StatCounter

View My Stats

01/11/20

160

 


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



O silêncio é o que nos permite escutar os sons da natureza, abafados há muito pela acção humana. “A natureza falava comigo através do silêncio. Quanto mais silencioso eu ficava, mais ouvia.” Vivemos rodeados de silêncios que não podemos escutar face aos ruídos que produzimos. No entanto, acompanham-nos ao longo da vida e encontramo-los quando nos dispomos a escutá-los e permitimos que nos penetrem a alma com essa doçura carente de sossego e quietação. E há silêncios para todos os momentos e para todas as inquietações. O silêncio de Salang, desse túnel implantado a três mil metros de altitude, cercado de montanhas agrestes cujas encostas caem num arrepio empinado sobre um rio escavado ao fundo, em tempo de guerra, de combates mortais e inúteis, é o do medo e da angústia perante o desconhecido que se esconde no aparente sossego daquelas pedras que se acumulam em picos medonhos, é um desses silêncios que não se esquecem que nos amortalham os sonhos e nos achatam o futuro. O silêncio de Beethoven é o da mágoa, da tristeza, que nos socorre perante uma perda, a partida de alguém, a privação de um amor. É um dedo pisando docemente as teclas de um piano num misto de poesia e de lágrimas. Há também o silêncio como exaltação da beleza, que sentimos quando navegamos em direcção a Puerto Aisén. A serenidade das águas, as suas cores irrepetíveis, o verde luxuriante das margens, a neve cobrindo a pedra cinzenta e castanha da cordilheira, um pouco ao longe como segunda personagem, o marulhar das águas contra a proa, quando os motores se apagam, como único som, faz-nos sentir esmagados pelo tamanho da perfeição contemplada e sentida. E o outro silêncio, aquele que caminha connosco nos planaltos da serra geresiana entre tojo e urzes entre a formusura cromática de flores que se espalham, esse silêncio com quem dialogamos, que nos cativa para uma permanência que se estende ao longo das horas e que à tardinha, quando o cansaço se avizinha, muda de som, penetra-nos os ouvidos, eleva-nos com tranquilidade tornando os passos menos pesados e chama-nos para a eternidade. Há ainda o silêncio que trazes no interior do olhar quando chegas e a tua mão abraça a minha, e fica por ali a rondar-me, a alma e a imaginação. Erlind Kagge diz-nos que “os segredos do mundo se escondem dentro do silêncio.” Como não detemos a nossa vivência célere, sem tempo, cada dia mais acelerada, precipitada e sem sentido, nunca descobrimos a maravilha desses segredos e a nossa vida vai perdendo sentido, o rumo, essa bússola que nos poderia conduzir ao caminho do que definimos, ou pelo menos chamamos, como felicidade. Este norueguês que acompanhado unicamente do silêncio caminhou até ambos os pólos, dias sucessivos rodeado de montanhas brancas, afirma que sendo certo que tememos a morte, é mais certo temermos não ter vivido e que esse medo se acentua quando caminhamos sobre o fim da vida e nos apercebemos que é tarde para quase tudo, nomeadamente para viver o que não soubemos fazer durante os anos em que pensamos ter vivido, movidos que estivemos por uma ânsia que nos catapultava permanentemente para diante, fazendo esquecer a necessidade de determos a sofreguidão dos dias e podermos escutar os ensinamentos que nos trazem os sons do silêncio. Nos cinquenta e um dias que caminhou sobre o continente Antárctico concluiu que ao contrário do que parecia, o que o rodeava mantinha-se imutável e ele é que ia mudando, tendo escrito no seu diário ao vigésimo segundo dia, «Em casa só aprecio “grandes garfadas”. Aqui aprendi a valorizar as coisas mínimas. Os tons subtis da neve. O vento que começa a amainar. Formações de nuvens. Silêncio.» Anos após estas experiências que exigem a coragem e abnegação que se esconde no interior do ser humano, esta pessoa diz-nos ainda que deixou de tentar criar silêncio à sua volta. Agora apenas procura o silêncio interior, o que vive em nós sem nos apercebermos, pelo que não o procuramos, não o disfrutamos, perdendo assim a verdadeira oportunidade de viver, de saborear a beleza que existe em cada pormenor. Só o acaso nos faz ver uma flor que cresce, uma árvore que estende os seus ramos, o sol que desliza pela galáxia, semeando na terra um enxame de cores luminosas, a mansidão de um amanhecer, a tristeza de um dia que acaba. Nesse silêncio interior estão as respostas a todas as nossas perguntas, encontram-se todos os caminhos que procuramos e nessa paisagem silenciosa que se esconde na nossa alma, podemos viver aqueles momentos que nos fazem felizes, mesmos os que vivem apenas no conforto da nossa memória. Ou como escreveu Lawrence Durrell em “O Quarteto de Alexandria”, “Não dependem todas as coisas da interpretação que damos ao silêncio que nos rodeia?”.

Todas as citações, exceptuando a última, foram extraídas do livro, “Silêncio na era do ruído” de Erling Kagge, Quetzal editores, Lisboa, 2017.



DEFESA CIVIL

António Mesquita

Diz Marshall Mc Luhan, o profeta canadiano de "Understanding Media" que "Idealmente, a educação é uma estratégia de defesa civil contra as consequências dos 'media'."

Como se sabe, a tese mais conhecida deste pensador é a de que o meio é a mensagem, não o conteúdo desta. "Toda a tecnologia gradualmente cria um ambiente humano totalmente novo. Os ambientes não são envolvidos passivamente, mas como processos ativos". 

No momento em que a Igreja pela voz do Sumo Pontífice alerta para uma "catástrofe educativa mundial" decorrente sobretudo das repercussões duma pandemia que deslaça a sociedade humana e põe em causa a transmissão dos conhecimentos e a herança cultural, é tentador fazer o exercício de sobrevoar uma crise planetária que cavalga uma mudança climática de alto risco e uma revolução tecnológica vertiginosa de que todos somos testemunhas.

Até que ponto as dificuldades e os graves problemas de saúde pública ligados ao Covid 19 seriam menos complexos na ausência daquela conjuntura? Menos angústia e menos medo do futuro, talvez, se as novas armas da medicina e a espectacular capacidade de partilhar conhecimento providas pela tecnologia não fossem também um motivo de esperança.

A ideia de McLuhan de que o chamado progresso tecnológico impõe à sociedade uma "estratégia de defesa civil" não é uma afirmação optimista. Quaisquer que sejam as vantagens da utlização dum novo "medium", são de esperar algumas consequências negativas. Embora seja de crer que o balanço final seja positivo, não temos conhecimento do abandono duma grande novidade tecnológica  se apenas o futuro tiver a última palavra sobre se representa um verdadeiro progresso. Estamos apenas a começar a ganhar consciência de que a informação sobre nós recolhida durante o uso da internet é a "alma do negócio", ou, como diria o pensador canadiano, é a "mensagem."
Esses dados permitem a uma empresa motivar, sem nos darmos conta disso, os nossos actos privados ou públicos e a um estado poupar na força policial e controlar os cidadãos como nem o Orwell do "1984" sonhou. O Big Brother era a infância da arte.

Ora, como é que a escola pública, falemos só nesta, para simplificar, pode escapar a este cerco ambiental? O que se está a passar em França dá-nos algumas indicações. Depois da decapitação de Samuel Paty, o governo prepara-se para "dessequestrar" as crianças árabes, mas francesas de pleno direito, duma educação pela comunidade e à margem da escola laica. A República é laica e quer uma educação cívica de acordo com isso. Se o Estado francês já fosse um CiberEstado, a única esperança para a liberdade seria a estratégia educativa adoptada pelas famílias árabes, em França. Isso é o que corresponderia a uma "estratégia de defesa civil contra as consequências dos 'media'." Resta saber se essa estratégia teria qualquer hipótese fora da democracia, tal como a conhecemos. 

"(...) o surgimento de uma tecnologia não ocorre por uma tentativa isolada do desenvolvimento técnico em si, mas sim por uma tentativa de transformar, reproduzir, e documentar as experiências do homem" (McLuhan)

A pandemia do Covid é, por outro lado, uma espécie de "medium anti-social" de que também temos de nos defender. Os dados que a doença obtém sobre nós não os vende como publicidade ou controle dos cidadãos. Procura apenas expandir-se. Essa sua "cegueira" é a nossa sorte. Não lidamos com um inimigo "diabólico", como só o homem pode ser. 

O tribalismo das redes sociais pode potenciar a desinformação e a intoxicação dos grupos tornando muito mais precário o funcionamento da sociedade como um todo. É o nosso azar. Não é a guerra civil, é a anarquia que "faz a cama" do Ciberestado.

ENGELS NO CG DA INTERNACIONAL

Manuel Joaquim


Ainda sobre Friedrich Engels, no passado dia 22 de Outubro, a Universidade Popular do Porto, realizou uma conferência, presencial e por videoconferência, para assinalar os 200 anos do seu nascimento, apresentada pelo Professor de História, Guilhermino Monteiro.

A conferência teve umas boas dezenas de presenças, muito atentas às palavras do orador, que abordou a vida e a obra de Engels, a sua juventude, os seus escritos e a sua intervenção na sociedade.

A UPP editou uma brochura de autoria do conferencista, com 43 páginas, com o título “Engels no Conselho Geral da Internacional 1870-1871 – A acção do Conselho Geral da A.I.T. durante a guerra franco-alemã e a Comuna de Paris”. 

Essa brochura transcreve de duas cartas de Engels a dois amigos, referências a “Os Lusíadas e onde considera que os Portugueses são uma nação muito respeitável”. 

É também referido na brochura, um artigo publicado por Engels na “Nova Gazeta Renana, onde descreve acontecimentos ocorridos em Portugal: … foram enviados para a Grécia bandos de mercenários para conservarem o querido Otão no seu trono de opereta, e até para Portugal foram polícias alemães. Com esta referência a Portugal, Engels tem em vista o período de restauração do absolutismo, por D. Miguel, a partir de 1828.”.

São interessantes estas referências a Portugal, porque o mundo estava e está atento ao que cá se passa. Todo o século XIX está cheio de acontecimentos políticos importantes. O tempo que antecedeu a instauração da República foi um tempo de grandes lutas políticas e sociais. Aqui, na cidade do Porto, constituíram-se grandes associações que ainda hoje existem, resultantes dessas lutas. Há referências à passagem pela cidade do Porto do genro de Marx, Paul Lafargue, e de Lenine.

A Brochura está disponível no Facebook da Universidade Popular do Porto.





O GRANDE ENIGMA

Mário Martins

https://www.google.com/search?source=univ&tbm=isch&q=mist%C3%A9rio+da+natureza+imagens&client



“’Quem é Deus?’ É esse mistério último, que eu não domino, mas do qual espero salvação (…) As religiões são apenas tentativas de figurar esse mistério último (…).”
Anselmo Borges 

Revista do Expresso, 15Agosto2020



Não se deve estranhar que para um crente e, por maioria de razão, para um padre e teólogo como Anselmo Borges (AB), a existência de Deus seja um dado indiscutível, mas essa fé não tem o valor universal do reconhecimento da Natureza e da sua essência misteriosa. Se descobrimos as suas leis, quer dizer, como a Natureza, tal como a percepcionamos, funciona, não sabemos a razão por que existe. O que é, assim, verdadeiro e irrefutável é o grande enigma da Natureza ou da existência, constituindo a própria noção de Deus, e não só as religiões como defende AB, figurações ou representações desse mistério natural.

Compreende-se, no entanto, que as culturas humanas tenham criado, ao longo dos tempos, Deus(es) mitológicos, perfeitos e todo-poderosos, quer para explicar a nossa consciência inteligente do mundo (se o maior grau de inteligência que conhecemos tem forma humana, então a Natureza tem de ser obra de um ser de inspiração antropocêntrica, dotado de suprema inteligência), quer para explicar a complexidade da Natureza (a conhecida analogia do relojoeiro compara-a com a complexidade de um relógio, para concluir que não há relógio sem relojoeiro), quer ainda para sublimar os males do mundo e o absurdo da morte (os desígnios insondáveis do Senhor). Que, por outro lado, Deus seja uma entidade mítica masculina e não, como seria lógico, feminina (são as mulheres que dão à luz), é algo que radica na tradição de uma superioridade de género.

AB sustenta ainda que “no caso da fé cristã há uma realidade histórica que se chama Jesus, e o crente nesse mistério último tem razões para acreditar. Ousando confiar, dando esse passo de fé, tudo se torna mais razoável e mais iluminado.” Há quem diga mesmo que Ele (Jesus), no plano religioso, tomou o lugar do Outro (Deus), mas no plano histórico em que AB O coloca, admitindo como verdadeiras as asserções e atitudes a Ele imputadas, não há dúvida, mesmo sem dar o passo de fé, sobre a importância das Suas proclamações, nomeadamente a da igualdade de todos os seres humanos. 

Se crentes e não crentes reconhecem o grande enigma da Natureza, o consenso termina aí, já que estes últimos não acompanham aqueles no paradoxo de afirmarem certezas sobre um mistério logicamente indecifrável (pelo menos para os não crentes que não esperam uma solução da ciência ou de uma imprecisa evolução do cérebro), nem na necessidade de fundamentar num ser divino uma moral de respeito pelo próximo.

Somos nós próprios, com a nossa inteligência, intuição e imaginação, na relação com os outros e o mundo que nos cerca, a única fonte do conhecimento a que temos acesso, o qual, para ter valor universal, terá que assentar nos factos e na prova. Einstein dava muito valor ao papel da imaginação no processo de descoberta das suas teorias científicas, mas estas não foram admitidas como universalmente válidas porque foram simplesmente imaginadas, mas porque foram demonstradas pela lógica matemática e confirmadas pelo crivo da prova. Não deixa de ser curioso, aliás, que a mitologia cristã, com o episódio bíblico de “ver para crer” do apóstolo Tomé, recorra à “prova” para robustecer a fé sem ela. 

É sempre um motivo de espanto e de interrogação que se mate e se morra por um Ser que só existe na imaginação humana, mas a razão dessa “força” poderosa devemos procurá-la no natural e não no divino: é o mistério da existência e o absurdo da morte, ambos humanamente angustiantes, que explicam a tradição do sagrado.

Contra o pano de fundo do grande enigma da Natureza, e numa época de indecorosa mistificação, o conhecimento assente nos factos, na experiência e na prova, filtrado pelas mentes mais lúcidas, afirma-se, mais do que nunca, como a única verdade a que, nós humanos, temos acesso.
View My Stats