade, o comportamento, a formação, o estado de saúde físico e mental de muitas pessoas.

As mesas de voto, nos principais centros urbanos, são constituídas por pessoas indicadas pelos diversos partidos para o necessário pluralismo e fiscalização. O funcionamento desse critério fora dos centros urbanos é muito difícil e em muitos casos é impossível.

A partir do momento em que o desempenho dessas tarefas deixou de ser uma obrigação cívica e passou a ser uma verdadeira prestação de serviços, com o pagamento de honorários, (mantendo-se a dispensa ao trabalho no dia seguinte), muitas pessoas procuram ser nomeadas para as mesas de voto. Por isso, aparecem cada vez mais semreuniram as condições adequadas para o desempenho da tarefa. Portadoras de problemas de visão e de audição são muitas, com problemas de assistência a familiares começam a aparecer e com dificuldades na aritmética é notório.

A arrogância e o autoritarismo, raiando a má educação, são evidentes em muitas mesas de voto, tanto para componentes das mesmas como para cidadãos eleitores.

Durante o período da votação contacta-se com muita gente. Gente conhecida e gente desconhecida. É a população a passar à nossa frente.

Algumas mesas de voto revelam uma população envelhecida, com sinais evidentes de debilidades físicas e psicológicas.

Muitos corpos revelam-se dominados por doenças, canseiras, sofrimentos, limitaçõesintelectuais evidentes. Pessoas que eu conheço, que ainda há poucos anos revelavam primores físicos e intelectuais, não conseguem dobrar os votos ou simplesmente não conseguem votar. Casais, que nas câmaras de voto, tentam dar indicações verbais outrocar boletins de voto não é incomum.

Todos os cidadãos, sem excepção, exercem plenamente os seus direitos votando convictamente nas opções que consideram ser as melhores. Naturalmente que votam em função dos seus interesses que podem ser os mais diversos. É aqui que funcionam as promessas eleitorais que são apresentadas em função do eleitorado a que se destinam.

As promessas eleitorais vão desde a pintura da casa, a reparação do telhado, o subsídio para a família, uma casa municipal, até a notícias na comunicação social sobre negociações para obtenção de fundos para a recuperação de centros históricos com subsídios a fundo perdido ou com juros muito baixos para os senhorios poderem recuperar os seus imóveis, ou a intervenções de políticos importantes de que a crise está a passar e que já estamos a chegar à praia da bonança.

Antigamente existiam profissionais do conto do vigário que assentavam praça nas mediações da estação de comboios de S. Bento, que esperavam pelas pessoas que chegavam à cidade para lhes vender vigésimos premiados, bilhetes do prego, joias de latão ou até eléctricos. As ciganas ganhavam o dia a ler a sina. Outros levavam uma vida rica a deitar as cartas, a fazer defumadouros e bruxarias.

Hoje o conto de vigário é mais sofisticado. Os jornais, rádios e televisões estão a facturar lindamente com anúncios de grandes médiuns videntes, de astrólogos e outros que se dedicam a dar consultas sob marcação para resolver os problemas de amor ou familiares, de heranças, de saúde, de droga, de má sorte ou inveja e todos os outros que nos apoquentem. E se as receitas dos anúncios são boas é porque os anunciantes facturam à grande. Os clientes não faltam e são cada vez mais. Vale a pena registar a quantidade cada vez maior de igrejas que abrem pelas ruas das cidades.

Perante tudo isto, há muita gente que tem um conhecimento muito difuso da realidade e a sua capacidade crítica está condicionada. Mas a guerra ou a paz, ou a construção de uma sociedade melhor ou pior, depende muito das opções de cada uma destas pessoas.

 

 

 

LINCHAMENTO

António Mesquita
I

 

"Quando vejo um linchamento, defendo a pessoa que está a ser linchada. E quando vejo demasiadas pessoas de acordo em relação a um lugar-comum, começo a pensar que é suspeito."

(Daniel Innerarity no jornal 'Público' de 15/9/13)

A segurança é, talvez, a primeira necessidade. Sem ela, só os lobos prosperam. Mas como nada impede que no meio da insegurança geral, os lobos se organizem contra qualquer espécie de sociedade, as próprias feras têm de observar algum tipo de justiça entre elas, se a organização for para durar. É o que dizem todos os pactos de sangue.

É por isso que a pior das ditaduras é portadora, apesar de tudo, de alguma segurança, quando comparada com uma sociedade caótica, como seria aquela, provavelmente, que resultaria da intervenção americana na Síria. Já se provou que os 'justiceiros' não sabem como trazer de volta a segurança depois de afastado o tirano. Porque, só por si, a existência do ditador não é o sinal de que todos os males decorrem da ditadura. Ele é mais a imagem de um cancro social que só se exprime bem através da chaga putrefacta que ele representa.

Noutra passagem, Innerarity faz notar que a política, sempre necessária, não é uma escolha entre o bem e o mal, mas entre dois males. Se os políticos tiverem discernimento para decidirem pelo menor dos dois, cumprem com o seu dever.

Ninguém, por mais sábio, ou mais competente, pode deduzir o bem numa tomada de partido que só oferece consequências duvidosas e inconvenientes para qualquer das posições. Esse é o caldo para a nossa cultura política, em que todos parecem ter razão porque nenhuma proposta é 'pura'. Os mais doutrinários têm, por isso, a arrogância de quem possui uma estratégia para o futuro e um guia para a acção que só querem dizer alguma coisa para eles mesmos.

Quanto ao consenso, que é tão necessário para a paz como para a guerra, é difícil não estar de acordo com o filósofo basco. Os 'lugares-comuns' têm um prazo de validade. Na vida são apenas substituídos por outros lugares-comuns. Na época da comunicação instantânea, podem tornar-se perigosos. O pensamento por 'adesão' é mais afectivo do que racional. Não seria difícil, no termo duma bem preparada propaganda, obter um consenso 'electrónico' que equivaleria a um linchamento.

 

 

RENTRÉE

Mário Martins

"O que o Estado pagou a mais às PPP (900 milhões de euros em 2011) só é possível porque a sede da política - Assembleia da República - está transformada num centro de negócios."

Paulo Morais

Vice-presidente da Associação de Integridade e Transparência

Diário de Notícias, 2Maio2013

“Dos 230 deputados à Assembleia da República, 117 estão em regime de part-time, acumulando as funções parlamentares com outras actividades profissionais no sector privado (…). Em diversos casos, prestam serviços remunerados a empresas que operam em sectores de actividade fiscalizados por comissões parlamentares que os mesmos deputados integram. Noutros casos exercem cargos de administração ou fornecem serviços de consultoria a empresas que beneficiam, directa ou indirectamente, de iniciativas legislativas, subsídios públicos ou contratos adjudicados por entidades públicas (…).

Sabia que as subvenções vitalícias dos políticos foram criadas numa altura em que Portugal estava sob assistência financeira do FMI? Que foram alvo de um veto presidencial? Que duplicam de valor quando o beneficiário alcança os 60 anos de idade? Que, apesar de terem sido revogadas há 8 anos, o número de beneficiários continua a aumentar? Que a identidade dos beneficiários passou a ser secreta? Ou que há políticos que a requereram com idade inferior a 50 anos?

Contra-capa de “Os Privilegiados”, de Gustavo Sampaio

Editora “a esfera dos livros”, Julho2013

Com os discursos inaugurais do costume está aí mais uma rentrée política. Como a palavra francesa também quer dizer “reabertura dos teatros no começo do ano dramático”, vamos assistir e, ao jeito de cada um, participar em mais uma temporada da comédia em que se tornou a democracia portuguesa, há vários anos no cartaz. E no entanto era preciso qualquer coisa de fresco, qualquer coisa com o sentido com que Nanni Moretti, no seu filme Aprile, grita para o ecrã da televisão (onde decorria um debate com Berlusconi) D’Alema, diz uma coisa de esquerda, diz uma coisa mesmo que não seja de esquerda, de civilidade, diz qualquer coisa, reage!. A sociedade portuguesa devia reagir à imoralidade e ao descrédito que assolam a “casa da democracia” e o “arco da governação”. Há cerca de um ano, segundo uma sondagem da Universidade Católica, 87% dos portugueses afirmavam-se desiludidos com a democracia. Isto quer dizer, como uma leitura literal sugere, que estão desiludidos com os princípios da democracia, ou quer dizer, como uma leitura em busca do sentido exige, que estão desiludidos com o modo como os princípios da democracia são ou não aplicados? Ou quererá dizer antes, numa leitura mais complexa, que não acreditam que o regime democrático possa funcionar melhor? No tempo do socialismo soviético, a propaganda do regime sustentava que o socialismo só podia ser o que existia, o “socialismo real”, como lhe chamou. Esta propaganda, aplicada à democracia, só poderia conduzir à ditadura. Mas a existência de democracias mais próximas do ideal democrático, como é o caso das nórdicas, mostra que, afinal, a alternativa à democracia real” é a luta perseverante pela aplicação dos princípios democráticos.

 

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