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01/01/16

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CARTA A SVETLANA ALEKSIEVITCH


Svetlana Aleksievitch



Estimada Svetlana Aleksievitch, poderia ser esta carta para a felicitar pelo Prémio Nobel que lhe foi atribuído, mas não é o caso, pois a mesma começou a ser redigida ainda em meados de Julho e foi-se estendendo ao longo destes meses passados. Há momentos na história que quando lembrados, comentados, analisados, deixam-nos uma dor magoada na alma que nos impede a escrita e sentimos necessidade de pausas, de descanso, como se precisássemos de novo fôlego para as palavras se ajustarem nas frases que procuramos. Vinte e cinco anos após os acontecimentos, a poeira começa lentamente a pousar, mas com grande parte dos intervenientes vivos, o passado pode ainda ser remexido e alterado, adequar-se à melhor defesa de cada um daqueles que intervêm. No entanto, é possível já hoje voltarmo-nos devagar e contemplar o que ocorreu. Certamente, ainda assistimos a muito desmoronar, ainda podemos olhar os grandes edifícios sociais esmagados pela implosão de um Estado mas, ao mesmo tempo e desde já, é possível iniciar esse processo de compreensão, de um crime social e político de uma magnitude nunca vista, cometido perante o nosso olhar impotente. Os personagens que aparecem na sua obra de recolha de testemunhos vivos, reflectem ainda, de ambos os lados, esse fragor que fez oscilar a caminhada humana pela história. São relatos pungentes, por vezes dramáticos, por vezes mostrando actos hediondos que nos levam a vacilar sobre a verdade da evolução humana. Muitos rios de palavras escritas e ditas vão ainda correr pelas estepes e pela taiga siberiana, mas o sonho humano vai continuar a preencher os espaços vermelhos de longas bandeiras. Por agora soçobra perante a sordidez de vampiros insaciáveis soltos nas trevas da noite, onde em certas ocasiões o pensamento humano se deixa mergulhar para vasculhar nos terrenos lamaçentos da ganância e da putrefacção aventureira da avareza. Havia sido uma caminhada de sete décadas, entre muitos tombos e muito erguer, três guerras, vinte, trinta, quarenta, já ninguém sabe, milhões de mortos, o espaço europeu quase totalmente arrasado, e em quatro décadas uma nação plural, passa do tempo do arado ao tempo do universo, evolui nos domínios de ponta da técnica e da ciência, resolve problemas que até então pareciam insolúveis para a humanidade, dá voz aos que nunca a tiveram e quando poderia dar esse salto transformador para outro patamar, deixa-se afundar no delírio de um poderio militar que agora sucumbe à ferrugem nas águas geladas do Árctico. Hoje, é fácil olharmos para o passado e vermos os aspectos negativos, os erros, os defeitos. Não sei se todos aqueles seres humanos que assumiram a direcção de projecto tão grandioso, sabiam que a sua margem de erro era zero. Talvez não soubessem que construíam uma experiência única e planetária, em que todas as decisões deviam conter um grau de incerteza mínimo. Talvez tenham interpretado demasiado à letra a figura da ditadura do proletariado, não a vendo como um conceito colectivo, e não de grupo, e muito menos individual. Talvez não tenham sabido olhar com atenção para a ditadura monopolista da burguesia dita democracia ocidental, na qual inúmeros intelectuais passeiam a sua pequena vaidade chamada de liberdade de pensamento. Tivessem tido tempo para ler o historiador Tucídides e saberiam que sobre  Atenas, no período em que Péricles governou ao longo trinta anos, dizia que, «De nome era uma democracia, mas na realidade era o governo do seu primeiro cidadão». Talvez, dizemos todos nós hoje sobre os factos passados, com essa facilidade com que os nossos olhos pousam nas páginas dos livros de história. Compete hoje aos que ainda desejam sonhar, olhar com cuidado analítico e crítico e saber caminhar sem pisar as cinzas pretéritas. A liberdade individual e de pensamento, tornou-se uma questão ainda mais candente, num tempo presente em que somos livres numa totalidade que quase não conseguimos medir, mas se agitarmos o pensamento crítico compreendemos que a nossa tão ampla liberdade, só existe porque não serve para nada, não influencia decisões, não altera factos, não liberta os seres humanos do poder de uma minoria arrogante, violenta e moralmente miserável. Na continuidade do sonho, teremos de saber incluir cada um no todo, em que o colectivo não resulte preso da pequena fracção e o eu de cada um não desapareça na onda gigante do todo. Minha estimada, Svetlana Aleksievitch, a sua obra não merece ser lida apenas pelos relatos dolorosos das personagens que escutou e cuja voz registou, é sobretudo, ou deve ser para aqueles que procuram a compreensão do tempo pretérito, e acreditam que a humanidade, apesar dos seus espaços de maldade e desorientação, evolui num sentido positivo, um grito para a reflexão, para o questionar de verdades adquiridas, para a procura do caminho substantivo que permita caminhar de novo para nos fazer sair deste pântano. Que o nosso olhar contemplativo e interrogador não se perca demasiado no erro e saiba olhar para o espelho onde se reflectem os valores do sonho que visa erguer o ser humano para a balança da justiça, da dignidade, de uma vida igual nos direitos e deveres dos cidadãos do mundo e que cada um possa semear uma pedra nesse imenso jardim que chegou a florir, mas que a idade do gelo da peçonha material do dinheiro, queimou à nascença. Não há saltos em frente, na transformação social das sociedades humanas, o quadro mental acompanha numa velocidade demasiada lenta as grandes mudanças sociais e políticas, e o acelerar destas, faz nascer um vácuo que quase sempre transforma o grande pulo, num recuo histórico. Saibamos ver no desaparecimento do grande mapa que cobriu a Europa e a Ásia de esperança, não uma morte infinita, mas um renascer mais sólido, consequente e duradouro. Permita-me ainda, Svetlana Aleksievitch, saudá-la pelo Prémio que entretanto lhe atribuíram pela grandeza e nobreza do seu trabalho. Receba por fim, as minhas estimadas saudações.

Afonso Anes Penedo     



CARTAS DE AMOR





Cartagena das Índias, 08/01/1516


Flor de Canela,


Saberás construir no teu pensamento o sentimento que me avassalou a alma ao receber a tua carta. A intensidade da luz que dela irradiou, cobriu o planeta e estendeu-se para além da fronteira universal, impedindo-me de organizar a sinfonia das palavras que tenho para te enviar em louvor da tua existência. Compreende a injustiça deste longo espaço que nos separa, impeditivo do meu olhar viajar à procura do teu.

Não poderias tu atravessar o oceano e desembarcar de uma nau, nesta Cartagena das Índias onde me retêm? Quanto daria para que viajasses nessa aventura de me procurar.

A tua carta chegou-me quando cavalgava em direcção a Calecute, por entre florestas e vinhedos, numa sucessão de cores outonais que me faziam lembrar o teu cabelo caindo sobre o rosto quando nas tardes estivais olhávamos o sol na aventura de dar a volta ao mundo para nos descobrir do outro lado, no outro extremo deste amor que construímos juntos e que das profundezas da Terra trouxe esse magma que me incendiou a alma e engrandeceu esse teu olhar que me imobiliza entre as tuas mãos.

Ao longo dos dias fui gastando as palavras que a tua carta trouxe, de tanto as ler e de as absorver como se te acolhesse entre os meus braços carentes da ternura que vais deixando por onde passas.

Escrevo-te agora. Desenho cada letra como se se viajasse por ti e fosse esboçando cada pormenor teu numa carta geográfica para não me perder quando a solidão oceânica me envolve num anel de tristeza e só a lembrança do teu sorriso, me faz segurar o leme e não me perder nos confins infinitos da melancolia.

Escrevo-te neste dia tão especial, em que a lua se enche de cores e o sol desvairado de alegria, expele os seus ventos numa melodia galaxial. A grandeza do ínfimo e a beleza do avassalador, tudo em ti é harmonia, tudo em ti, é amor.
Nunca desistas de me esperar.

Despeço-me. Fecho a carta e selo-a com um beijo,

do sempre teu


Pero Vaz de Caminha    


CONCERTO PELA PAZ



Manuel Joaquim




Estamos a viver tempos conturbados.

Em Portugal, os ventos de uma nova política ainda não são suficientes para clarificar o sentido dos caminhos que estão a ser traçados. Os pesados tapetes que cobrem os lixos nauseabundos acumulados nos últimos anos estão a ser levantados. E vão sendo identificados aos poucos. BES, Novo Banco, Banif, CGD, BCP; MG, BPI, sociedades financeiras, empresas de seguros. Hospitais que deixam morrer doentes por falta de assistência, escolas paralisadas, crianças a percorrer centenas de quilómetros para terem instrução. E o lixo vai continuar a ser identificado. E, perguntamo-nos, como foi possível?

Alguns responsáveis pela varredura do lixo, gritaram aos quatros ventos que a saída da crise era já ali, ao virar da esquina, e que era limpa, vão abandonando o barco ou preparam-se para a fuga.

Entretanto, os empresários e dirigentes muito responsáveis alarmam-se com o aumento do salário mínimo para 530 euros ilíquido, mas não abrem o bico para comentarem os milhões enterrados na banca na sequência das gigantescas fraudes praticadas por personalidades dos negócios, da política e do futebol.

Internacionalmente, os problemas são cada vez mais complicados.

Para a comunicação social, a Ucrânia deixou de ser notícia. No entanto, a guerra continua. Os fascistas passaram a dar instrução militar a adolescentes para entrarem na guerra. Caminha-se para uma situação de guerra civil que rapidamente levará para um conflito internacional de escala desconhecida.

O Médio Oriente ocupa a ordem do dia da comunicação social. A intervenção da Nato na Líbia, para matar Kadafi e sacar petróleo, levou à destruição do país e à sua ocupação pelos terroristas que estão a ser derrotados no Iraque e na Síria. Esperemos que a Nato não venha a decidir enviar tropas para a Líbia para tentar salvar alguma coisa ainda nas mãos dos seus países. 

O conflito entre a Rússia e a Turquia, resultante não só do abate do avião russo sobre o território sírio, mas também pela grave responsabilidade que a Turquia tem no abastecimento dos terroristas mercenários e na comercialização dos saques do petróleo e de tudo o resto e na ocupação de territórios da Síria e do Iraque, sem consentimento dos respectivos governos, pode levar a um conflito desastroso, que, obviamente, arrastará muitos outros países.

Os dramas dos refugiados que diariamente as televisões apresentam serão muito pequenos se comparados com a dimensão que poderão tomar se os conflitos referidos se transformarem em guerras generalizadas. Estarão muito perto das nossas casas e das nossas famílias.

É neste contexto que o Núcleo do Porto do Conselho Português para a Paz e Cooperação vai realizar, com o apoio da Câmara Municipal do Porto, no próximo dia 9 de Janeiro, pelas 17 horas, no Teatro Municipal Rivoli, um Concerto pela Paz, com uma diversidade de artistas de grande qualidade e prestígio. No átrio do Teatro vai estar uma exposição de trabalhos de agrupamentos escolares do Porto sobre o tema da PAZ. 

A EXPULSÃO DOS DEMÓNIOS

António Mesquita


www.washingtonindependentreviewofbooks.com



"A expulsão dos demónios do corpo dessas infelizes pessoas a quem lhes tinha sido permitido atormentar, era considerada como um sinal, embora comum, do triunfo da religião, e é uma repetida alegação dos antigos apologistas como a prova mais convincente da verdade da Cristindade (...) e ouvia-se o demónio vencido confessar que era um dos deuses de fábula da antiguidade que tinha usurpado a adoração da humanidade."

"The History of the Decline and Fall of the Roman Empire"
(Edward Gibbon)

Os primeiros tempos do Cristianismo foram verdadeiramente tempos de superstição e de trevas. Um novo deus tentava impor-se na consciência e nos costumes das populações 'migrantes' da religião 'usurpadora'. O combate era íntimo e de todos os instantes.

Só com a perspectiva histórica compreendemos que há aqui qualquer coisa que merece o nome de 'progresso', o que supõe que tempos mais antigos deveriam ainda ser mais autenticamente tenebrosos, mesmo no momento mais vivo e luminoso da nova religião.

A história linear, contudo, é uma fábula 'materialista'. Ou melhor, a própria história é o conto que melhor nos serve. Não valemos mais do que os antigos, nem compreendemos o nosso mundo melhor do que eles compreenderam o deles.

Os exemplos de que o tempo dos vivos e dos mortos (por séculos e séculos que tenham passado) apresenta uma estranha simultaneidade, em vez de uma linearidade irreversível, são impressionantes. Nem é preciso lembrar a forma como um profeta árabe do século sexto da nossa era se tornou um contemporâneo da Internet. A 'expulsão dos demónios' do corpo foi realmente tentada por Freud e os seus discípulos. De resto, os mitos da Antiguidade nunca deixaram de enquadrar o nosso 'livre pensamento'.

"Os mortos governam os vivos", dizia Auguste Comte.



O NATAL E O REGUILA

Mário Faria
(Mosteiro de S. Cristovão de Lafões)


Contrariado, acompanhei a minha mulher na festa de Natal que o Inatel organizou e decorreu nas Termas de S. Pedro do Sul. 120 pessoas alinharam e participaram de forma muito animada. Viajamos em três autocarros de excelente porte. A idade média dos convivas, era alta, muito alta. Parámos em Vouzela para visitar a Vila Natal: as iluminações da rua das meias, das prendas, das flores e a ponte da rede ferroviária, muito elegante e belíssima quando as luzes a encheram de cor, valeram a pena ver. Visitamos o museu local com uma exposição de fotografia, uma série de salas dedicadas ao “fabrico do linho” e outras com muita “pedra” do período românico. Um dos mais jovens veteranos do grupo, estudioso da presença dos romanos na península ibérica, desatou a fazer perguntas à guia e, já de saída, questionou-a sobre a origem e presença do cavalo de Lafões e se lhe poderia deixar alguma pista ou literatura sobre o tema. A guia que estava um pouco saturada das sucessivas perguntas do jovem-veterano, respondeu-lhe: “de Lafões só conheço a vitela assada”. Não ficou melindrado com a resposta e não desistiu de pesquisar, apesar deste primeiro insucesso. Tive a oportunidade de assistir que, em todas as paragens, caminhos, lojas e igrejas, o moço-veterano insistiu sempre na mesma pergunta: “…. e o Cavalo de Lafões”. Infelizmente, não conseguiu uma resposta que o apoucasse. A noite, já nas termas de S. Pedro do Sul, foi de intensa alegria. A animação foi deslumbrante: umas pequenas a cantar motivos natalícios que ninguém ouviu tal o barulho ambiente e, depois, foi dança, muita dança. As viúvas eram as mais animadas, as divorciadas faziam por isso e as casadas serviam-se da coisa para aquecer o motor de arranque dos companheiros. Voltamos ao hotel e dormimos sob um frio polar: o ar condicionado tinha avariado. No dia seguinte, visitamos as termas, seguindo a história e identificando alguns dos notáveis que lá curaram as maleitas, sendo que D. Afonso Henriques lá morou durante uns meses, depois de ferido gravemente numa perna, na batalha de S. Mamede. Apesar do frio, a água brotava quentinha, quentinha. Gostei. Ainda passamos por Viseu que vi numa pressa e com um sobressalto:  local com uma exposição de fotografia, uma série de salas dedicadas ao “fabrico do linho” e outras com muita “pedra” do período românico. No dia seguinte, visitamos as termas, conhecemos a sua história e à tarde visitámos Viseu. Só animei quando voltei ao autocarro para regressar ao Porto. Nem a chuva me incomodou. Para o ano, prometo não voltar “Olá, está bom? Lembra-se de mim? Sou o Reguila, o Paulo Reguila, mais conhecido pelo Pé de Salsa e estive consigo na tropa. Está muito bem, os anos parecem não ter passado por si?” Depois do abraço sentido, agradeci o cumprimento, disse as coisas da praxe e fui recordando o artista: jovial, bom aspecto, bem disposto, pera franzina, divertido e especialista em bolas fora. Sem me deixar falar, foi-me dizendo que tinha ido trabalhar para a Suíça onde se mantivera durante muitos anos, tendo regressado após a reforma. Disse-me, ainda, que tinha algumas representações de produtos topo de gama e apresentou-me um estojo que abriu para exibir dois relógios de excelente perfil que me pôs na mão, esclarecendo: “Isto é do melhor. Peço-lhe confidencialidade, pois não estou autorizado vender a preços que não os cotados pela marca. Para si, leva esta pechincha por 50€”. Fiquei estupefacto e sem palavras. Valeu o buzinão do autocarro para chamar os retardatários. Apressadamente, entreguei-lhe o estojo e despedi-me, justificando: “estão à minha espera, para regressar ao Porto. Foi um gosto encontra-lo e se viajar para os meus lados, apareça. Bom Natal e Bom Ano Novo. Até à próxima”. Cumprimentei-o sem lhe dar tempo para reagir e fugi para o autocarro em passo muito ligeiro. Safei-me bem. Cheguei ao Porto são e salvo e não me parece que conste do meu calendário mais festas de Natal, deste tipo. Uma coisa ganhei: o enorme desejo de pesquisar e aprofundar toda a verdade sobre o Cavalo de Lafões. 


UM NOVO “CAVALO DE TRÓIA”?


Mário Martins
http://www.gettyimages.pt/detail/fotografia-de-not%C3%ADcias/greek-raiding-party-secreting-themselves-in-the-fotografia-de-not%C3%ADcias/113441532

1. Mais uma vez na história humana, o que pode aparentar apenas ser uma guerra religiosa entre o Islão e o Cristianismo, encobre o choque entre concepções e práticas políticas opostas de organização das sociedades. Não que as duas grandes religiões monoteístas, com os seus vários ramos, não sejam, naturalmente, concorrenciais, uma vez que disputam o mesmo Deus, reivindicando-O, cada uma delas, para si. Mas o problema não está na competição estritamente religiosa mas na dimensão política dessa competição. O advento do estado laico, quer dizer, do princípio da separação entre Religião e Estado, é um adquirido das sociedades europeias de matriz cristã: “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. 

2. É por isso que a tensão que hoje se vive nas nossas sociedades, está para além do terror que grupos radicais islâmicos procuram espalhar. Por várias razões, (como os processos de descolonização, a emigração, a natalidade, a guerra), tem vindo, incessantemente, a aumentar e tende a agravar-se o peso numérico das pessoas de confissão islâmica nas nossas sociedades, facto que, se de um ponto de vista estritamente religioso nada tem de negativo e se deve respeitar, de um ponto de vista político gera as maiores desconfianças. A questão central que se coloca é a de saber se no dia em que, eventualmente, o número de cidadãos adeptos do Islão fosse maioritário, o estado laico e a liberdade religiosa, a par da liberdade política e da igualdade de género, seriam respeitados e defendidos. Infelizmente, a experiência dos nossos dias (basta citar os casos dos estados islâmicos da Arábia Saudita e do Irão e da crescente islamização do estado turco) indica o contrário.

3. O consenso que une as nossas sociedades europeias contemporâneas, pese a tradição cristã, não é de ordem religiosa mas política. Assenta na laicidade do estado, no princípio da separação de poderes, na liberdade religiosa (cada pessoa segue a sua confissão, no seu íntimo e nos seus templos, ou não segue nenhuma), no princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (independentemente do género, da condição social e das preferências políticas e religiosas), na liberdade política, na delegação temporária do poder político nos representantes eleitos por voto universal. Em suma, já vai longe o tempo em que, nas nossas sociedades, se acreditava ou aceitava que os líderes políticos representam a vontade de Deus.

4. Pesa, assim, uma grande responsabilidade sobre os líderes do Islão. Embora isso seja importante, não basta que condenem os actos terroristas cometidos por grupos fanáticos. É preciso também que, a bem da concórdia e do progresso civilizacional, dêem o passo da separação das esferas religiosa e política. Sem isso, o multiculturalismo desregrado das sociedades europeias arrisca ser uma espécie de versão contemporânea do “cavalo de Tróia”.   


PS: Vejo o preocupante ascenso da extrema-direita francesa como querendo dizer não que os franceses se tenham tornado xenófobos, racistas e intolerantes, mas que sentem o perigo da lassidão, no mínimo ingénua e descuidada, dos partidos tradicionais perante o risco de desagregação das sociedades europeias. 
    
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