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01/01/14

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ALL TOGETHER NOW!

Mário Faria

"La vie d'Adèle";

 

Já não há cinemas na cidade, salvo algumas salas no Dolce Vita, junto ao Dragão.Passei a ponte, atravessei a fronteira, para encontrar o centro comercial, mais próximo. Lá chegado, percorri um labirinto feito de corredores, andares, lojas epróximo do parque de alimentação encontrei um grande armazém com muitas salas de cinema. Dirigi-me à bilheteira; uma menina atendeu-me, com ar sofisticado e futurista, com aquele aparelho que lhe tornava a voz mais grossa, e perguntou: “é sénior?”, ao que respondi: “sou, mas vim dos juniores; quero ver o filme que passa na sala 7”. A pequena olhou para mim como se eu fosse um extraterrestre e disse: “Não me interessa de onde veio, são 3,50 €”. O filme é longo e sem direito a intervalo; saí aflitinho, aflitinho e tive de me apressar para chegar com vida e seco aos sanitários que encontrei com facilidade e que não pude utilizar: estava vedado por motivos de limpeza. Ainda tentei invadir o espaço, mas a empregada, com a vassoura em riste, ameaçou-me: “nem pense, no piso inferior há mais”. Dirigi-me para lá em passo de corrida. Olhavam para mim como se estivesse fugido da polícia. Continuei e encontrei o dito. Fiz o serviço e senti um enorme alívio: a ira que tinha tomado conta de mim, emigrou para parte incerta. Gostei do filme, mau grado a espera pelo desejado intervalo que não chegou. Que saudades do Vale Formoso, Júlio Diniz, Terço e o Estúdio (este último, com uma programação de qualidade superior) a cinco minutos de distância, a pé. Apagavam-se as luzes, fazia-se silêncio e começava a sessão, composta de muitas partes. De vez em quando, no anonimato da escuridão, lá saía uma tirada que provocava o riso ou o chiu de reprovação. Actualmente, são os tim-tim dos telemóveis que invadem todos os espaços, sem a devida vénia ou autorização. Nessa tarde, na cena mais dramática do filme, uma senhora atendeu o seu móvel que a chamava ao som do “All together now, e ouvi-a dizer: “Está? Diga! pode, pode, tirar o bacalhau de molho; volto já”. Foi rápida a conversa e como tinha sabor a Natal ninguém levou a mal.

Gostei do filme: “A vida de Adèle”, sobre a educação sentimental de uma jovem suburbana (Adèle) a partir do momento que se cruza com a pintora e intelectual (Emma) de classes sociais e de níveis culturais diferentes. Como uma lupa sobre aintimidade, o sexo, as lágrimas e a paixão que o casal lésbico vive e as causas que levaram à ruptura, que o realizador do filme explica desta forma: “A ordem social acaba por aparecer, quer seja através dos pais de Adèle e de Emma, quer seja pelos amigos. A ordem social aparece e é responsável pela ruptura entre as duas: aliás a ruptura aparece assim que elas se conhecem, é como se fosse uma fatalidade…”. Não é por acaso que quem corta a relação é Emma (dominante na relação a dois) que não perdoou a infidelidade da Adèle e optou pela segurança da família que formou com uma antiga companheira e o filho desta. As cenas de sexo são intensas e os corpos são tão belos que atenuam aquele relação lésbica que culturalmente custa aceitar a muito boa gente que acha um desperdício e no qual me incluo. Um filme que vale a pena ver.

Para dar jus ao título, All together now desejámos a todos os leitores que folheiam esta revista um excelente 2014.

 

 

CARTA DE NATAL

Alcino Silva

(Wong Hityun)

É uma noite fria, muito fria mesmo, esta que escolhi para te escrever uma carta, para conversar contigo através desta triste carta, como são todas as que se escrevem no Natal, mesmo que o destinatário seja alguém tão amado como esses seres que vivem no interior da luz que contém a energia que permite acender todas as estrelas que brilham na universal noite do infinito.

Desta minha janela, sinto o frio que imobiliza as folhas dos arbustos e endurece o chão gelado e branco, tão alvo de cor como a montanha que se estende do outro lado deste lago tão imenso como o mar e onde se perdem os meus olhos procurando-te. Ouço o vento entre o murmúrio e a rajada forte, soprada a espaços, cortando o ar que respiramos e fazendo estremecer o corpo que em nós vive.

Há pouco estive no exterior. Sentei-me no banco de madeira onde tantas noites nos sentamos escutando o silêncio do céu e vendo cair as estrelas sobre o glaciar. Então, esperava que chegasses com essa ansiedade que fazia imobilizar o relógio do tempo, como se os ponteiros ficassem cansados de trabalhar. Por fim, surgias, ao longe, e no horizonte via desenhar-se a silhueta esbelta do teu corpo enquanto o meu pensamento construía os pormenores que em breve se tornavam realidade junto a mim. Os traços perfeitos dos teus lábios, esboçavam um sorriso, que me imobilizava a voz e fazia desaparecer as palavras que guardara para te dizer, enquanto o teu olhar, fazia nascer um rio de águas cristalinas como essas que a montanha traz.

Sentados, escutando o silêncio que trazias contigo, percebia as tuas mãos, com os seus dedos finos e elegantes, escondidas em grossas luvas, rodeando-me o braço, procurando abrigo, enlaçando-se como um nó que não deseja ser desatado. Então falava, contava histórias do mar e da lua, e tu escutavas, ou antes, escutava-me o teu silêncio, porque foi sempre um grande silêncio a responder às minhas palavras. Mas escutavas, sei que escutavas, porque sempre me ouviste, enquanto me desdobrava em inventar frases e parágrafos, como se soubesse que, deixando de falar, deixavas de estar.

Uma noite, atravessamos o mar, lembras-te? O intenso luar incentivou-nos e, sem saber como, os meus braços remaram e remaram. Só escutávamos o meigo sussurro dos remos a abraçar a água, como se pretendêssemos não acordar a noite. Rodeamos o farol e já no caminho, a tua mão procurou a minha, como amparo e guia. E assim fomos, descendo a encosta para observarmos aqueles pequenos animais de duas patas e peito branco, bamboleando o corpo ao longo da praia. As ondas arrastavam-se preguiçosas e curtas sobre a areia grossa, num ruído sereno e cadenciado como se dormitassem em sossego.

Mas esta noite não vamos atravessar este mar, porque não vens, e o nosso banco está também ele só, apesar de o meu olhar estar sempre a ver-te quando se volta para o caminho que te trazia. Há pouco, no livro onde escrevo as horas do meu tempo, registei estas que vivo aqui, hoje, esta noite, em que te aguardo e não chegas: «Esta é a noite diversa de todas as outras. O mesmo mar e o mesmo céu com a sua imensidão de brilhantes pontos luminosos e distantes, o mesmo rumor dos remos sobre a água, o mesmo destino e a mesma intenção, mas algo falta e o que falta é tudo o que havia, e faltando tudo, tudo o que parece na mesma, não existe, e por isso, nesta noite, eu que pareço o mesmo, não sou eu, mas antes o que deixou de ser. Desembarco e caminho, os passos guiados no trilho de sempre, mas o silêncio é novo, banhado por esta noite solitária onde moram os esquecimentos que nascem do que deixou de estar. Onde estão as aves marinhas de coroa amarela que me recebiam quando cheguei e o novo era o que não sabia, o que não conhecia, o que não vivera? Estão ali nas suas cores escondidas nas sombras e olham com um sentimento de curiosidade como se observassem um náufrago que não sabe a que litoralarribou. A luz, a luz do farol apagou-se nesta noite de relâmpagos tristes que deambulam caindo do universo sem que alcancem o terreno chão, e os prados queimados pelo frio, já não são o cobertor que se estendia para albergar o meu corpo. Eu sou eu, na minha solidão

Sim, a solidão não é estarmos sós, mas antes e apenas quando não chegas, apesar de a memória te guardar nos rios do tempo. Os meus passos ainda seguem o caminho de outrora e os gestos repetem os movimentos passados, como se estivesses presente, mas só o pensamento e as palavras impulsionam vida à imagem que reflecte a tua presença no espaço temporal em que chegavas e acendias a luz que faz arder as estrelas, e juntos aprendemos a amar ao som da água que descia das montanhas no degelo da Primavera.

Esta é uma noite fria, não porque sopra o vento do glaciar, não porque a terra gelou e o mar solidificou ou porque a lareira não acendeu o vermelho das chamas da madeira que se transforma, mas antes, porque não vais chegar com, a alegria da tua presença, o sorriso amável da ternura, o olhar puro que me protegia.

A noite está fria e “a solidão desola-me”1.

“E às vezes, o silêncio estremece

Como se fosse a hora de passar alguém

Que só hoje não vem”2


1 – Fernando Pessoa

2 – Sophia de Mello Breyner Andresen

 

CHINA: UM TOQUE DE PECADO

António Mesquita

"China, um toque de pecado"

Não podemos, enquanto ocidentais, ver o magnífico filme de Jiang Zhang-Ke, "China, um toque de pecado", simplesmente como quatro histórias de violência, a sugerir, evidentemente, um mal-estar social mas que não fosse mais do que a violência de um certo cinema, como por exemplo o dos irmãos Cohen, desde há muito 'compreendido' no contexto da sociedade americana e do seu cinema.

Dahai, o mineiro que assassina o patrão da mina que enriqueceu com a venda da propriedade do Estado e o ludíbrio dos seus antigos companheiros a quem prometera a partilha dos lucros, não é um 'desperado' saído de um qualquer 'western'. A sua revolta e o desespero na justiça oficial firmam-se no que é a linguagem do regime, a ideologia do Estado da Classe Operária. Esta primeira história é, de facto, a mais política pois confronta a natureza do poder e a sua alegada superioridade em termos de justiça.

Já as histórias seguintes, de uma violência banalizada e de exposição dos círculos de corrupção, têm todas a ver com o poder do dinheiro. Seja o que rouba para se safar na selva urbana, ou a recepcionista do estabelecimento de sauna que responde com golpes de punhal à prepotência do cliente endinheirado. Na outra história, a vítima dirige a violência contra si mesma, depois de errar de emprego em emprego, e da mulher que ama lhe demonstrar o que significa ter de se prostituir.

Percebemos que esta sequência narrativa pretende representar uma visão da China moderna, desde que os seus líderes se julgaram suficientemente fortes para meter dentro de portas o tigre do capitalismo.

Sem pôr em causa o regime, nem beliscar nenhuma figura da burocracia, o cinema de Jiang Zhang-Ke dá-nos a ver a grande mutação em curso que é, ao mesmo tempo, anti-tradicional e individualizante. É o que significa o anti-herói que protagoniza cada história.

Nos últimos minutos do filme, uma dessas figuras solitárias aproxima-se dum teatro de rua, em que um dos actores, dirigindo-se aos espectadores, pergunta: "Tendes consciência do vosso pecado?"

Ela matou o violador de carteira recheada (como em 'Thelma e Louise', o filme de Ridley Scott). Mas a pergunta pode ter um alcance mais vasto. A passividade tem permitido tudo. Estes crimes dizem que a violência é a outra face dessa ausência da política.

Registe-se que o filme não foi censurado na China, ao que parece. Terão os censores interpretado mal? Não era a primeira vez nos anais censórios. A luta oficial contra a corrupção dentro do partido faz parte da vacina contra a verdadeira solução: uma solução democrática.

 

 

A EXPOSIÇÃO SOBRE ÁLVARO CUNHAL

Manuel Joaquim

No passado dia 15 terminou uma exposição que esteve montada nas instalações da Alfândega do Porto evocando o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal.

Tenho visitado muitos museus e exposições em Portugal e em vários países. Mas esta exposição foi, seguramente, uma das melhores, senão a melhor, que visitei. Fui um dos milhares de afortunados que tiveram a oportunidade de a visitar. Muitas pessoas oriundas de várias localidades, designadamente de Trás-os-Montes, deslocaram-se propositadamente à cidade do Porto, através de excursões organizadas para o efeito. Visitas organizadas por diversas escolas foram muitas. Personalidades da cidade, como o Presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira, e o Presidente do Futebol Clube do Porto, Pinto da Costa fizeram questão de a visitar.

Álvaro Cunhal foi uma pessoa que dedicou a maior parte da sua vida à militância política em defesa de uma sociedade mais fraterna, mais justa, mais humana. Nas bermas desse caminho está um extraordinário trabalho intelectual e artístico, que a exposição muito bem documentou.

Um dos painéis da exposição reproduzia do livro “O Partido com Paredes de Vidro”, com a seguinte introdução:

“O Contributo de Álvaro Cunhal para a definição do ideal por que lutam os comunistas portugueses é-nos dado, de forma aliciante:

O nosso ideal, dos comunistas portugueses, é a libertação dos trabalhadores

portugueses e do povo português de todas as formas de exploração e opressão.

É a liberdade de pensar, de escrever, de afirmar, de criar.

É o direito à verdade.

É colocar os principais meios de produção, não ao serviço do enriquecimento

de alguns poucos para a miséria de muitos mas ao serviço do nosso povo e da nossa pátria.

É erradicar a fome, a miséria e o desemprego.

É garantir a todos o bem-estar material e o acesso à instrução e à cultura.

É a expansão da ciência, da técnica e da arte.

É assegurar à mulher a efectiva igualdade de direitos e de condição social.

É assegurar à juventude o ensino, a cultura, o trabalho, o desporto, a saúde e a alegria.

É criar uma vida feliz para as crianças e anos tranquilos para os idosos.

É afirmar a independência nacional na defesa intransigente da integridade

territorial, da soberania, da segurança e da paz e no direito do povo português a decidir do seu destino.

É a construção em Portugal de uma sociedade socialista correspondendo

às particularidades nacionais e aos interesses, às necessidades, às aspirações

e à vontade do povo português – uma sociedade de liberdade e de abundância,

em que o Estado e a política estejam inteiramente ao serviço do bem e da felicidade do ser humano.

Tal sempre foi e continua a ser o horizonte na longa luta do nosso Partido.”


Álvaro Cunhal

In-O Partido com Paredes de Vidro”


Foram realizadas muitas iniciativas - exposições, debates, lançamento de livros, sessões de cinema - quer de âmbito local e nacional, quer de âmbito internacional, designadamente na Suíça, Alemanha, Bélgica, Brasil e em muitos outros Países.

Nas vésperas do Natal foi lançado um livro publicado pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto em homenagem a Álvaro Cunhal: ”Cunhal /Cem anos /100 palavras, que ocorreu nas suas instalações. A apresentação foi efectuada por Rui Osório, padre, homem de letras e jornalista do Jornal de Notícias. Teve muitas pessoas presentes, algumas com textos incluídos no livro.

O livro tem uma capa muito bonita de autoria de Álvaro Siza Vieira e é composto por 99 textos de várias personalidades, mais uma carta de Álvaro Cunhal.

Álvaro Cunhal é uma personalidade ímpar na história de Portugal e na história mundial.

Numa altura em que o anticomunismo está na rua, desde o mais primário ao travestido de intelectual, o texto do livro que tem o título “Imoral”, de António Freitas de Sousa, dirigindo-se a Álvaro Cunhal, sem invocar o seu nome, termina assim:

“….acreditaste num homem impossível mesmo sabendo que era impossível e mesmo assim lhe dedicaste todos os dias da tua vida como se fosse possível esse homem impossível; que desenhavas como um pintor e escrevias como um escritor mas preferiste anular esse lado luminoso da tua mão para ajudares a abrir caminho a todos os pintores e a todos os escritores; que morreste como nasceste, necessário e branco; de ti, dizem alguns que és imoral. Perdoa-lhes, sabem lá eles o que dizem.”

 

O OPTIMISTA RACIONAL *

Mário Martins

 

“Que princípio é esse segundo o qual, quando não vemos nada senão melhoramento atrás de nós, se espera que não vejamos nada além de deterioração à nossa frente?”

Thomas Babington Macaulay

Review of Southey’s Colloquies on Society

O livro de Matt Ridley, que dá o título a este texto, faz, com uma tese central e abundantes dados, o contraditório do princípio acima referido, citado na obra. Para o autor, é razoável esperar um contínuo melhoramento no futuro, precisamente por ter havido um contínuo melhoramento no passado.

A tese é a de que a troca de coisas e ideias entre as pessoas torna a cultura cumulativa e a inteligência colectiva. Para o autor, “a troca está para a evolução cultural como a procriação está para a evolução biológica”; “quanto mais os seres humanos se diversificavam como consumidores e se especializavam como produtores, e quanto mais trocavam, melhor ficavam, ficam e ficarão”, pelo que é razoável prever uma contínua expansão da cataláxia (termo cunhado por Hayek para designar a ordem espontânea criada pela troca e pela especialização).

Se não se pode negar a incessante melhoria das condições de vida desde a pré-história humana e o papel central da troca como ferramenta do progresso, o que explicará, então, o pessimismo dominante ou o medo do futuro?

De várias razões possíveis, a menor não será, certamente, a da escala do tempo: a medição do progresso é independente do tempo de cada geração humana; a vida de uma geração pode coincidir com um tempo de estagnação ou mesmo de retrocesso, ou então, como acontece hoje em Portugal, experimentar um tempo de grandes dificuldades, depois de três ou quatro décadas de ascensão social.

Outra razão para não sermos optimistas terá a ver com a nossa natureza ou com a natureza do mundo, de que somos parte. Não faltam motivos para termos medo de nós e o mundo nem sempre é um lugar amigável. O próprio autor reconhece que a natureza humana não mudará: “Os mesmos dramas de agressão e vício, de paixão e doutrinação, de encanto e prejuízo continuarão, mas num mundo cada vez mais próspero (devido ao comércio e à inovação)”. Todos, de algum modo, compreendemos ou intuímos que, face aos meios disponíveis, a pobreza e a miséria são um contra-senso; fosse a nossa natureza mais benigna, e decerto que não pesariam na consciência da humanidade.

Resta-nos, enfim, alguns bons sentimentos inter-pessoais e as doutrinas de salvação, nos planos político e religioso, para sublimar o mal do mundo.

*Bertrand Editora, 2013

 

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