StatCounter

View My Stats

01/01/13

66

ESCREVE-ME UMA CARTA

Alcino Silva

Capogiro Gelato Artisans
 

Escreve, que as tuas cartas, quando as recebo, marcam um dia feliz”(1)


Sabes que sou um viajante da vida no mar das palavras. Navego de porto em porto e de mar em mar. Em todos deixo um pouco de mim e levo comigo um pouco de alguém. Em cada um deles, deixo palavras escritas e outras faladas em noites longas, sussurradas para o sossego dos mares, na amurada de navios construídos de sonhos. De tanta viagem fiquei conhecendo todos os lugares do mundo onde existe um cais onde posso atracar a nau que me leva pelo tempo, e em cada um deles procuro à chegada o lugar onde deixam as cartas para aqueles que chegam de longas e eternas viagens. Repousado o navio na serenidade das águas costeiras, dirijo os passos para esse local onde numa caixa azul aparece inscrito, «cartas para os que chegam de longe à procura de palavras amigas». Abro a pequena porta em madeira e mais do que uma vez espreito os cantos escondidos, mas apenas encontro as cartas que a minha imaginação idealizou, porque todas as outras não existem nesse receptáculo cuja porta se encontra presa entre os meus desejos durante todo o tempo que levo a ler as cartas que o pensamento criou. De seguida, regresso, solto as amarras e retorno ao tempo das marés e da infinitude azulada, e nas noites profundas e tranquilas, acendo as estrelas e volto de novo a escrever outras cartas com as minhas palavras, as minhas estradas, os meus caminhos de montanha. Ao amanhecer solto-as nas asas das aves marinhas em direcção a terra, aos lugares da vida onde as podem ler. E na paragem seguinte, de novo procuro a caixa azul, onde encontro a resposta que o meu pensamento já escreveu. E o tempo passa, os oceanos, chegam e partem, até que esta madrugada escrevo uma renovada carta, mas só para ti, só mesmo para ti a quem aguardo em cada porto e em cada amanhecer em que o dia estende os seus braços luminosos por sobre a terra. Foste sempre testemunha de que não te pedi nada, seria incapaz de o fazer, apenas posso desejar oferecer. Bem, por vezes, o meu pensamento pede-te um sorriso, ou até um abraço, por vezes, um beijo como um gesto de ternura, mas não passam de desejos apenas imaginados como as cartas que encontro nas caixas de madeira azul que existem em cada porto perdido. É verdade que te peço muitas coisas, mas são segredos meus, a ti não posso, nem devo pedir nada, apenas a luz dos teus olhos, porque me apago quando não me olhas. Mas hoje, escrevo uma carta com um pedido. Inspirei-me de coragem para esboçar estas palavras, transformando o desejo em pedido. Prometo que só o faço uma vez, esta em que te escrevo esta carta, não o voltarei a repetir. Prometo e sabes que procurei sempre cumprir as minhas promessas e sei que esta também cumprirei. Assim, aqui estou a escrever-te, para pedir, simplesmente, que me escrevas uma carta. Não é necessário ser hoje, ou amanhã, ou mesmo para a semana. Um dia quando te apetecer ou te lembrares, escreve-me uma carta que possa encontrar nas caixas azuis que existem pelo mundo.

Escreve-me uma carta com palavras, com palavras tuas. Pode ser uma carta cheia apenas de silêncios, mas que tenha frases, pontos finais e parágrafos. Uma carta de silêncios com parágrafos. Desde que seja tua será a mais bela do mundo, mesmo composta de silêncios. Se puderes escreve em cada parágrafo os silêncios que escondes nos teus belos olhos e vejo nas noites de lua cheia. Escreve também os silêncios do pensamento e noutro parágrafo escreve ainda as palavras todas que já disseste para ti, mas não contaste a ninguém. Se puderes, envia-me também as palavras que traduzem a ternura dos teus sentimentos e guardas no interior desse tesouro que escondes na alma e só é possível adivinhar através dos raios luminosos com que banhas o mundo do alto dos faróis marinhos em que transformas a beleza desse olhar que nos ofereces na serenidade dos dias sem data. Escreve-me uma carta. Não precisa de ser hoje ou amanhã. Quando puderes ou fores capaz, mas escreve, escreve uma carta de silêncios traduzidos em palavras que se desdobrem em parágrafos e onde digas tudo que até hoje contaste só para ti. Nas tuas palavras descreve-me os navios que em ti viajam, relata-me as vidas que viveste e os mares que escondes dentro de ti. Já viajei pelos teus olhos imaginados, já naufraguei nos lagos que fizeste nascer nos meus sonhos, já abracei o mundo com a ternura dos teus braços, já inventei montanhas com a carícia dos teus sentimentos, deixa-me agora encantar com as palavras de silêncio que vais pôr na carta que te peço. Quando puderes, escreve-me uma carta de silenciosas e sagradas palavras, cheias de ti, desenhadas com a pena do teu sorriso e contando letra a letra os dias em que somas esperanças nos sonhos que faço nascer na magia infinita dos mistérios que brotam como fogueiras na lava dos teus olhos feiticeiros. Escreve-me uma carta nas tardes mansas do litoral em que sinto o baloiçar das águas do oceano como um abraço teu, desses longos e ternos que só existem num pensamento que inventei nas nuvens e só para mim, para deleite dos meus crepúsculos solitários. Escreve-me uma carta cheia das tuas amáveis e amadas palavras com caravelas, navios, mares, rios de fantasia. Escreve mistérios e noites sem dormir, madrugadas fantásticas e florestas desconhecidas. Envia-me em palavras, os segredos que contas à lua e diz-me ainda como consegues saltar os rios que dilatam de água os mares, e transferes para ti, essa cor esmeralda que navega na fantasia de todos que te olham.

Não te canso mais, mas quando puderes, escreve-me uma carta, de silêncios, muitos e profundos silêncios, mas só para mim. Com letras, palavras e parágrafos, soprados pelo vento do sonho e envia-a sem destino. Um dia, vou encontrá-la quando parar num porto qualquer, num desses lugares do mundo para onde enviam as cartas dos que chegam procurando palavras de silêncio. Quando abrir a caixa azul e encontrar a tua carta, há-de crescer em mim um sorriso e uma nova viagem haverei de levar. Por isso, te peço uma vez mais, quando puderes e te apetecer, escreve-me uma carta.

Escreve-me! Ainda que seja só

Uma palavra, uma palavra apenas,

Suave como o teu nome e casta

Como um perfume casto d’açucenas!(1)


(1) Florbela Espanca

 

MÉDIAS

Mário Martins

 

O português médio é o que está no meio dos portugueses fora da média. Em termos de rendimento, as famílias tinham, em 2009, um rendimento bruto médio anual de 18.400 euros*, ou seja, dividindo por 14 meses (em 2009 ainda se pode dividir por 14…), 1.314 euros mensaisbrutos por agregado familiar. Este cálculo tem como base o IRS declarado**, o qual, como sabemos, está longe da realidade. Basta lembrar-nos que, segundo alguns cálculos, o valor da chamada economia paralela representa cerca de 25% do PIB (Produto Interno Bruto). Com esta prevenção, quantas famílias auferiam aquele rendimento bruto médio? E quantos são e quantoganham os agregados familiares fora da média? É o que veremos nos gráficos a seguir, baseados nas estatísticas da Pordata***:

Neste gráfico vemos que do total de 4.615.388 agregados familiares apenas 672.564 auferiam um rendimento situado no escalão de 965 a 1.357 euros mensais (onde está o rendimento médio de 1.314 euros), o que significa que são menos de 672.000, representando menos de 15% do total, os agregados familiares que ganhavam o rendimento médio.

E vemos também que 56% do total de agregados auferiam menos de 965 euros, enquanto 29% auferiam um rendimento superior a 1.357 euros.

Neste gráfico vemos que o escalão de 358 a 714 euros mensais (onde se situam o valor limiar do risco de pobreza - 372 euros em 2009 - e o rendimento correspondente ao salário mínimo nacional) é, de longe, o que concentra o maior número de agregados, representando mais de um quarto do total, enquanto o escalão máximo de >17.857 euros significa mais de 32 salários mínimos e mais de 14 rendimentos médios. Deve notar-se, no entanto, que pelas novas taxas de IRS, os beneficiários deste escalão máximo pagarão ao Estado pelo menos metade do seu rendimento declarado.

De registar ainda a ascensão da classe de rendimento de 3.572-7.143 euros, com mais quase 76.000 agregados do que a classe precedente de 2.858-3.571 euros.

Para finalizar, este gráfico mostra a dinâmica da distribuição do conjunto dos agregados familiares pelas diversas classes de rendimento no decurso de 20 anos ( com a ressalva de não saber se os valores dos escalões de rendimento têm em conta o factor inflação).

Com estes dados poderemos fazer uma ideia mais concreta do que significam, no que respeita ao rendimento, expressões linguísticas como “os portugueses” ou cifras médias abstractas como “o valor do rendimento médio das famílias”.

*Valores provisórios

**Modelo 1+Modelo 2 (o que quer dizer que também se dividiu por 14 meses o rendimento declarado pelo Modelo 2)

***www.pordata.pt/Portugal

 

"AS PRENDAS"

António Mesquita

alarminglevelofcorruptioninindia1jpeg.jpg

 

"'As empresas pretendem testemunhar junto dos seus clientes e fornecedores, no sentido de agradecer-lhes, nesta época natalícia, mas também na época pascal, que não esquecem quem os ajudou a ter bons resultados', salientou Eduardo Catroga."

(do Jornal 'O Público', de 13/12/12, sobre as declaraçōes do CEO da EDP no âmbito do Processo 'Face Oculta')

 

Quanto maiores os cargos, melhores as prendas, como é lógico. Os pruridos ou a indignação de muitos portugueses que leram aquelas palavras justificam-se muito simplesmente por estarem desligados do 'contexto sociológico'.

Na sua habitual bonomia, o ex-ministro das Finanças explicou sem nenhuma espécie de desconforto ou crítica que a prática de oferecer 'prendas', pela altura do Natal ou da Páscoa, é normal nas empresas.

Essa prática está instalada e ninguém pareceu ver um problema nisso até que os escândalos em volta de 'luvas' e de outras formas decorrupção deixaram de parecer normais, pelo menos aos olhos da opinião pública.

Ora esta pequena corrupção ( é-o na maioria dos casos ) nada é comparada com o chamado 'lobbying' que, noutros países democráticos está institucionalizado, e que não está ausente do nosso, sob a forma dos diversos grupos de pressão, do mundo empresarial e por parte de alguns sindicatos ( mais monopolistas do que corporatistas ).

Pode dizer-se que o fim procurado pelo lobista ( através da corrupção pura e simples em muitos casos ) pelo distribuidor de 'prendas' do género de Manuel Godinho, ou o daqueles grupos de pressão é o mesmo: tirar partido do seu dinheiro ou do seu poder para torcerem as regras em seu favor, assim impedindo que a democracia seja menos injusta e menos desigualitária.

O fenómeno de que Eduardo Catorga é o pretexto para esta elucubração é conhecido de toda a gente e aprovado pelo silêncio e pelos 'bons costumes'.

Mas que se levante o 'moralista' a quem não se possam 'atirarpedras'. Já dizia Proudhon que o pensamento do homem bem colocado é o seu rendimento. É por ser a corrupção uma doença entranhada que as mais absurdas hipóteses e as mais soezes perseguições encontram cabimento e fácil credulidade.

 

O TONECO

Mário Faria
http://mixdoce.blog.com/2011/08/06/velhice/



Quarta-feira, dia de visita obrigatória à minha Mãe no Lar. Nesse dia, não a encontrei no local do costume. Informaram-me que muito provavelmente estaria em tratamento na Fisioterapia. Fui lá: estava pronta para sair e vinha a mancar. Perguntei-lhe se estava magoada e respondeu-me que tinha uma unha do pé encravada que lhe provocava dores que, na exposição pormenorizada da maleita, variavam entre : fortes, fantásticas e medonhas. Já tinha ido ao médico e a enfermeira feito o curativo : ficou com o dedo entrapado e andava com um chinelo aberto.Estava mais serena, mas ainda preocupada, pois as dores não tinham abrandado quanto quereria. Já não eram fantásticas, nem medonhas, mas eram ainda um bocadinho fortes.

Fomos para a sala de estar. Conversávamos sobre o Natal, quando se junta a nós um dos utentes, cuja presença era regular naquele espaço e que costumava cumprimentar-me com cordialidade. Apresentou-se : Sou o Toneco : ando entupido e preciso de desabafar. Contou-me uma longa história e prometeu que, em tempo oportuno, me daria alguns conselhos e deixaria alguns avisos para que a vida da minha Mãe na instituição fosse satisfatória. Era um veterano : já la estava há uma dúzia de anos.

Contou-me, com as lágrimas nos olhos, que a mãe morreu em casa após o parto, que a vizinha que a assistia não conseguiu valer-lhe e que o pai trabalhava no campo aquando da ocorrência. Tinha quatro irmãos, todos mais velhos. Os três rapazes foram para o amo : o patrão lavrador, lá do sítio, que lhes deu guarida, pão e trabalho. Dormiam no estábulo, almoçavam no campo e jantavam nos fundos da cozinha com o resto do pessoal. Ao domingo de tarde, eram autorizados a visitar o pai e os irmãos. O Toninho e a irmã estavam com o pai, mas era a vizinha que tratava deles. Assim viveram até o pai se ter casado novamente, com uma viúva, também ela com cinco filhos. Proprietária rural e com bens, a vida deve ter melhorado : não se queixou da madrasta, reconheceu os filhas dela como irmãos pelo que conclui que a integração na nova família foi feita sem dor, apesar de ter sido acrescida com mais três membros. Eram treze irmãos ao todo, como referiu.

A minha Mãe, entretanto, mostrava-se impaciente. A atenção que prestava ao Toneco diminuiu a atenção que lhe costumo prestar. Além do mais, era hora do lanche como se adivinhava pela crescente impaciência que o rosto marcava. Interrompeu a conversa e perguntou-me : “Não queres comer nada? Não tens de ir embora ?.
-“Vamos , respondi, sem querer que o Toneco interrompesse o seu desabafo.
O Toneco compreendeu, provavelmente, a mensagem subliminar que a minha Mãe lhe tinha endereçado. Por isso, saltou no tempo e contou mais rapidamente o que faltava narrar. Retomou a palavra, mais calmo e menos comovido.

Um dia cheguei a casa, virei-me para o meu pai e para a minha madrasta e disse : a partir deste momento vou deixar de ser o Toninho e vou passar a ser o Toneco. Vou sair de casa : arranjei um bom lugar na “BR e vou casar. E, assim foi. Fez carreira na empresa, e não explicou porque (e quando) emigrou para a Alemanha. Lá trabalhou numa fábrica de artigos electro-domésticos. Deu para amealhar e regressar com um bom pecúlio.

Esperava viver a velhice de forma calma e sem sobressaltos. Não teve filhos, mas tinha uma família comprida. Um brutal acidente, deixou-o às portas da morta a ele e à mulher. Safou-se, mas ficou bastante debilitado. A mulher ficou paraplégica e morreu poucos anos depois. Só e empurrado pelos familiares, resolveu ir para o Lar. E em boa hora o fiz. Foi aqui que conheci a minha actual companheira. Apaixonámo-nos e decidimos juntar os trapinhos. Falei com o presidente que nos arranjou um bom quarto na instituição e a preço módico : a soma do que individualmente pagávamos”.

Deu um novo salto e, de forma revoltada, continuou:”Os filhos da minha companheira detestavam-me. Diziam que era um gabiru e que me estava a servir dela e só queria o seu dinheiro, Usaram todos os meios de pressão – tiraram todos os bens materiais que a minha companheira dispunha e, depois, todos os apoios que lhe concediam como contrapartida da doação desses bens – para a obrigar a sair do Lar e a ter de aceitar viver com o filho mais novo. Um ultimato infame que esses filhos da p*** nos fizeram e a que tivemos de nos submeter, por mútuo acordo”.

A companheira do Toneco, sentada um pouco atrás, ia sorrindo de forma benevolente. Levantou-se e veio buscá-lo. Despediram-se de mim e desejaram-me bom Natal. Encaminharam-se para a saída vagarosamente, o Toneco voltou-se e disse : Gostei muita desta conversa. Havemos de repetir”.

A minha Mãe suspirou de alívio. O lanche estava mais perto, finalmente. Fomos para o Bar a que não falta freguesia. Como tinha falado pouco comigo, pôs a conversa em dia. Repetiu as queixas das dores (fortes, fantásticas e medonhas) de forma ainda mais minuciosa a que juntou a crónica sobreos imensos defeitos da companheira do quarto (da “casa” como muitas utentes costumam dizer).Tosse, tosse, tosse, mas é tudo mentira. Ela não tosse, ronca, para não me deixar dormir. Faz de propósito. Bandida! referia revoltada a minha Mãe.Os próximos capítulos não prometem nada de bom. Na minha cabeça, ecoavam as palavras do enfermeiro chefe do Lar :Com os homens muito raramente há desentendimentos, com as mulheres são problemas e mais problemas”.

A hora da visita chegava ao fim. Despedi-me e na porta da entrada do Lar, estava o Toneco com a companheira, muito juntinhos e a falarem em surdina. Apesar de separados, continuam muito próximos. Todos os dias o Toneco recebe a visita da companheira, ambos alheios à má língua de que não conseguem livrar-se. O amor, a solidariedade, aamizade e a partilha convivem com o conflito, a rivalidade, a inveja e a posse. Os velhinhos não são excepção. Os poderzinhos que informalmente se constituem entre os companheiros e a relação que conseguem estabelecer com o sistema não é despicienda para a afirmação do seu bem estar. E lutam enquanto podem, com todas as forças que têm.
View My Stats