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01/02/18

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A ZONA

Mário Martins

http://www.elsinore.pt/livros/vozes-de-chernobyl




“Isso não é mecânica nem física, é metafísica.
Comentário de um relojoeiro que não conseguiu reparar um relógio exposto a radiação.


“Vozes de Chernobyl”, é um livro que dói. Os testemunhos de sobreviventes do desastre nuclear são pungentes. “Temos uma nova nacionalidade, já não somos ucranianos ou bielorrussos, somos chernobilyanos”. Mas, para lá do sofrimento das mortes por radiação e das deformações e cancros chernobilyanos”, o sentimento generalizado que paira nos dias e meses a seguir àquela data fatídica de 26 de Abril de 1986, em que uma série de explosões destruiu o reactor nr. 4 e o edifício que o albergava, na Central Nuclear de Chernobyl, situada na então República Socialista Soviética da Ucrânia, é um misto de incredulidade e incompreensão. Apesar dos avisos e protestos sobre a gravidade da situação do Director do Instituto de Energia Nuclear da Academia das Ciências da Bielorrússia, o governo central, como é típico, para evitar o pânico”, procurou ocultar e menorizar aquele que viria a ser classificado como o maior acidente nuclear no mundo até então*, mas demorou menos de uma semana para que Chernobyl se tornasse um problema do mundo inteiro, devido à radiação espalhada. Esta não é visível e não tem cheiro nem som, como fazer compreender aos habitantes da “zona de exclusão de Chernobyl”, um raio de 30 quilómetros em redor da central, a necessidade da sua evacuação e de enterrar tudo? Como compreender que não podiam comer os frutos das árvores, os produtos da horta, os animais da capoeira, ou que não podiam tomar banho no rio, quando tudo estava “igual”? Para a história fica o heroísmo e, para muitos deles, o sacrifício, de centenas de milhar de “liquidadores”, mobilizados ou que se voluntariaram para taparem precariamente o reactor antes de, meses depois, se construir o Abrigo ou Sarcófago**, de chumbo e cimento armado, que alberga nas suas entranhas cerca de 200 toneladas de material nuclear. Os radionuclídeos entretanto espalhados durarão milhares de anos. Nas palavras daquele físico bielorrusso “O homem inventou tecnologias para as quais ainda não está preparado. Não estão ao seu nível. Poderemos pôr uma pistola nas mãos de uma criança? Somos crianças loucas.”. Por ironia, a Bielorrússia, que não tinha uma única central nuclear, mas cuja fronteira fica a uns escassos 16 quilómetros de Chernobyl, foi duramente atingida pela radiação. E Espanha aqui tão perto…



*Foi classificado com o grau máximo de gravidade – grau 7 -, tal como viria a ser o de Fukushima, no Japão, em 2011.

**Estava prevista para o final de 2017, a conclusão da substituição do sarcófago, já com graves fissuras, por um gigantesco Arco de aço, em princípio mais seguro e durável.

AS MONTANHAS

António Mesquita

(Monte Parnaso)



"Não podia pensar nos Gregos sem ver montanhas diante de mim e, bizarramente, essas montanhas pareciam-se muito com aquelas com que quotidianamente me deparava. Tinham o aspecto de mais ou menos afastadas, segundo as condições atmosféricas; regozijávamo-nos quando eram mais visíveis, eram faladas e cantadas e objecto dum verdadeiro culto."

"La Langue sauvée" (Elias Canetti)

Goethe gostava de contemplar a reprodução duma bela obra de arte para apagar a impressão dum encontro fastidioso, como os a que a sua profissão de conselheiro áulico constantemente o obrigava.

Porque o espírito em cada um, o seu eu mais íntimo, não são imunes à fealdade, à influência corrosiva do que se aproxima de nós ou nos cerca como um ambiente. Por isso são tão importantes as imagens e os símbolos que nos ajudam a atravessar os círculos da vida como se o próprio Virgílio nos conduzisse.

O jovem Canetti teve a sorte de não ter de sustentar o espírito da Grécia à força de concentração mental, porque tinha diante de si o espectáculo inspirador das montanhas da Suíça. A realidade dava, assim, lugar ao símbolo com toda a naturalidade.

MÁSCARAS E UMA RECEITA

Manuel Joaquim

http://www.portugalnummapa.com/caretos/#prettyPhoto

António Pinelo Tiza, no seu livro A Magia das Máscaras Portuguesas, retrata a história do Carnaval, o  seu significado, as personagens, os rituais e o simbolismo dos mascarados. 

As máscaras, contrariamente ao que muita gente pensa, não aparecem só em Trás-os-Montes. Aparecem no Entrudo das Aldeias de Xisto de Góis, em Coimbra, nos Caretos de Lagoa, em Mira, nos Cardadores de Vale de Ílhavo, Aveiro, e nas festas de verão, as Bugiadas de Sobrado, em Valongo. Mas é sobretudo nas aldeias do nordeste transmontano que a tradição das máscaras se mantém. Tem contribuído para o desenvolvimento de artesanato local e para o aparecimento de verdadeiras peças artísticas. Em Trás-os-Montes, o porco foi sempre o rei da mesa. Mas cada época tem as suas comidas. No Domingo Gordo, come-se o pé e a orelha salgados na salgadeira. No dia do Entrudo come-se butelo com as casulas.


No próximo fim de semana, em Bragança, quase todos os restaurantes, vão participar no Festival do Butelo e das Casulas. Muita gente nunca ouviu falar nesta comida.


O livro “Memórias da Cozinha Transmontana” de Adozinda Marcelino e Acúrcio Martins,  descreve o que é o Butelo:
“ (…) Enchido de ossos das pontas das costelas e do rabo do porco. Estes eram sempre os últimos dos de carne a serem enchidos. Cada porco dava dois ou três butelos em função dos tamanhos. 

As costelas mindinhas, o rabo e um ou outro pedaço de carne que sobejou de salpicões e linguiças, depois de passarem pelo adobe aqueles três ou quatro dias necessários ao tempero, serão enchidos nas tripas mais grossas do porco.

Proceda da mesma forma utilizada para os salpicões: retire as carnes do adobe, coloque-as num alguidar e tempere de pimento (colorau) Encha nas tripas mencionadas e ate muito bem. O atar os butelos é algo de especial! Visto tratar-se de peças grandes e pesadas é necessário reforçar a atadura para não caírem. Com uma navalha aguce um s’taraco de esteva da grandura e maneira de um palito. Depois de atada a “boca”, espete o s’taraco atravessado na boca do butelo e ate bem com o fio. Ponha no fumeiro, na ponta daquelas varas onde apanhem mais calor.”  

E descreve o que são as Casulas:

“Vagens de feijão verde, seco ao sol. Nem todo o feijão verde se presta para secar para casulas, pois existem variedades mais indicadas que outras para este fim. Por estas bandas as mais usadas eram as sapinhas sendo mais tenras, amanteigadas e tendo menos “fios”.”

Aqui vai a receita do livro:

“BUTELO DO DIA DE ENTRUDO

Demolhe as casulas de um dia para o outro. Lave o butelo para o libertar do cheiro característico a fumo. Demolhe o e a orelha de porco, lave de seguida. Numa panela com água coza o butelo, as casulas, o pé e a orelha.

A meio da cozedura junte umas quantas batatas descascadas cortadas a meio e duas cebolas descascadas e cortadas em quatro.

Deixe acabar de cozer, verifique o sal e sirva em travessa colocando as casulas, batata e cebola em primeiro lugar, dispondo o butelo, orelha e pé por cima. Tempere as casulas, batatas e cebola com um bom Azeite.

Quem ceia em vinhas almoça em fontes.

Bom apetite!






                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




São inúmeros os personagens que achamos ao longo do tempo. Uns encontramo-los no correr dos dias, outros, chegam-nos através dos livros. Muitas das vezes, chegamos a conhecer melhor os que nos vêm pelos livros daqueles que nos trazem a vida. Há dias, ao percorrer os livros, encontrei não as personagens das histórias que contam, mas a dos autores. Freitas do Amaral foi um discípulo do último ditador. Surpreendido pela revolução e vendo o seu futuro interrompido, apressou-se a criar o Centro Social, o Partido onde se aninhariam desde logo, os extremos apeados do poder autoritário e violento que acabara de tombar. Fiel a si próprio votou contra a Constituição por ser demasiado socializante, quer dizer, por pretender repartir demasiado a riqueza. Nunca se retratou. Mas o homem evoluiu com a idade e chegou a ser ministro de um governo do Partido Socialista, talvez por este não ser socializante. Vá-se lá saber por quê um dia apareceu a presidir à Assembleia Geral da ONU e agora que a velhice o acolheu, tal como o seu mestre, dedicou-se à História e a escrever livros sobre ela e, para não fazer a coisa por menos, atirou-se a dois mil anos de história, Da Lusitânia a Portugal, da Bertrand. Ao que consta, terá dito que o seu intuito foi fazer uma História de Portugal, expurgada da visão marxista. Pois, compreendo, foram sempre uns grandes malandros, os marxistas e, certamente, nunca lhes perdoará, o contributo que tiveram para o ruir da ditadura, onde tantos sonhos seus navegavam. Não foi necessário afastar-me para longe, pois logo encontrei um tal Manuel S. Fonseca, editor do Expresso. Nos cem anos da Revolução Russa, foi à procura dos crimes dos bolcheviques, ou seja, os marxistas do Professor, e lá deu à luz a “Revolução de Outubro, cronologia, utopia e crime, da Guerra e Paz, Desde logo nos apimenta o molho, “A Revolução dia a dia, do enforcamento do irmão de Lenine à morte e entrada de Lenine no mausoléu”. É uma orgia de sangue talvez inspirada no canal televisivo do Correio da Manhã. Quando pensava que já tinha descido aos infernos, aparece-me um tal Alberto Gonçalves, um rapaz que escreve crónicas no Observador com a sua A Ameaça Vermelha, a calamidade política que atingiu Portugal e que muitos teimam em ignorar, da Bertrand. É sobretudo uma obra de quem tem todas as certezas, expressas na resposta à sua própria pergunta, “Portugal está melhor em meados de 2017 do que estava no final de 2015? E eis a resposta, não”. Fiquei a pensar que talvez fosse melhor ler o outro livro das suas obras completas, “Ninguém diga que está bem”. Claro que estou a ser injusto, pois não li qualquer um destes tratados literários, mas acredito que, pelo menos, sejam melhores do que os romances históricos da Isabel Stilwell. Há dias em que os nossos olhos se atormentam. Não há muito, tropecei com uma Avenida Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva em Gondomar, via larga, duas faixas de rodagem, separador central, árvores na infância a desenharem um futuro robusto. Certamente terá sido um gesto de apreço, desse Valentim, democrata eminente, de valores inclassificáveis pelo comum dos mortais, cujo estrutura moral, só pode ombrear com os maiores. Até me vieram as lágrimas aos olhos ao pensar na justiça de homenagear em vida tão ilustre personagem, a sua grandeza como homem das artes, um insigne no mundo da cultura, de um dimensionamento cultural incomparável, de uma sabedoria que se estende pela sociedade como um rio em tempo de cheia, criatura de verbo fácil, inteligência muito para além da sua época. Só posso acreditar que a seu tempo, quando for chamado para ombrear entre os deuses mais divinos, outra homenagem lhe será prestada e imagino até, um cortejo majestoso caminhando em passo marcial, rodeado de crentes que encherão a negrura da noite com a luz de milhares de círios e descansará então na eternidade do tempo, no panteão dos deuses, onde entrará pela alameda dos leões de pés para a frente, as mãos como símbolo de coroação sobre o peito, em repouso e a cabeça ligeiramente erguida. Será então o momento de gáudio e a justa prece do país em sua honra, esta escultura da sabedoria já não se contentará com uma simples avenida, por grande que seja, mas antes o país a mudar de nome, a pátria dos descobridores e dos marinheiros infinitos, adoptará para todo o sempre, o nome de Cavaquistão, pois só assim, os deuses se aquietarão face à injustiça.

    

Gosto deste lugar onde repousas. Sente-se uma melancolia primaveril em redor. Não vejo o rio, mas escuto o seu murmurar perante a proximidade do oceano. O ruído dos comboios, que vejo quando atravessam a ponte, chega como um som sonolento, produzido pelas rodas sobre os carris. Estas árvores centenárias de copa alta e cujas folhas estremecem ligeiramente com a brisa, cobrem-nos, mostrando-nos o céu retalhado de geometria azul. É bom ficar por aqui, conversando, neste diálogo que há tanto tempo nos une, entre a lembrança do passado e as contradições do presente. Lembro aquela quase última Primavera, na qual tudo parecia acontecer. O fim estava próximo, Cristina, mas nós ainda não sabíamos. Os dias pareciam iguais, mas eram sempre diferentes e os nossos sorrisos escondiam quase sempre a gravidade do que vivíamos. De dia, era o trabalho, que a falta de descanso, quantas vezes, tornava pesado. Ao fim da tarde, quando por fim regressava a casa, naquela longa caminhada, percorria sempre aquela rua, que nos dias de hoje aparece quase inalterada. As casas baixas, os sons da tarde, diluídos pelo crepúsculo que já se pressentia e a vivacidade dos pássaros cujo canto nos chegava com afectuosidade. Era o trajecto mais longo, mas reservava-me sempre uma surpresa. Pressentia-a quando ainda não era visível, aquela menina de extensos cabelos e olhar profundo. Sim, era uma menina, porque éramos todos uns meninos que a vida obrigava a ser grandes. Eram só trinta segundos de um prazer inesquecível que ainda hoje emerge no pensamento como se acontecesse na véspera. Olvidava tudo, naqueles instantes, até aquele combate desigual que diariamente travávamos. Éramos tão poucos e parecíamos muitos, excedíamo-nos e havia instantes que acreditávamos ser imortais, invencíveis no combate pelo pensamento, a liberdade e a justiça. Em certos dias, já levava comigo um telefonema ou um recado do Serra e sabia que a noite seria longa, mas quando aquela princesa se aproximava, tudo se apagava, uma outra luz se acendia e enquanto nos cruzávamos, só o nosso olhar falava e sentia a música ululante da Carmina Burana, enlear-me o corpo. Eram olhares que se prendiam e, à noite, quando as trevas do medo nos rondavam, quando, protegidos nas sombras, espalhávamos a verdade em mensagens de fino papel, procurava refúgio na ternura daquele olhar que o fim da tarde me trazia, e baixinho, muito baixinho, soletrava as palavras do poeta, «só te peço que não pares, que cantes, grites e chores, que sejas uma espiral e que a tua voz ecoe calma terna e concisa, no meio desta cidade». Tínhamos de viver acompanhados de alguma fantasia, caso contrário, não sobreviríamos. Aqueles cem metros de rua, eram então, a alegria que vencia o medo, desde que o nosso olhar se prendia, antes de nos cruzarmos, até depois, quando olhávamos ao mesmo tempo para trás, procurando trazer de volta o olhar que cada um deixara ir. Nesse tempo, ainda não sabia que viria a morrer de solidão. Sim, Cristina, a ditadura tornava-nos solidários e a democracia fez de nós solitários, senhores de um eu profundo que rejeita o nós, e faz de cada um deus supremo no interior do seu grande ego, sabedores de tudo, e, quantas vezes, intolerantes, aos argumentos dos outros. Mas hoje, lembro esses tempos, com carinho, com a ternura que vivíamos em contraponto à violência com que nos cercavam. Já é tarde para quase tudo, mas não deixamos o passado, que chega melancolicamente, morrer sem o recordarmos, como merece. Talvez funcione como consolo, neste anonimato em que sempre vivemos, mas também como vida, sentida com intensidade, com alegria, com a certeza de que tínhamos razão e em nós pulsava o devir, o futuro de um tempo melhor e, nesse conforto, vive também e ainda, os negros olhos daquela menina que ajudavam a vencer o medo.  

  
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