StatCounter

View My Stats

01/09/15

98


CARTA DO UNIVERSO AOS HUMANOS


Mário Martins


https://www.google.pt/search?q=multiverso&tbm



Decidi escrever-vos apesar de ainda estar um pouco melindrado com a vossa atitude de começarem a falar de mim em termos relativos, o nosso universo para aqui, os universos paralelos para ali, o multiverso para acolá, tudo isto sem provas científicas, quero dizer sem teorias comprovadas pela experiência, mas apenas fruto de especulações baseadas em modelos matemáticos, eu bem avisei o departamento de informática que o acesso à matemática acabaria por prejudicar a minha reputação, mas sabem como são os informáticos, seja lá o que for ou é 0 ou é 1, eu que ainda há poucos anos era escrito com U maiúsculo, querendo com isso significar-se que eu era tudo o que existe ou possa existir, conhecido ou não, paralelo ou perpendicular, material, anti-material ou imaterial, em quatro ou numa infinidade de dimensões, era, enfim, um Senhor Absoluto, para não dizer simplesmente O Senhor e assim correr o risco de ferir susceptibilidades religiosas, agora sou apenas um universo local, uma entre um numero infinito de “bolhas”, desculpando-me o termo pois podem pensar que estou a fazer paródia com a outra “bolha”, a imobiliária, que tanto vos apoquenta, mas os vossos físicos teóricos é que o usam para dar uma imagem da possibilidade de existência múltipla de universos. Adiante. O que eu queria realmente dizer-vos é que compreendo a vossa incompreensão. De facto não é fácil conceber que, segundo o estádio actual da ciência, eu tenha nascido do nada há cerca de 14.000 milhões de anos, que a vida no vosso planeta só tenha aparecido mais de 10.000 milhões de anos depois, e que vós, os humanos, apenas tenham evoluído dos macacos há uns meros 2 milhões de anos. Quer isto dizer que praticamente durante toda a minha existência não tive observadores inteligentes no vosso planeta. Se tive, tenho ou terei noutros mundos, é coisa que não vou dizer a seres que se ufanam de possuírem livre arbítrio. Não vos maço mais por hoje, já bastam as vossas atribulações quotidianas, mas seguramente que voltarei a escrever-vos, agora que encontrei o vosso endereço electrónico. Assim falou o Universo. 




CARTA SEM DESTINO


http://orig04.deviantart.net/d638/f/2012/051/c/8


O teu silêncio caminha pelas planícies cansadas da minha solidão e eu que te julgava adormecida nas paredes escondidas do tempo, sinto-te de novo rebentar como uma flor primaveril face aos primeiros raios de sol aquecido. Brotas, abres as folhas e enquanto olho espantado para o seu interior sinto esse chamamento atraindo-me com o peso esmagador de um rio carregado de pranto e o amor estala os muros desta montanha gelada em que me escondo e a minha boca ávida de água, sedenta de todos os líquidos da terra cobre de beijos longos e intensos a geografia do teu corpo jovem, imune ao deslizar dos séculos, sedutor, chamativo, elevando a voz com um apelo que quebra todas as minhas resistências e faz-me cair num remoinho profundo, sem fim, como se já não conseguisse voltar para encher de ar os pulmões cheios de tanta beleza e fico nessa ganância luxuosa de não te largar como se nada mais existisse e eu caminhasse em voo por cima dos passos passados e os teus braços me prendessem para que juntos sejamos apenas o tronco de uma árvore que cresce. Alguém me acorda deste sonho pesado, um barco sem piloto rompe as águas tempestuosas do lago, e o vento uiva assustador entre os cumes gelados. O silêncio regressa, leva-me daquela margem desconhecida e o meu corpo desamparado sente apenas as tuas mãos acariciadoras, o calor emanando das linhas que as atravessam como perfeitos fios invisíveis. É noite ou de manhã, já não sei. Agora caminho e das árvores descem abandonadas folhas que terminam um ciclo completo. Caem, estendem-se em cobertura e impedem que encontre a passagem. Sinto a sede a chegar, a secar a garganta e fico sem voz, o meu grito chamando por ti aparece como um eco dentro de mim, mas não se ouve nestas florestas que me rodeiam. Quero adormecer para voltar a encontrar o sonho, quero voltar a viajar, recomeçar de onde me levaram, sentir aquelas mãos, afagar os dedos como pontas de uma bússola que me guia e me conduz, me ensina a voar nas levadas da vida, procurar nos contornos da memória o incêndio que lavra nos meus olhos e me queima, ver aquele rosto nocturno onde jaz pousada uma luz que me ilumina, que abre rios de esperança, afastando névoas, me aperte os braços, se enrole neles e me sugue para o interior de grutas milenares em que tacteando nas paredes ocultas possa descobrir o percurso da água onde me deixarei cair até acordar nos delírios de um lago que és tu, para esconder os meus olhos entre as nuvens dos cabelos que como flores aladas me encobrem o olhar. Não quero perder-te, agarro-me aos ramos que saem de ti como sorrisos abertos e os meus braços encontram os teus num nó que se fecha, já não sou eu nem tu, agora somos e vamos. Os meus olhos estão parados em ti e as mãos deslizam sobre a pele do teu rosto, como que escultores tardios de uma beleza insuperável, mas insisto nessa descoberta como se a uma criança tivessem trazido o universo numa concha, os lábios abrem-se para amar, alguém retira o barco e deixa-nos na água fria e dura, abraçamo-nos ainda mais, fundimo-nos numa só peça, já nenhum de nós se salva sozinho, somos o conjunto único de uma quimera que vive para sempre. Eternidade? Sim, eterno é cada minuto teu só para mim.


Afonso Anes Penedo

ESCREVER PARA QUÊ?

Manuel Joaquim

http://www.icndiario.com/wp-content/uploads/2014/06


Escrever sobre quê?

Escrever sobre os milhares e milhares de refugiados, vítimas da guerra e da destruição das suas casas, das suas escolas, dos seus hospitais, dos seus locais de trabalho, sem abastecimento de água, sem alimentos, sem medicamentos, sem nada, e que a comunicação social e os dirigentes políticos tratam por “imigrantes clandestinos”? 

Escrever sobre as crianças e bebés ao colo de suas mães, que choram quando têm fome ou quando estão sujas e que acontece a cada duas ou três horas?

Escrever sobre o estado de espírito daqueles pais que não podem responder às necessidades dos seus filhos? 

Escrever sobre quem destruiu aqueles países e em nome de quê e para quê?

Escrever sobre os países que têm tropas estrangeiras nos seus territórios e de que nacionalidade são essas tropas?

Escrever sobre quem fornece o treino e os armamentos, as tecnologias sofisticadas e as informações militares aos chamados combatentes?

Escrever sobre os apoios que tiveram e que continuam a ter nos seus países de origem e quais são esses países?

Escrever sobre quem lhes compra as matérias-primas que vão sequeando, designadamente petróleo?

Escrever sobre quem lhes compra as obras de arte que vão saqueando?

Escrever sobre a situação da Ucrânia, da instalação nas fronteiras da Rússia de armamento nuclear e altamente sofisticado? 

Escrever sobre notícias que dão Bin Laden vivo?

Escrever sobre medidas legislativas que vão pondo em causa liberdades dos cidadãos a pretexto do terrorismo?

Escrever sobre a China que é acusada de provocar a “segunda-feira negra” nas bolsas mundiais?

Escrever sobre a crise do sistema capitalista e da inevitabilidade da destruição do chamado “capital fictício”?

Escrever sobre o erro de se continuar a considerar a Europa e os EUA o centro do mundo e de tudo girar à sua volta? 

Escrever sobre a actual situação social e política portuguesa, com as leituras muito positivas das estatísticas, das sondagens encomendadas e com os discursos sobre futuros investimentos nas escolas, na agricultura e na recuperação das zonas históricas, e por aí fora?

Escrever sobre sair ou não do Euro, que perspectivas se apresentam?

Escrever sobre o “talvez o maior banqueiro mundial”, português, que veio do estrangeiro a uma reunião partidária, a  que lhe dão o  nome pomposo de “ universidade”, dizer que Portugal tem que crescer,  discurso exactamente igual ao do meu barbeiro de há muito tempo?

Escrever sobre banqueiros, sempre os maiores do mundo, desde o Ricardo Salgado, ao Costa do BPN, fazendo lembrar o Mário Conde de quem já ninguém se lembra?

Escrever sobre o maior gestor de Portugal, Bava, que por achaques mentais ou coisa pior, perdeu a memória na comissão de inquérito parlamentar ao caso BES?

Escrever sobre outros gestores, reconhecidos como de grande gabarito pelos jornais que facturam grandes valores por contratos de publicidade negociados com as respectivas empresas?

Escrever sobre o “eminente jurista” que afirma da existência de uma constituição europeia que ninguém conhece e que naquela reunião partidária chamada de universidade vem dizer que o ex-primeiro ministro que está detido em Évora está ser investigado por acção do PSD?  

Já está quase tudo escrito e reescrito. Até os livros se vão copiando uns por outros, muitas das vezes virando as histórias ao contrário para parecerem originais. 

Mas o processo histórico tem o seu percurso, tem a sua dinâmica, resultante das contradições e das lutas sociais com inevitáveis reflexos nas estruturas organizativas das sociedades. 

Aproximam-se a passos de gigante situações novas que é preciso saber interpretar.


A INFALIBILIDADE DO POVO

António Mesquita


(Jean-Jacques Rousseau)


"O ponto mais avançado de Rousseau era a doutrina de que o povo é infalível."

Lord Acton


Infalível, no sentido em que o papa é infalível. Rousseau disse-o muito antes da Igreja ter adoptado essa doutrina, mas com o exemplo do 'direito divino' do rei debaixo dos olhos. Sabemos que no 'Contrato Social' advoga um efeito de compensação das opiniões erradas pelo grande número, mas não podemos atribuir-lhe a intuição de um 'código universal' baseado na matemática.

Contudo, a infalibilidade do povo quando aproximada da ideia da soberania faz todo o sentido, e foi esse o caminho para o êxito político da filosofia de Jean-Jacques. Como soberano, de facto, o povo tem até o direito de errar, como aconteceu, por exemplo, quando os alemães deram o voto a Hitler.

Tal ideia é, contudo, ingénua. Porque a vontade do povo passa por uma série de mediações que transformam e deformam o sentido dessa vontade. A correspondência entre a 'opinião média', à Rousseau, e o resultado em termos de poder é tão indirecta quanto podia ser. Temos de utilizar o conceito de sistema para tentar perceber o que está em funcionamento aqui e como o voto afirma apenas uma soberania em 'efígie', a que é compatível com o sistema.

A BBC produziu, no ano passado, uma série para a televisão a que deu o nome de 'The Code' que sugere uma ligação dos grandes números à inteligência da natureza. Uma experiência impressionante é a da 'opinião média' de um grupo de 160 pessoas sobre o número de berlindes que contém um boião, apesar dos extremos, corresponder ao número real.

Mas na política haverá alguma coisa de comparável? A política é ainda mais 'caótica' do que a atmosfera. Não podemos esperar que o voto de milhões corresponda a alguma 'realidade'. Só podemos esperar que exprima melhor do que o indivíduo a ideia do interesse próprio desses milhões...


SIR GEORGE (Parte 1: Nevoeiro)

Mário Faria


https://everythingilearned.files.wordpress.com/2010/07/img_1243.jpg


Estava um dia de praia excelente. Até a temperatura da água do mar tinha subido e reclamava mais tempo para nadar e cortar as ondas que rolavam convidativas para o prazer da penetração. Algumas nuvens, ainda longe, não prometia coisa boa. Fugi a tempo: pude apanhar o último sopro de sol e subir a falésia para chegar a “casa” a tempo da hora do almoço, embora tivesse ainda de passar por um pinheiral denso e muito simpático nos dias em que a canícula apertava. Se junto ao mar as nuvens engrossavam a cada minuto, cá em cima juntaram-se com intensidade máxima e rapidamente formaram um denso nevoeiro que me apanhou a meio caminho. Não via a mais de dez metros e a morrinha finíssima que caía ajudava a compor o cenário fantasmagórico que me cercava. Caminhava sozinho pelo trilho e cautelosamente. Até a passarada se calou e fugiu para parte incerta. Ia nestas divagações, quando ouço um grito lancinante e, logo de seguida, um tiro a que reagi de forma automática. Fiquei meio encolhido uns momentos, bem desperto e não me apercebi de qualquer reacção humana ou movimento estranho. Regressei ao caminho e com a mesma rapidez que o nevoeiro caiu, levantou-se e o sol voltou a brilhar, embora muito mais timidamente. Não vi, até chegar ao destino, qualquer sinal suspeito, nem viva-alma. Falei com familiares e amigos e ninguém deu por nada. Desliguei e arquivei.  

No dia seguinte, a aldeia acordou em alvoroço. A notícia caiu que nem uma bomba e deixou todos atónitos. Sir. George tinha aparecido morto, presumivelmente perto do local que percorri no dia anterior. Tinha-se suicidado com uma arma de pequeno calibre e tinha deixado uma carta que comprovava e explicava o triste desenlace. O inglês era muito popular na zona. Tinha adquirido uma bruta casa na região há uns doze anos e por uma quantia avultada. Conhecia-o de vista: tinha o bom hábito de cumprimentar e ser simpático com todos com quem se cruzava. Não convivi com ele, para além desses gestos de cortesia. 

Circulavam rumores sobre ele, mas nada de muito excêntrico ou chocante. Veio para cá depois de reformado e no Algarve montou arraiais. Raramente se deslocou a Londres ou Folkestone, a sua terra natal. Tem um filho e uma filha que o visitam regularmente, mas sempre fora dos períodos de bulício. Era casado com uma portuguesa bem mais jovem do que ele e muito atraente. Diz-se que esteve na India em serviço e a morte da primeira mulher e mãe dos seus filhos era um tema tabu. Diplomata de carreira, correu o mundo: conservador carismático, simpático e um comunicador excepcional, são traços dominantes do seu perfil. Tinha um restrito número de amigos com quem ia à caça, jogava bridge e fazia hipismo; o seu desporto de eleição era o golfe que praticava sempre que podia. Tinha uma biblioteca cheia de títulos e era um colecionador de arte com peças bastante valiosas. A sua vida era calma e sem sobressaltos. A relação com a esposa era muito próxima e carinhosa. 

Se havia uma carta, não era conhecido o seu teor e se estava na posse da polícia. Não se sabia quem tinha descoberto o cadáver e se o conteúdo da carta não passou as paredes das autoridades policiais. Não se falava de outra coisa que não da morte de Sir George. No café que servia, predominantemente, os proprietários das grandes mansões, a língua mais falada era o inglês e deu para perceber que a comunidade local estava preocupada, pois nas diferentes mesas conversava-se num tom de confidencialidade. Saí e fui à polícia dar conta dos factos que tinham ocorrido no dia anterior e que poderiam estar ligados ao suicídio do antigo diplomata britânico.

Depois de ter dado conta ao que vinha ao agente de serviço, esperei uma eternidade para ser recebido pelo oficial que presumi ser o responsável local pelo inquérito. Dei-lhe conta dos acontecimentos que tinha testemunhado e que entendi relatar à polícia porque poderia ser matéria relevante para o processo. Tomou conta do meu depoimento e não notei qualquer reacção significativa no seu semblante. Nem houve pedidos de esclarecimento. Assinei o auto (?), agradeceu a minha disponibilidade e disse que não esperava ter de me pedir mais informação suplementar. Fiquei algo perplexo pelo desinteresse, mas muito aliviado.

Estava de saída, quando um homem opulento, apesar da idade, alto, gordo, cabelo grisalho mal panteado e vestido com o uniforme de caçador, quase me atropelava pela força da sua passada larga e brusca. Não caí porque o homem me segurou. Aquele tipo não me era estranho. Ele também pareceu conhecer-me. Quando me pediu desculpa – com uma voz inconfundível porque era estridente ao máximo e muito feminina – reconheci-o imediatamente. Tratava-se de um camarada alferes que fazia parte do meu batalhão e cuja missão em Angola tinha terminado em Fevereiro de 70. O “Banha” e Silva como lhe chamávamos, era um bom tipo, rico, afável, inteligente, licenciado e muito bem-disposto. Também me reconheceu: “carago, mal abriste a boca, com essa fala à tripeiro, topei logo que eras o puto reguila”. Depois dos cumprimentos e das abordagens da praxe desses momentos, perguntou-me se estava tudo bem e porque andava por ali. Expliquei-lhe sucintamente. Quis saber mais, mas recusei porque estava obrigado a sigilo em tudo o que dissesse respeito ao meu depoimento. Explicou-me que a polícia tinha pedido a sua presença e não sabia o que queriam. Pensava que era sobre a inesperada morte de Sir. George de quem era amigo. Pediu-me o número de telemóvel e avisou-me que queria falar muito comigo antes de regressar ao Porto. O mistério aumentou. Não me agradou nada estar nas bordas dum possível furacão, mas confesso que estava muito curioso.






View My Stats