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01/01/17

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CARTAS DE SANTA MARIA

(Alhambra)


Granada, 31 de Dezembro

O nome da cidade e da província arrastam-me o pensamento para três momentos distintos. Antes de mais, o poeta, pelo que a primeira paragem teve de necessariamente ser em Fuente Vaqueros. O seu nome chegou-me quando a adolescência se despedia, na parte terminal dos anos de chumbo que a nossa pátria viveu. A memória já não guarda os pormenores com nitidez suficiente, mas numa dessas noites, encontramo-nos no TEP para ver a Casa de Bernarda Alva. Era muita a fadiga pelas canseiras que esses tempos geravam, pelo que o registo da obra e do autor ficaram pouco cinzelados. Mas não tardou que os Aqua Viva, trouxessem de novo até mim a palavra do poeta. Era uma canção luminosa que começava com uma voz dorida, El río Guadalquivir va entre naranjos y olivos. Los dos rios de Granada bajan de la nieve al trigo, para de seguida apresentar o poeta, Federico, Garcia Lorca, my cantor. Mais tarde, Pablo Neruda, haveria de trazer relatos da vida intelectual em Madrid, da qual Garcia Lorca era uma das figuras referenciais. Desgraçadamente, nessa época, um maltrapilho que vestia a farda do exército da Espanha republicana, um estropiado intelectual que dava pelo nome de Francisco Franco, revolta-se contra a República e o governo constitucional, permitindo que todo o jardim zoológico do fascismo se espalhasse pelo território do Estado dando largas à sua selvajaria. Foi o tempo em que um rufia a quem chamavam Millán-Astray, perante a grandeza intelectual de Miguel Unamuno, na venerável Universidade de Salamanca, gritava, “Abaixo a inteligência”, com os rafeiros que o acompanhavam fazendo coro com um “Viva la Muerte!”. Nas primeiras semanas da guerra, procuraram o poeta e o assassinaram entre naranjos y olivos. Nunca o disseram porquê. Um «equívoco da guerra», tentaram explicar mais tarde, quando as trombetas da História lhe começaram a bater nas bentas. Por isso, a canção prosseguia, «apresento um amigo que não conheci, porque o meu princípio foi depois do fim». Federico voltou, mais tarde com o seu olhar cheio da luz da sua Andaluzia e agora pode passear sem medo pela Vega, por entre os laranjais e pelas ruas da sua aldeia. Enquanto percorro essas ruas, a memória, procura outra parte do poema que nos lembrava que el río Guadalquivir tiene las barbas granates. Los dos rios de Granada uno llanto y otro sangre. Granada é também a Allambra, o Palácio da Dinastia Nasrida. Não me perguntem o que vi em Granada, pois vi apenas e só, o Palácio, as suas fontes, os seus jardins, a arte islâmica, as cores, os desenhos, a arquitectura. Entra-se no território palaciano e a cabeça perde-se na contemplação dos tectos, das paredes, das colunas. Sentimo-nos como quando um olhar amado nos imobiliza o pensamento. Perdidos no êxtase da beleza, apagam-se em nós todos os sons, exceptuando o da água correndo para as fontes, como a dos Leões, em cujo jardim sentimos o paraíso. Se os traços arquitectónicos já não fossem suficientes para nos arrebatar, as letras do alfabeto árabe lançam-se em desejos geométricos com o nome de Deus, das suras e versículos, como para além da beleza terrena pudéssemos acrescentar a divina. A Alhambra, não se visita, vive-se, sala a sala, corredor a corredor, são espaços e a cada um deles corresponde um tempo de perfeição, como se percorrêssemos o caminho para Deus e a beleza fosse em crescendo. Quando deixamos o espaço palaciano e o procuramos olhar do exterior, temos de aguardar alguns instantes até que a respiração se normalize. Tanta excelência quase nos deixa sem fôlego. Granada é por fim o Guadalquivir. Não, o rio não atravessa a cidade. Os Los dos rios de Granada que o poeta referia, de pranto e sangue são o Darro e o Beiro, mas o Guadalquivir que o poeta falava vem da Sierra Nevada e atravessa a Andaluzia, os seus laranjais e as suas oliveiras, essas que o viram morrer, num lugar sem nome e numa tumba sem lugar. Talvez por isso o seu poema dizia, Ay, amor que se fue y no vino! Desde essa adolescência longínqua que não consigo desligar de mim estes três instantes que renascem quando cruzo Granada, o poeta, o palácio e o rio. E a música volta como um clarim tocando lentamente, ele vive aqui e vive em mim.

Fernão Vasques*

* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

A CRENÇA DE KEN LOACH

António Mesquita






Esta história de um operário inglês que, depois de um ataque cardíaco, cai nos dentes da engrenagem de um Estado que abandona os mais fracos à sua sorte, que se serve da iliteracia tecnológica como de uma guilhotina que corta a direito na carne, como no 'Mercador de Veneza', segundo a lógica dos interesses privados que dele se apoderaram, podia ser a perfeita ilustração da lei capitalista, tal como foi definida no século XIX por um certo Karl Marx.

Em face da eficácia chocante do filme, não faltaram os que a 'explicaram' pelo passado marxista de Ken Loach, o realizador. Claro que os que buscam as influências, senão as taras das ideologias, para demonstrarem a falência de uma obra enquanto arte, sempre se sentiram impotentes para aplicarem o seu preconceito a um génio como Eisenstein, por exemplo, perfeitamente 'manipulador' e ideologicamente orientado, no domínio das formas. Mas até ele atraiu a desconfiança do poder caligulesco.

Poderíamos falar, no caso de Loach, de coerência ou de estilo, e é até concebível que se filme à maneira do 'realismo soviético', como em pintura se viu, por exemplo, um regresso ao tempo anterior a Rafael. Porque há um tempo para inovar e outro para amadurecer. 'I, Daniel Blake' parece-me um 'vintage' por que há muito tempo ansiávamos, sem saber a forma que assumiria. Leva o humanismo para além da sua morte oficial.

Nestes tempos em que, pelos vistos, já perdemos o sentido da verdade numa curva da estrada, este drama surge-nos limpo e tocante como se o capitalismo financeiro e digital fosse apenas uma nova face da sempiterna figura da Necessidade e da guerra do homem contra o homem.



DESEMPREGO

Mário Faria

(Fio de prumo: a angústia do desemprego)


Há dias encontrei um ex-colega. Detetei, desde logo, algo estranho: ele que era um tipo bem-disposto e muito aprumado, apresentava-se soturno e desmazelado. Tem quarenta e poucos anos, era muito competente e disciplinado. A empresa fechou no Porto e foi despedido. Como um mal nunca vem só a esposa seguiu o mesmo rumo pouco tempo depois. O seu subsídio de desemprego tinha terminado e o da sua esposa andava lá perto. Falou-me, com raiva, da sua vida, sem trabalho, sem salário, sem dinheiro, sem perspectivas de o conseguir e com uma família para sustentar. Que o desemprego é uma tragédia social todos o dizem, a começar pelos economistas que, apesar disso, o desejam já que se trata de um efeito secundário de flexibilidade, que é “uma coisa boa” que permite reorganizar a força de trabalho. Mas que é uma tragédia pessoal e familiar poucos o sentem de facto. Notava-se nele um rictus de sofrimento moral evidente e comovedor. Para aquele homem, o seu desemprego, não resultou de culpa pessoal mas do encerramento de uma empresa que tinha servido sempre de forma exemplar. Tinha tido vários convites para mudar, mas estava na empresa desde os dezassete anos e dizia sempre que só mudaria por um salário milionário. O negócio tinha caído drasticamente desde 2012. O pouco que restava passou a ser gerido pela sede em Lisboa. Bateu à porta de muita gente pois era reconhecida a sua competência nos serviços que prestava. O mercado do emprego não o ouviu e virou-lhe as costas. Os problemas quotidianos e a falta de reconhecimento e solidariedade que sentiu intrometeram-se de forma vincada na sua auto-estima. Sente vergonha. Esconde-se e já não procura com vigor uma saída. Foge dos vizinhos, dos amigos e da família. O casamento tremeu mas o casal conseguiu superar a situação. Os filhos ajudaram a ultrapassar a crise. Impedido de trabalhar, descobre estranhamente, como sem o trabalho perdeu a sua razão de ser, a identidade e orgulho. Depois de ter contado a sua desdita, fez-se um breve silêncio que ultrapassei dizendo uma série de trivialidades e alguns conselhos despropositados, que ouviu e que sabia que não serviam para coisa nenhuma. Despediu-se; desejei-lhe um bom Natal. Porque é que nestas alturas raramente somos capazes de dizer as palavras certas? Por esta via e sem a dor dos que se sentem excluídos, desejo que todos os desempregados encontrem o caminho, o trabalho e o respeito que lhes é devido. E um bom ano para eles e para todos os homens e mulheres de boa vontade.



ELOGIO DE ÁLVARO DE CAMPOS


Mário Martins


https://www.google.pt/search?q=alvaro+de+campos+imagens


Se para o clássico Ricardo Reis, Caeiro era um objectivista e Campos um emocional, “o que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins rítmicos (…)”. Sem acompanhar a crítica de Reis, essa singularidade emocional de Campos é realçada pelo próprio Fernando Pessoa: “Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema do Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia…”.

Poesia ou prosa, como não compreender a grande conta em que Campos tinha as suas Odes Triunfal e Marítima?: “(…) até hoje (1925) (…) só houve três verdadeiras manifestações de arte não-aristotélica (que, para Pessoa, é a verdadeira arte). A primeira está nos poemas assombrosos de Walt Whitman; a segunda está nos poemas mais que assombrosos do meu mestre Caeiro; a terceira está nas duas odes – a Ode Triunfal e a Ode Marítima – que publiquei no Orpheu. Não pergunto se isto é imodéstia. Afirmo que é verdade.”

Não custa imaginar a presença da musa inspiradora nessas horas de lirismo febril em que o poeta anseia fundir-se com as máquinas do progresso: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/Ser completo como uma máquina!/Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!/Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,/Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento/A todos os perfumes de óleos e calores e carvões/Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (Ode Triunfal); ou com o mar largo: “Toda a vida marítima! tudo na vida marítima!/Insinua-se no meu sangue toda essa sedução fina/E eu cismo indeterminadamente as viagens./Ah, as linhas das costas distantes, achatadas pelo horizonte!/Ah, os cabos, as ilhas, as praias areentas!/As solidões marítimas, como certos momentos no Pacífico/Em que não sei por que sugestão aprendida na escola/Se sente pesar sobre os nervos o facto de que aquele é o maior dos oceanos/E o mundo e o sabor das cousas tornam-se um deserto dentro de nós! (…)” (Ode Marítima). Depois da histeria o apaziguamento: “Ah, como pude eu pensar, sonhar aquelas cousas?/Que longe estou do que fui há uns momentos!/Histeria das sensações – ora estas, ora as opostas!/Na loura manhã que se ergue, como o meu ouvido só escolhe/As cousas de acordo com esta emoção – o marulho das águas,/O marulho leve das águas do rio de encontro ao cais…,/A vela passando perto do outro lado do rio,/Os montes longínquos, dum azul japonês,/As casas de Almada,/E o que há de suavidade e de infância na hora matutina!...” (Ode Marítima).

Para a pessoana Clara Ferreira Alves, “o Campos é muito mais que o Pessoa histérico, é o génio à solta”, e o aclamado “Tabacaria” “um poema fundador da modernidade, e não apenas da modernidade portuguesa”: “Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu./Estou hoje dividido entre a lealdade que devo/À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,/E a sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.”

Com o verso “Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!” Álvaro de Campos, culmina, em êxtase, a Ode Triunfal. Por alguma razão, o engenheiro naval  definia o empregado de escritório, que Fernando Pessoa também foi, como “um novelo enrolado para o lado de dentro”…

PS: A “geringonça” fez 1 ano. O que pode explicar esta inesperada longevidade e a sensação de que está para durar? Vários factores haverá, entre eles a habilidade política de António Costa, mas a cola que realmente une partidos tão diferentes e com políticas tão opostas é a vontade de manter fora do governo os partidos defensores de uma receita única de austeridade. Este surpreendente pragmatismo pós-eleitoral da esquerda, para além de aligeirar a carga austeritária sobre a maioria dos cidadãos, produziu já os efeitos benéficos de acabar com o arco da governação e de demonstrar a Bruxelas novos caminhos de chegar aos objectivos. Tudo isto, é claro, na corda bamba da dependência dos empréstimos e das respectivas taxas de juro…    

MENSAGEIROS SECUNDÁRIOS


Manuel Joaquim


Narrativas do século XVIII, descreviam situações que iriam acontecer, através de anjos, santos e monstros. Clara Pinto Correia, no seu romance “Os Mensageiros Secundários”, descreve situações dessas do tempo do terramoto de Lisboa, que aconteceu em 1 de Novembro de 1755.

Aqui há uns meses, houve alguém que predisse que no decurso do terceiro trimestre do ano que agora acaba, se iria abater sobre Portugal graves acontecimentos. Belzebu chegaria para nos atormentar. Ninguém se apercebeu da sua chegada, salvo os trabalhadores que ficaram sem emprego, sem aumentos dos salários nominais, logo com a diminuição dos salários reais, em resultado do aumento do custo de vida cada vez mais evidente.

O mesmo mensageiro secundário, que neste caso só pode ser um monstro, veio, depois, predizer que em Janeiro de 2017, chegariam a Portugal os três reis magos, como se fosse um acontecimento maligno.

De facto, este monstro, que só pode ser maligno, ele próprio, não pode dizer que a visita dos reis magos é um mau acontecimento. Os reis magos, os originais, levaram ao menino Jesus, oferendas, incenso e mirra, com grande significado purificador.

O monstro, o que pretende dizer, é que em Janeiro Portugal vai ser visitado por representantes de três instituições, a chamada troika, para avaliarem a evolução da situação económica e financeira do país. Mas isso é do calendário publicamente conhecido. Não está a anunciar nada de novo. Mas vai fazer uma festa nos jornais e nas TVs a dizer que “eu avisei”. Forma de dizer que ainda está vivo.

Os monstros do século XVIII, quando faziam patifarias, as populações vítimas, organizavam-se para os combater e para os destruir.

O monstro que agora está entre nós, está a levar os seus próximos a organizarem-se para o combater e o destruir, antes que a maioria dos portugueses também os combatam e os afastem por muitos anos das fontes que os alimenta. Mas há quem pretenda minorar a situação e salvar-lhe a vida.

Um jantar de Natal pode ter esse objectivo.
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