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01/11/20

O GRANDE ENIGMA

Mário Martins

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“’Quem é Deus?’ É esse mistério último, que eu não domino, mas do qual espero salvação (…) As religiões são apenas tentativas de figurar esse mistério último (…).”
Anselmo Borges 

Revista do Expresso, 15Agosto2020



Não se deve estranhar que para um crente e, por maioria de razão, para um padre e teólogo como Anselmo Borges (AB), a existência de Deus seja um dado indiscutível, mas essa fé não tem o valor universal do reconhecimento da Natureza e da sua essência misteriosa. Se descobrimos as suas leis, quer dizer, como a Natureza, tal como a percepcionamos, funciona, não sabemos a razão por que existe. O que é, assim, verdadeiro e irrefutável é o grande enigma da Natureza ou da existência, constituindo a própria noção de Deus, e não só as religiões como defende AB, figurações ou representações desse mistério natural.

Compreende-se, no entanto, que as culturas humanas tenham criado, ao longo dos tempos, Deus(es) mitológicos, perfeitos e todo-poderosos, quer para explicar a nossa consciência inteligente do mundo (se o maior grau de inteligência que conhecemos tem forma humana, então a Natureza tem de ser obra de um ser de inspiração antropocêntrica, dotado de suprema inteligência), quer para explicar a complexidade da Natureza (a conhecida analogia do relojoeiro compara-a com a complexidade de um relógio, para concluir que não há relógio sem relojoeiro), quer ainda para sublimar os males do mundo e o absurdo da morte (os desígnios insondáveis do Senhor). Que, por outro lado, Deus seja uma entidade mítica masculina e não, como seria lógico, feminina (são as mulheres que dão à luz), é algo que radica na tradição de uma superioridade de género.

AB sustenta ainda que “no caso da fé cristã há uma realidade histórica que se chama Jesus, e o crente nesse mistério último tem razões para acreditar. Ousando confiar, dando esse passo de fé, tudo se torna mais razoável e mais iluminado.” Há quem diga mesmo que Ele (Jesus), no plano religioso, tomou o lugar do Outro (Deus), mas no plano histórico em que AB O coloca, admitindo como verdadeiras as asserções e atitudes a Ele imputadas, não há dúvida, mesmo sem dar o passo de fé, sobre a importância das Suas proclamações, nomeadamente a da igualdade de todos os seres humanos. 

Se crentes e não crentes reconhecem o grande enigma da Natureza, o consenso termina aí, já que estes últimos não acompanham aqueles no paradoxo de afirmarem certezas sobre um mistério logicamente indecifrável (pelo menos para os não crentes que não esperam uma solução da ciência ou de uma imprecisa evolução do cérebro), nem na necessidade de fundamentar num ser divino uma moral de respeito pelo próximo.

Somos nós próprios, com a nossa inteligência, intuição e imaginação, na relação com os outros e o mundo que nos cerca, a única fonte do conhecimento a que temos acesso, o qual, para ter valor universal, terá que assentar nos factos e na prova. Einstein dava muito valor ao papel da imaginação no processo de descoberta das suas teorias científicas, mas estas não foram admitidas como universalmente válidas porque foram simplesmente imaginadas, mas porque foram demonstradas pela lógica matemática e confirmadas pelo crivo da prova. Não deixa de ser curioso, aliás, que a mitologia cristã, com o episódio bíblico de “ver para crer” do apóstolo Tomé, recorra à “prova” para robustecer a fé sem ela. 

É sempre um motivo de espanto e de interrogação que se mate e se morra por um Ser que só existe na imaginação humana, mas a razão dessa “força” poderosa devemos procurá-la no natural e não no divino: é o mistério da existência e o absurdo da morte, ambos humanamente angustiantes, que explicam a tradição do sagrado.

Contra o pano de fundo do grande enigma da Natureza, e numa época de indecorosa mistificação, o conhecimento assente nos factos, na experiência e na prova, filtrado pelas mentes mais lúcidas, afirma-se, mais do que nunca, como a única verdade a que, nós humanos, temos acesso.

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