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01/04/14

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O MANIFESTO

Mário Faria

 

Nenhuma estratégia de combate à crise poderá ter êxito se não conciliar a resposta à questão da dívida …… que é insustentável na ausência de robusto e sustentado crescimento.. No final de 2013 a dívida pública era de 129% do PIB e a líquida de depósitos de cerca de 120%. O endividamento externo público e privado ascendeu a 225% do PIB e o endividamento consolidado do sector empresarial a mais de 155% do PIB. A resolução da questão da dívida pública não só se impõe pelas suas finalidadesdirectas, como pela ajuda que pode dar à criação de condições favoráveis à resolução dos problemas específicos do endividamento externo e do sector empresarial, que são igualmente graves. A dívida pública tornar-se-á insustentável na ausência de crescimento duradouro significativo: seriam necessários saldos orçamentais primários verdadeiramente excepcionais.….Será tanto mais possível assegurar a sustentabilidade da dívida, quanto mais vigoroso for o nosso empenho colectivo no aproveitamento das oportunidades abertas pela reestruturação no sentido de promover esse novo padrão de crescimentoÉ imprescindível reestruturar a dívida para crescer, mantendo o respeito pelas normas constitucionais…….Esta questão é vital tanto para o sector público como para o privado, se se quiser que um e outro cumpram a sua missão na esfera em que cada um deles é insubstituível.

Subscreveram esta petição muitos notáveis, da esquerda à direita, outros tantos a rejeitaram, uns poucos apelidaram o grupo de subscritores como uma nova brigada do reumático á procura da sobrevivência na ribalta mediática. Li outras opiniões e a mais interessante que colhi, foi de Madalena Magalhães Colaço que referiu a propósito do dito manifesto, o seguinte: Jean Claude Juncker propõe a emissão de eurobonds. Berlim recusa, e aponta a reforma estrutural e consolidação orçamental como única via aos países endividados …. a dívida soberana de Portugal, Espanha, Irlanda e Grécia , detida só pelos bancos alemães, chegavam ao exorbitante montante de 408.000 milhões de euros …. Nenhum dos governos percebeu que esse montante só por si era suficiente para em conjunto obrigarem Berlim a sentar-se à mesa das negociações. Antes preferiram dizer que Portugal não era a Grécia e que a Irlanda não era Portugal e por aí fora …… Schauble percebeu a vulnerabilidade dos bancos alemães ao risco sistémico e logo procurou vias de reduzir a dívida soberana desses países nas carteiras dos bancos alemães …. Por exemplo, em Espanha em consequência da RTLO (long-term refinancing operation) 30% da divida detida por Berlim passou para os bancos espanhóis….. o poder de negociação evaporou-se e infelizmente as personalidades da nossa sociedade civil acordaram demasiado tarde.”

Quem não sabe, tem muitas dúvidas e nenhuma certeza. Sei que nada sei, a não ser que vão continuar a reduzir salários e reformas, a bem da nação, para recuperar do despesismo provocado pela forma faustosa como vivemos durante décadas, o que de todo deploro porque é uma afirmação ignominiosa. Além disso, quem gosta de pagar em impostos (direcos e indirectos) uma larga percentagem do seu rendimento, sem vislumbre da luzinha ao fundo do túnel? Há dias, encontrei um jovem ex-colega (35/36 anos) que foi despedido porque a empresa fechou a loja no Porto, tendo mantido o pessoal que trabalha na sede, em Lisboa. Obviamente, que o antigo colega está numa situação muito complicada, até porque a mulher está igualmente em situação de desemprego, e a indemnização que negociou e o subsídio que recebe dura alguns meses. Falámos um pouco da actividade publicitária, da brutal quebra de investimentos, nas dificuldades de cobrança, nas dívidas incobráveis, na redução das margens do negócio, da falta de clientes e da soberba dos grandes anunciantes que mudam de fornecedores, a troco do esmagamento das suas magras margens de lucro e do aumento dos prazos de pagamento. Não há crescimento (bem pelo contrário) eas contas giram entre as poucas agências que ainda operam, até que emigrem para outras paragens, prioritariamente para Lisboa. Esta prática não é uma novidade no sector, mas atingiu níveis insustentáveis. A financeirização da actividade atinge todos, mas é fatal num mercado periférico como o do Porto. Agostinho Branquinho e Campos Ferreira trabalharam em publicidade nesta cidade, até que foram para o Governo, porque cá no burgo as empresas, para as quais trabalhavam, fecharam. Se os bons quadros falham, mau grado os excelentes apoios que dispuseram, como esperar que os menos habilitados, sem tão boas companhias, consigam sobreviver? Se até o investimento público, nesta área, está mais curto, mais disciplinado, estruturado e poupado, só podemos vaticinar uma esperança de vida reduzida para as poucas unidades que continuam a fazer pela vida. Salvar-se-ão umas poucas direccionadas a nichos de mercado ou dependências de multinacionais a quem estrategicamente não interessa fechar e que ficam reduzidas ao trabalho administrativo e de apoio à sede.

O caminho do empobrecimento veio para ficar. Quem pagará a factura são os do costume: os mais pequenos, mais expostos à cega monetarização e financeirização da economia.

 

AS PESSOAS-LIXO

Mário Martins

(Foto: Jornal Público)

 

“O nosso quotidiano civilizado está cheio desses seres que mantendo uma similar aparência física, se afastaram de tal maneira da humanidade que perderam o laço comum. Pelo que estão reunidas as condições objectivas e morais para a chacina dos homens-lixo. E essa é já uma prática quotidiana. Imposta pelas autoridades, desculpada pela moral pública, exigida pela economia”

Moura, 2000, p.14

 

Se há fenómeno que melhor representa a demissão do Estado e mais envergonha a Sociedade, esse é, sem dúvida, o das pessoas sem-abrigo.

“O conceito de sem-abrigo utilizado em estudos recentes parece acentuar e defender a questão da habitação como prioritária. Segundo a maior parte dos autores, sem a questão da habitação resolvida dificilmente poderemos intervir na alteração das restantes dimensões inerentes ao ser humano (sociais, psicológicas, económicas, entre outras).”

Pereirinha (2005) identifica dois tipos de sem-tecto: os sem-tecto crónicos, com muitos anos de rua, há muito despojados de regras e de sonhos, onde a doença (física e mental) e a degradação física imperam; e os novos sem-tecto, pessoas que se encontram há pouco tempo na rua por múltiplas perdas (profissionais, familiares, individuais), que necessitam de um mecanismo de mediação que lhes permita reconstruírem o seu projecto de vida.”

Thelen (2004) fala na privação social dos sem-abrigo, a que poderemos chamar de nudez social. Tem sobretudo a ver com as peculiaridades do seu modo de vida. A rua - sejam ruas, praças, dormitórios, cozinhas de sopa, abrigos de dia etc. - é para o sem-abrigo, um meio muito hostil, no qual a sua integridade psicológica se encontra ameaçada. Vivendo constantemente nos limites, a pessoa sem-abrigo tem de se adaptar ela própria à rua, universo univocal que exclui qualquer um, ao mesmo tempo que desenvolve estratégias de sobrevivência. Os sem-abrigo, não tendo um projecto, repetem um padrão de falhanço e sofrem de uma falta de resiliência, estão encurralados no presente e não têm nenhuma consciência do tempo. Consequentemente, estas pessoas são incapazes de definir quais são as suas preocupações assim como os seus desejos. Ainda o mesmo autor refere-se aos sem-abrigo como estando parados, numa vida em que a satisfação de necessidades básicas, tais como encontrar comida e um lugar para dormir, está sempre presente. Vida esta preenchida pelo álcool, tabaco e pequenos expedientes.”

Tornar-se sem-abrigo resulta de um processo progressivo de perda de laços afiliativos com as várias estruturas sociais: a família, a escola, o trabalho, a religião, a política e o lazer (Bahr, 1973).”

Como é possível este paradoxo de as sociedades mais desenvolvidas produzirem pessoas-lixo? Para não falar de Portugal, em que é a Santa Casa da Misericórdia, e não o Estado, a sair para a rua para fazer o levantamento dos sem-abrigo, e a gizar e aplicar medidas para minorar a sua situação, talvez que uma parte importante da resposta a esta questão esteja no modo como, por exemplo, a Comissão Europeia aborda o fenómeno:

“A Comissão Europeia reconhece que o fenómeno dos sem-abrigo é uma questão complexa, pois não diz respeito exclusivamente a uma ausência de habitação. Muitos dos sem abrigo também se debatem com múltiplos problemas – doença mental e física, desemprego – que os arrastam para uma espiral de pobreza. Por isso, diz ainda a Comissão «é essencial não focar apenas as pessoas que vivem na rua, mas considerar o fenómeno dos sem-abrigo numa perspectiva mais abrangente» (cit. in Comissão Europeia, 2003).”

Como se pode, de facto, procurar resolver o grave problema social das pessoas sem-abrigo quando se considera “essencial não focar apenas as pessoas que vivem na rua”? Os resultados desta abordagem política estão à vista nas ruas e nas estatísticas: 116 milhões de pobres ou em risco de pobreza na União Europeia, em Março de 2013. Se o desemprego galopante arrasta as pessoas para a pobreza ou para o seu limiar, não se deve, no entanto, confundir os sem-abrigo com os pobres que, melhor ou pior, têm casa, relações familiares e/ou de vizinhança e uma qualquer fonte de rendimento. As pessoas-lixo estão, sozinhas, na base da pirâmide social, mas a solução desta chaga social devia estar no topo de uma agenda política decente.

Nota: As partes do texto em itálico foram extraídas do sítio da AMI (Tese de mestrado de Ana Ferreira Martins: "Mulheres Sem Abrigo na Cidade de Lisboa" - Fev2007).

 

 

SÁBIOS

António Mesquita

 

Pergunta Fiama: "Como se explica, Hípias, que os antigos sábios todos se tenham afastado dos negócios públicos?"

Terão sido realmente sábios, no que se refere à política, homens como Platão que quis experimentar a sua utopia junto do tirano de Siracusa?

Platão, nisso, falhou. Deu a mesma queda, a propósito da qual troçou de Tales a escrava trácia. Não se pode olhar para as estrelas e ao mesmo tempo estar atento ao poço que surge no caminho.

Não foi a sabedoria que o levou a querer reformar Siracusa, segundo o ideal da 'República'. Se ele é, talvez, o primeiro dos sábios antigos, é por outras razões, e não por causa dessa fatal ilusão que o levou a comparar a 'navegação' na política com a arte do piloto. O filósofo não é o mais apto para governar o Estado, porque a interpretação do passado não ajuda nada a fazer previsões em política. Em política não há leis históricas e todos os acontecimentos são 'singularidades'.

Mas todos os 'sábios' têm a mesma tentação de influenciar a condução dos 'negócios públicos'. E hoje são preparados para isso nas grandes escolas de economia e de gestão. Não chegaram a sair da 'caverna', porém, ficam à mesma deslumbrados com o falso sol.

Nenhum tirano falha em 'dar-lhes a volta'. Não por capricho, ou simples medo de perder o poder. Mas porque, tudo considerado, os tiranos (hoje, os da finança 'global') preferem, o mais racionalmente que é possível,"o que está". São 'pacifistas' à sua maneira, e os maiores garantes da 'estabilidade'. Em ambos os casos, trata-se da mesma racionalidade que Foucault acusava de servir o poder.

 

VIDA E DESTINO (3)

Alcino Silva

Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 31 de Março de 2014

à redação da Periscópio

sento-me nesta tarde última do mês e pergunto-me que palavras vos posso enviar do interior deste silêncio onde agasalho a alma, protegendo-a do mundo e da maldade humana. Olho o exterior onde o crepúsculo se vai sentando e puxando para si a roupa da noite que não tarda cobre de negro a terra e a água, permitindo que o céu se encha dessas estrelas luminosas que formam as constelações que nos orientam na ausência da luz. Os dias são agora de muitas e cinzentas nuvens e o azul no infinito é agora um aparecimento raro. Evito subir o fiorde, pelo frio e pelo vento que em certas horas sopra agreste sobre a face. Desço mais à cidade e visito a biblioteca, por ali passando as tardes. Há dias, deixei o olhar deambular pelos títulos e sustive a atenção em Vida e Destino1 de Vassili Grossman. Não me amedrontei com o tamanho, sentei-me e parti para uma fascinante leitura. Vida e Destino é um grande romance, uma obra notável, pela construção da história, pela reconstrução do momento, pela criação de seres humanos terrenos, quer dizer, sem a áurea do sonho romântico que gera seres excepcionais, mas antes, onde convive a resistência e a fraqueza, a paixão e a ambição, a nobreza e a dádiva. A história contada, nasce na iminência de uma grande derrota, na qual se exacerba a resistência, mesmo parecendo que o fim é inevitável, ao mesmo tempo que na retaguarda se reúnem forças para transformar o destino. Quando já quase nada resta e o Volga adquire a dimensão de uma necrópole final onde vai repousar o que parece não ter passado de uma quimera, eis que do subsolo do véu de neve invernal, renasce um poderoso exército que em velocidade estonteante, rompe as defesas que pareciam inexpugnáveis, destroça os festejos de uma vitória que já se estendia pelas estepes, e numa tenaz impressionante, afoga uma multidão de soldados num miserável trapo de colunas destroçadas e a história termina, com os carros de combate vitoriosos rolando imparáveis a caminho do oeste. É de facto, um livro impressionante, uma leitura que nos deixa num limbo de emoção, de uma encruzilhada de sentimentos, numa reflexão profunda sobre a vida humana, sobre a participação dos Homens na História e, sobretudo, fazedores dessa História. A batalha de Estalinegrado ficará nos anais da História, como uma vitória do querer, da perseverança, da paciência, da capacidade de resistência, da grande estratégia que os seres humanos podem construir, mesmo que para se derrotar uns aos outros, e a vitória de um sistema social que permitiu motivar, enaltecer, arrebatar, os seres humanos em nome de um objectivo comum e colectivo. Vassili Grossman é judeu e faz questão de o afirmar, mas a grandeza do romance permite-nos ultrapassar esse assumir de uma diferença que não há razão para salientar.O autor traz para primeiro plano essa vitimização através do personagem principal do romance, Víktor Pávlovitch, colocando-o no pedestal do cientista emérito, que iria permitir que o país alcançasse o topo no avanço da ciência. Ao mesmo tempo que o coloca como um perseguido, mostra que não podem dispensá-lo, que sem o seu conhecimento e saber, a pátria marcaria passo. Apesar deste tropeção judaico, o romance em nada se diminui e qualquer um pode substituir o personagem, porque o mesmo assume a defesa de uma dignidade, de uma liberdade, de um idealismo que qualquer um de nós, pode e deve subscrever. A União Soviética foi um sonho, de certa forma até, romântico. Podemos olhar este passado já com alguma serenidade, vinte anos após a sua diluição no pó da história. É possível afirmar que o primeiro Estado dirigido por aqueles que trabalham, resolveu grandiosos problemas da humanidade, do ponto de vista, social, económico, cultural, educacional e de muitas outras esferas da vida. Pecou, não soube, ou os contornos da história que rodearam a sua construção, não o permitiram, uma resposta, significante de um convívio entre a liberdade individual e colectiva, na qual se inclui na primeira, a liberdade de pensamento e a sua expressão, e na segunda, o interesse de que cada um, só é importante se souber conviver com o colectivo, o interesse que todos abrange, que todos alcança, e alcançando todos, alcança por inerência, cada um individualmente. Através de uma escrita prodigiosa Grossman traz-nos a realidade do país e da sociedade de uma forma tão palpável que nos transporta para o centro dos acontecimentos e para a vida das personagens e é espantoso na forma como caracteriza os actos e as acções do ditador quando agindo em nome do colectivo, sabia interpretar os sentimentos e as maldades humanas na sua complexidade, ora aparecendo como a figura sinistra, ora como a personagem que abre caminhos. «É que bastava uma palavra dele para que surgissem obras de construção gigantescas, para que colunas de lenhadores fossem atirados para a taiga, para que multidões de centenas de milhares de pessoas cavassem canais, erguessem cidades, construíssem estradas nas terras da noite polar e do gelo eterno. Ele exprimia em si um grande Estado! O sol da Constituição de Stálin… o Partido de Stálin… os planos quinquenais de Stálin… as obras de construção de Stálin… a estratégia de Stálin… a aviação de Stálin. O grande Estado exprimia-se nele, no seu carácter, no seu feitio.» Vassili Grossman levou-nos mais longe, fazendo-nos percorrer os silêncios das prisões longínquas, dos quartos de luz ténue, das levadas de homens a meio da noite, apenas por suspeita ou delação. A história tem os seus tempos, os seus momentos caracterizadores, os condicionalismos que cercam os homens, e sabemos que essa mesma história não se repete, sobretudo porque o tempo não se imobiliza, mas também sabemos que os homens numa estupidez que parece doentia e lhes apaga a chama do pensamento, ou então enaltecidos por uma cupidez extravagante, teimam em repetir os erros. No entanto, os tempos mudaram, mudaram muito. Esta grande obra de Grossman para além do seu valor literário e histórico, permite esta reflexão interior, esta ponderação sobre o passado, fazendo-a reflectir sobre o presente e necessariamente sobre o futuro. Mas este livro, tão envolvente, tão dramático e ao mesmo tempo tão cativante, fala-nos, mostra-nos também as debilidades e grandezas humanas perante o amor que nos aparece reflectido em dois trios, um formado por um homem e duas mulheres, e outro composto por uma mulher e dois homens. De ambos, retive a vida de Piotr Pávlovitch. É o comandante de uma unidade de carros de combate que vai ter um papel decisivo na contra-ofensiva do Exército Vermelho. Durante meses, na retaguarda prepara, treinando e disciplinando, as tropas que irão empurrar os alemães para centenas de quilómetros de distância. Nesse espaço de tempo, consegue encontrar as horas necessárias para dedicar a Evguénia Nikoláevna, o grande amor que o faz empenhar-se com maior felicidade nas suas tarefas da vida. Dedica o pensamento a esta mulher para quem encontra sempre um presente e com quem sonha viver nos dias de paz. Vive-a intensamente. Contudo, pressentia-se algo vazio no comportamento de Evguénia Nikoláevna. Mais tarde, quando já tinha partido sem deixar qualquer palavra escrita, não saberá responder se o amava ou se apenas amava o amor que ele lhe dedicava. Na véspera de um combate decisivo Piotr Pávlovitch não perderá o controlo das suas obrigações, nem da sua dignidade, mas olhando o seu comportamento podemos ainda apercebermo-nos da dimensão do seu amor, pois apesar de a ter perdido viveu fazendo-a«participante do seu trabalho, da sua desgraça, dos seus pensamentos, fê-la testemunha dos dias da sua fraqueza, da sua força… E as cartas rasgadas não desapareceram, as palavras lidas dezenas de vezes, ficaram-lhe na memória, e os olhos dela continuavam a olhar para ele das fotografias rasgadas». A grandeza de Piotr Pávlovitch ficará ainda vincada de forma indelével quando no momento de iniciar a ofensiva, corajosamente assume a desobediência hierárquica, prolongando o fogo inicial de artilharia para evitar arriscar desnecessariamente a vida dos militares que iriam cavalgar os blindados vitoriosos. A marcha para oeste tinha começado e um dos grandes artífices triunfantes desse movimento inicial, era ao mesmo tempo,um homem destroçado por um amor que perdera, pese a intensidade com que o viveu e se lhe dedicou. Ao deixar a biblioteca e alcançar a rua, após esta leitura, olhando as águas azuis e crepusculares do fiorde, pensando na pátria longínqua e nos tempos miseráveis do presente, sinto que mais do que uma utopia, o sonho não pereceu, para mim está vivo como o vermelho do ferro incandescente e a cada dia que nasce sinto-me caminhando sobre os carros de combate que triunfantes continuam a rolar para o futuro. Um abraço, de longe.

1 Vida e Destino, Vassili Grossman, D. Quixote, 2011

 

 

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