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01/03/12

,,,E NÃO PODEM SER DESACTIVADOS?

Mário Faria

Mercado Ferreira Borges (1976)


Tinha conseguido um receita de Ben-u-ron para a minha Mãe (tem 92 anos) e tive que ir à Farmácia para o comprar. Já anoitecia e as milícias preparavam-se para montar o posto de controlo. O movimento era diminuto, os carros passavam a alta velocidade e não respeitavam a sinalização. Estava frio, um vento cortante de leste fazia estremecer o corpo e a alma. Como sempre, saí armado: a pistola, bem “colada”  ao corpo, transmitia-me uma (falsa) segurança de que não prescindia. Chegado à farmácia, encontrei-a fechada, como habitualmente. Bati, espreitaram pelo visor. Miraram-me minuciosamente. Coloquei o BI no receptáculo que se abriu para o receber e prontamente o recolheram para verificar a sua legalidade. Depois de confirmada a sua validade, abriram novamente o receptáculo: devolveram-me o BI e introduzi a receita médica. Esperei largos minutos. Pelo comunicador informaram-me que tinha de pagar 500$00 por apenas duas pastilhas. O racionamento não permitia vender maior porção. Depois desta despesa, pouco sobrava para as restantes compras do mês. Não tinha alternativa: àquela hora seria extremamente perigoso tentar recorrer ao mercado paralelo, onde poderia obter o produto ou outro analgésico, mais pílulas e, com sorte, a preço mais conveniente. Enviei o dinheiro pelo receptáculo e só depois recebi o medicamento que vinha embrulhado num papel amarrotado que terá tido outras serventias, muito provavelmente. Toda a operação foi feita com a máxima cautela, pois morria-se e matava-se por um naco de pão, uma cerveja ou uma qualquer droga que servisse para mitigar a dor. Tinha que me apressar. O recolher obrigatório era às 22 horas e a partir dessa hora a iluminação púbica era desligada e, apenas nos múltiplos controlos pela cidade, havia alguns holofotes iluminados, através de motores recuperados do tempo da guerra colonial. Passei pelo controlo, depois de me ter identificado e fui falar com o chefe das milícias (antigo mercenário com um curriculum excepcional) que andava num blindado a fazer ronda por toda a zona sujeita à sua intervenção (toda a área que compunha a antiga freguesia de Paranhos) vestido a rigor, num camuflado impecável, botas reluzentes e com as insígnias de general.  Falámos da situação e pedi-lhe contactos,  pois precisava de uma série de  produtos que só conseguiria arranjar no mercado negro ou no mercado de trocas,  a funcionar no antigo Ferreira Borges. O homem comandava tudo, e disso bom proveito tirava. É um tirano com aspecto prazenteiro, e a população que controla obedece-lhe cegamente. O Governo central é fraco. Portugal vive numa indefinição que se perpetua depois da saída, primeiro do Euro e depois da UE. Os ricos fugiram, os que puderam debandaram, a Europa ostracizou-nos e vivemos isolados, nesta ilha em que Portugal se transformou. O país “regionalizou-se” e nas regiões, que foram sendo formadas segundo as relações de força que se iam constituindo, mandam os comandantes militares ou das milícias. O povo age de forma resignada. A sobrevivência é quem mais ordena. A economia segue o mesmo rumo: há um tímido regresso à agricultura e às pescas, enquanto se tenta reanimar as estruturas industriais existentes para as fazer funcionar e ocorrer à satisfação das necessidades básicas. O comércio reanima-se, apesar do mercado negro, e as nossas relações exteriores estão praticamente reduzidas aos países de língua portuguesa, a alguns poucos da América do Sul e, de forma privilegiada, com a China que nos apoia e vota contra todas as decisões do Conselho de Segurança  da ONU que visem o bloqueio do país ou uma intervenção militar da Nato. O Governo é curto, escolhido pelo Conselho Superior dos Comandantes Militares, e cabe-lhe cumprir, basicamente,  todos os actos de representação do País e do Estado. Regressei a casa. A TV funciona durante 4 horas e os conteúdos resumem-se aos enlatados que passam o crivo da censura. Fui-me deitar à luz da vela. Tenho saudades dos filhos e dos netos de quem não tenho notícias há algumas semanas. Adormeci a pensar na estratégia para obter alguns alimentos, para os quais já não dispunha de senhas para os adquirir. Um estranho estrondo acordou-me, vindo não sei de onde. Pensei que era um ataque do gang da Pasteleira, muito temido pela violência e temeridade nos ataques que ousam cometer sobre os cidadãos e as próprias milícias, a estes em sinal de represália pelas usuais sevícias que praticam sobre os que caem na situação de prisioneiros. Levantei-me. O dia raiava. Espreitei e nada detectei de estranho. As pessoas moviam-se serenamente. Parecia um dia, como antigamente. Só alguns minutos depois, conclui que tinha acabado de sair de mais um pesadelo, o que ultimamente tem acontecido com frequência. A minha mulher já se tinha levantado e tomava o pequeno almoço. Mais um dia normal. Banhei-me, vesti-me, e telefonei de imediato aos meus filhos para confirmar que estava tudo bem. Tudo OK. Fiquei mais sossegado. Desci ao café e encontrei as pessoas de sempre, discutindo o tema dominante do momento, o SLB/FCP, tendo como som de fundo o “ai se eu te pego” que um canal cabo transmitia. As notícias eram boas: Portugal sai aprovado pela troika, o Governo garante que o programa de ajuda evita a austeridade selvagem e o Moedas afirma que, dentro de dois anos, o país estará em condições de produzir e criar riqueza, pois as novas estruturas, que a austeridade vai parindo, estarão preparadas para romper com esta imobilidade secular e a nossa falta de competitividade endémica.

Bandidos ! E não podem ser desactivados?

HUGO

António Mesquita
"Viagem à Lua" (George Méliès)


Este filme mais do que uma homenagem a um dos pioneiros do cinema, George Méliès, é-o à memória daquilo que faz uma civilização. E foi escolhida para isso uma bela história em que um rapazinho procura a chave para uma mensagem deixada pelo pai desaparecido.

O autómato que Hugo esconde na  torre do relógio que passou a ser encargo seu desde o abandono dum tio bêbedo, estava a ser consertado pelo pai que lhe queria arrancar o segredo. Ora essa máquina era, ao mesmo tempo, obra do velho Méliès que a julgava  perdida, e o símbolo do próprio cineasta. O grande sucesso de Méliès foi interrompido pela 1ª. Guerra Mundial e, a partir daí, o seu cinema deixou de ser popular.

Ele foi esquecido, a  obra perdeu-se na sua maior parte e o seu entusiasmo deu lugar à decepção e ao ressentimento. Considerava-se, como o seu autómato, um boneco partido.

O facto de se "fazer justiça", pondo o autómato a desenhar a "Viagem à Lua" e recuperando algumas dezenas dos seus "sketches", levando à consciência do próprio Méliès o seu lugar na história do cinema, torna-se "a mensagem" do pai de Hugo.

Mas percebemos que a alegria do criador, em Méliès, pelo reconhecimento, agora duma minoria culta, não deixa se ser ambígua. Porque os seus filmes, ingénuos na sua "féerie", são ininteligíveis e chocam o gosto moderno ( que "os efeitos especiais" e tantas outras coisas adulteraram). E, assim, de certo modo, a "chave" para o autómato perdeu-se para sempre.

A memória é essencial, mas até certo ponto é irrecuperável. O futuro "canibaliza" o passado ( ou invade-o como uma potência  colonizadora).

Méliès está em todas as histórias do cinema, mas o seu público é uma "camada arqueológica" do público de hoje.

Scorcese, que se envolveu tão profundamente na conservação e no restauro dos filmes mais antigos, viu esta "passagem do tempo" com os olhos do amor.

Honra lhe seja.


Início

 

A LUZ DE DEUS

Alcino Silva

http://stitchintimesaves9.wordpress.com/


“quem entra em Santa Sofia tem a vista imediatamente atraída pela cúpula, imagem da esfera celeste. A sensação mistura o esmagamento que decorre da finitude humana e a elevação progressiva do olhar e da alma para o Reino de Deus. Além disso, a iluminação vem do alto (…). Vinda do cimo, a claridade é ao mesmo tempo um símbolo da luz celeste e um convite a olhar o Céu.”1

Ao longo da vida alimentamos fascínios e percorremos caminhos viajantes ao seu encontro ou na sua procura. Nunca os encontramos de todo, é certo, mas vamos erguendo construções em torno da sua demanda. Debruçamo-nos sobre a ética, ou sobre os valores, ou ainda na defesa dos princípios que delimitam as avenidas da nossa vivência social, ou mesmo dos sentimentos através dos quais se manifestam os nossos gestos. Quantas vezes, estremecemos face ao fascínio da beleza, mesmo quando esta se revela nas expressões monumentais que a humanidade erige. Nalgumas destas, espreitam, a mitologia, o sentido da vida, noutras, o sagrado e noutras ainda o profano. Por mim, procuro o Deus que os crentes ainda não encontraram. Dizem escutá-lo, crêem até ler as suas palavras, em desenhos concebem o seu rosto, veneram-no como se o vissem, mas na verdade, não o topam. A mim, Georges Duby ensinou que “Deus é luz”2 e desde então habituei-me a procurar o silêncio no interior das grandes catedrais. Entro, deixo o olhar aventurar-se em longos passeios pelas paredes, pela abside, pela cúpula, pelos vitrais e vivo essa solidão no meio dos crentes e deparo com essa luz que descreveu o eminente historiador francês. Entra a jorros pelas cores harmoniosas que vivem no interior desses vitrais esplendorosos e visita-me nessa ternura do pensamento, da razão, da verdade reflectida. Serve de correio entre o que eu penso e o que a humanidade acumulou em sabedoria e a troca que gera mais saber, provém dessa luz que chega ao interior dessas catedrais, onde repouso em reflexão, enquanto os crentes se mortificam, rezando. Sim, é assim mesmo, os crentes rezam e eu penso. Rezam pelos pecados que cometeram perante o Deus que acreditam e não encontram, castigam-se a si próprios, esbanjam-se em promessas que não cumprem e ajoelham-se prosternados. Por mim, dialogo com o Deus que eles não encontram e que acredito não existir mas que sempre me acha. Que estranha incompatibilidade esta de encontrar o que sei não existir e de eles não conseguirem alcançar em quem tanto acreditam. Interrogo-me nesse diálogo com a luz, essa luz de Deus e regresso às palavras do historiador, «Deus é luz (…). Luz absoluta. Deus está mais ou menos velado em cada criatura, consoante ela é mais ou menos refractária à sua iluminação; mas cada criatura o desvenda à sua medida, pois liberta diante, de quem a observar com amor, a parte da luz que tem em si.”2 Compreendo melhor agora, cada um desvenda à sua medida e liberta a parte da luz que tem em si. Sentado, na imponência interior daquela casa dedicada ao Deus dos crentes, observo-os de novo e percebo que não podem libertar o que não trazem, o seu pensamento escurece perante o Deus que imaginam, os olha, mas na verdade não os vê pelo simples facto de não existir, mas existe na luz que entra em roldões de claridade e penetra naqueles que o aguardam no interior da nave, os que vêem mas não rezam. Não os compreendo, oram afanosa e seriamente, concentrados, rostos martirizados dirigidos a um altar, ao seu Deus crendo que se guarda no interior de um sacrário e a luz penetra em luminosidade de intensas cores pelos amplos e límpidos vitrais e procura-me sem cansaço, sem sacrifício e conversamos na serenidade intemporal do prazer de estar e pensar. A mim, não autorizam a proximidade do altar, o qual reservam para si, para as empenhadas súplicas que lhe dedicam em cerimónia colectiva ou em sacrifício pessoal. Mas concedem-me o espaço da abóbada ou das modelares janelas vitralinas, nas quais o arco-íris se representa de figuras entre a mitologia e a santificação. “Deus é um estremecimento das águas, um corpo que irrompe”3, mas os crentes não sabem, nem reparam. Fixos num lugar escurecido não vêem a luz nem as palavras que lhes dizem que “Deus borbulha, primitivo, incandescente, um nome desconhecido, mais semelhante a um sopro pela imprecisão das gramáticas, um fulgor ilimitado”3. Mas os crentes insistem em não ver o que encontro eu sem martírios, a luz de Deus, daí que tantas vezes não consigam distinguir o céu da terra, o mar da praia, o finito do infinito, nem conseguem mergulhar no sonho da humanidade. Os seus olhos permanecem presos no altar e o pensamento ocupa-se da oração memorizada, soletrada, cantada até, mas não conseguem erguer os olhos à procura da luz, razão pela qual, não sabem como distinguir o dia da noite, esquecendo até a história rabínica que dizia, “Quando, a meio de uma estrada, olhares um rosto, um rosto qualquer, e o amares tanto como o rosto do pai, da amada, do amigo mais querido, a noite acabou e o dia começou”3. É por esta e outras razões que me sento nas catedrais e deixo que o olhar e o pensamento me escapem à procura da luz que vem do Deus, que os crentes não encontram, fixos que estão, na sua procura no fundo de um lugar escuro e denso onde nunca o acharão.


1 – “A Idade Média no Oriente”, Alain Ducellier, Michel Kaplan, Bernardette Martin, Publicações D. Quixote, Lisboa, Março de 1994.
2 – “O Tempo das Catedrais”, Georges Duby, Editorial Estampa, Lisboa, 1979
3 – José Tolentino de Mendonça, Jornal de Letras, nº 1076, de 28 de Dezembro de 2011 a 10 de Janeiro de 2012.

MUROS RELIGIOSOS (9) O TAUISMO

Mário Martins

Yin - Yang (Wikipédia)


“O tauismo não é conhecido”

Marcel Granet (1921)



“(…) O tauismo é uma religião de mistérios. Estamos diante de uma religião popular (…). Difundido universalmente na China, o tauismo continua a ser difícil de conhecer. Para os não-chineses, esta dificuldade é multiplicada pela inacessibilidade, tanto hoje como em tempos passados, da China profunda, e talvez ainda mais pela dificuldade que nós, homens e mulheres da ‘religião do Livro’ (…), temos em apreender o que tão pouco se adequa às nossas ideias sobre o que é uma religião”.

“Ninguém se torna tauista - é tauista, às vezes sem dar por isso. A religião (…) não se tornou na China uma função diferenciada da actividade social (…)”.

Kristofer Shipper (1993)



Se, como vimos, o Hinduísmo contrasta fortemente com as religiões do Livro e o Budismo nos desarma com a sua indiferença metafísica, o Tauismo aprofunda a estranheza de quem está habituado a certezas teológicas positivas.

O tauismo, que sempre viveu à margem do Estado, quer no seio da legalidade, quer fora dela, mergulha as suas raízes na Antiguidade (séculos V e VI antes da nossa era) (…) O facto de o tauismo sobreviver hoje, apesar de tantas perseguições que sobre ele se abateram, é talvez um dos seus aspectos mais notáveis.

O seu culto dos santos, a sua liturgia e as suas peregrinações são inteiramente comparáveis às do Ocidente; o Tau e os seus aspectos, pelo contrário, são conceitos sem contrapartidas nas nossas teologias (…).

Em lugar das verdades reveladas que constituem o fundamento de tantos sistemas religiosos, o tauismo nada propõe, a não ser um paradoxo: toda a gente conhece o Tau (a Via) e contudo ninguém o conhece. Aquilo pelo qual tudo é, tal e qual, espontaneamente, sempre ultrapassará o entendimento humano. “Tau” é apenas um nome: “Pode pensar-se nele como sendo a Mãe de tudo o que está debaixo do céu. O seu verdadeiro nome, não o sei; dá-se-lhe o nome poético de “a Via”…A Via é regida pelo ‘assim por si mesmo’” (Daode jing, 25).

(…) A Via - o processo - que se manifesta através das transformações perpétuas do universo é por definição indefinível. Não pode ser apreendida a não ser nos seus aspectos, sendo estes evidentemente múltiplos até ao infinito (…).

(…) O que se revela aos nossos sentidos (…) é o universo diferenciado em perpétuo devir, mas este mundo fenoménico não passa da superfície (…) de uma outra realidade permanente, a da grande matriz do caos (…) Este caos que anula a ordem celeste, subverte o curso das coisas, constitui o verdadeiro “além”, impensável absoluto, obscuro, misturado, indiferenciado e mistério (…).

“Uma vez yin, uma vez yang, eis o Tau”, diz o grande tratado de adivinhação e cosmologia, o Yijing. “Uma vez vida, uma vez morte, eis a transformação dos seres”, diz por seu lado Zhuang Zi (Tchuang-tsé), o grande místico do tauismo antigo. Esta alternância, segundo a qual cada coisa ou ser, uma vez atingido o seu apogeu, se transforma no seu contrário, constitui o Grande Princípio, o Taiji (…).

A cosmologia tauista entranhou-se em todos os domínios do pensamento chinês (…) Nem mesmo na época moderna o universo será jamais concebido como obra de um deus criador ou como o resultado de uma intervenção especial; ele é um devir espontâneo, em perpétua mudança “por si mesmo”.

Os primeiros tauistas (…) teriam sido adivinhos. Eram letrados, ao mesmo tempo astrólogos, analistas, arquivistas e escribas da corte dos senhores feudais (…). O seu papel era observar os fenómenos naturais; estudavam os ciclos do céu e da terra, criavam calendários, anotavam os eclipses e outros fenómenos especiais. O seu conhecimento da história ensinava-lhes que, apesar da sua arte, nada era verdadeiramente previsível: as dinastias mudavam, o usurpador de ontem tornava-se o herói fundador de hoje, a legitimidade “por mandato do Céu” nada tinha de inquebrantável, os antepassados reais não eram os antepassados do mundo. Compreenderam assim que o homem ocupa apenas um lugar insignificante num universo em perpétua mutação onde alto e baixo, grande e pequeno, anterior e posterior, não passam de noções relativas. Do mesmo modo, também os deuses não podem deixar de ser muito relativos. A elaboração desta cosmogonia não teológica não é de surpreender uma vez que, para os tauistas, as únicas forças permanentes no universo provêm do poder (de, que significa acção) do Tau, o qual se manifesta nas leis da natureza.

Segundo a lenda, o primeiro tauista foi Lao Zi (Lao-tsé), literalmente “o Velho Mestre”. Teria sido arquivista e astrónomo na corte dos reis da dinastia dos Zhu, no século VI antes da nossa era. Diz-se que teve discípulos, mas que não lhes transmitiu o seu verdadeiro ensino. Só no fim da vida (…) é que Lao Zi foi reconhecido como um verdadeiro sábio pelo guarda do Desfiladeiro, encarregado da passagem que separa o mundo do além. Este obrigou Lao Zi a deixar-lhe o seu testamento espiritual: foi o Daode jing.

Para Lao Zi a verdade não se encontra nos preceitos ou nas construções do espírito, mas na vida física. No pensamento tauista, o corpo é dado como o único momento de unidade, o único lugar onde é possível a harmonia dos elementos múltiplos e às vezes opostos que formam o mundo. A sabedoria não pode pois encontrar-se nos discursos, mas na maneira como se trata da saúde própria. Esta preocupação permaneceu mesmo no centro da mentalidade chinesa. O sábio preocupa-se em primeiro lugar com o interior: assumir-se enquanto ser humano consiste em primeiro lugar em pôr em ordem a sua existência, em nada dever aos outros - homens ou deuses. Uma vez realizada esta condição, o resto far-se-á espontaneamente, sem agir nem intervir no mundo.

O tauismo forma um todo, quer do ponto de vista da sua doutrina, quer do das suas instituições. A sua preocupação essencial é a procura da “imortalidade”. Os caminhos para esse domínio do tempo são múltiplos. Para o místico, a união com o Tau encontra-se no termo de exercícios espirituais e fisiológicos: meditação ataráxica que leva ao êxtase, práticas da respiração, ginástica e dietética, alquimia operatória e espiritual, artes da caligrafia e da pintura.

No povo, os “Imortais” são objecto de cultos fervorosos. São as grandes figuras lendárias ou históricas do tauismo, o Velho Mestre, o Mestre Celeste, os espíritos das montanhas sagradas, e toda uma multidão de santos populares, homens e mulheres, cujas lendas maravilhosas alimentam desde sempre o teatro e os romances.

A história oficial ignora, ou quase, o facto tauista (…). Depois de ter conservado uma certa influência na Corte durante o primeiro século da época imperial, o tauismo torna-se vítima do absolutismo do imperador Wu (de 141 a 87 a. C.), que estabelece o confucionismo como ideologia do Estado. Opera-se então uma clivagem profunda que, com variações, irá permanecer constante na história da China: de um lado, o Estado com a sua administração, o país oficial que invoca a tradição “confucionista” (bem afastada do ensino do próprio Confúcio); e, do outro, o país real, as comunidades locais que se exprimem nas estruturas litúrgicas de uma religião não-oficial (…).

O tauismo tornou-se assim a grande religião popular da China. Foi ele que forneceu as suas estruturas litúrgicas (as comunidades, os seus templos e as suas associações, guildas e corporações, o clero, as alianças e peregrinações, a arte religiosa sob todas as suas formas, as lendas e os preceitos morais) às massas da China, tanto nos campos como nas cidades. Sob muitos aspectos, ele encarnou a continuidade da cultura chinesa graças às suas notáveis capacidades de adaptação.

Que se passa actualmente com o tauismo? O tauismo continua omnipresente, mesmo onde os templos e os mosteiros - como acontece hoje em dia no continente chinês - estão em grande parte destruídos. Reimprimiu-se recentemente o Cânone Tauista de 1442, que conta mil e quinhentas obras. Sobretudo, o tauismo continua a ser o guardião de uma moral que tanto estimula a liberdade como a responsabilidade individual.

É (…) por força de um paradoxo que o tauismo é ao mesmo tempo uma das maiores religiões do mundo e a menos bem conhecida. É vítima de uma das taras do mundo moderno: as estatísticas. Por razões que têm que ver com a própria história e com a própria natureza da sociedade chinesa, não é possível, sobretudo relativamente à China moderna, falar de uma Igreja tauista. Os fiéis estão ligados aos cultos dos templos locais, que são fundações laicas, federadas entre si mas independentes (…).
Tudo depende evidentemente da definição que se queira dar do tauismo. Não deveremos contar como tauistas os devotos dos cultos dos santos que, obrigatoriamente, recorrem de tempos a tempos aos serviços de um mestre - tanto comos os praticantes confirmados dos exercícios místicos individuais (…), que, com muita frequência, se organizam em grupos informais em torno de um mestre? Haverá então que admitir que a quase totalidade da população rural e uma boa parte da das cidades são tauistas; isto é, perto de um quarto da humanidade (…).


Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Kristofer Schipper, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

TEMPOS DE GUERRA, TEMPOS DE LUTA PELA PAZ

Manuel Joaquim
(Pablo Picasso)


Maio de 1945, tempo já de vida de muitos de nós, de nossos pais e de tanta gente com quem ainda nos cruzamos no nosso dia a dia, foi  tempo de esperança, com o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrota do nazismo, e de luta contra o fascismo ainda instalado e em defesa da PAZ. 

Porém, a situação política internacional permitiu a manutenção de regimes fascistas e o desenvolvimento de novas ameaças à Paz. Novas guerras eram iminentes e com armas nucleares que foram utilizadas pela primeira vez sobre o Japão.

Os povos de todo o mundo, de uma forma ou de outra, conheceram os dramas da destruição, da fome, da miséria, da doença, que são sempre as consequências das guerras para as pessoas simples e inocentes. Por isso, em 1949, organizações de todo o mundo, que defendiam e lutavam pela Paz, pela coexistência pacífica e pelo desarmamento nuclear, constituíram uma organização apartidária, a que se chamou Conselho Mundial da Paz, que chegou a ter organizações representativas de 104 países, com sede na Finlândia.

Em Portugal, nesse tempo, também foram criadas, em muitos locais, Comissões de Paz, com uma estrutura nacional a que se chamou Comissão Nacional para a Defesa da Paz. Estas Comissões de Paz participaram em muitas acções, designadamente na recolha de assinaturas para o Apelo de Estocolmo, que defendia o fim das armas nucleares, promovido pelo Conselho Mundial da Paz, que foi o maior abaixo-assinado realizado à escala mundial. 

Em 24 de Abril de 1976, foi finalmente legalizado, como associação, o Conselho Português para a Paz e Cooperação. Até ao 25 de Abril de 1974, defender a Paz, o desarmamento, o fim dos blocos político-militares, o fim do colonialismo, a solidariedade e cooperação entre os povos, tinha consequências, a mais certa era a prisão.
 
Se, quase sempre, temos vivido, mais perto ou mais longe, com guerras de agressão e de ocupação, como na Palestina, em Angola, em Timor-Leste, no Sahara Ocidental, no Líbano, na Jugoslávia, no Afeganistão, no Irão e Iraque, na Líbia, com o regime de apartheid na África do Sul, com o bloqueio a Cuba, hoje, estamos perante uma nova escalada de guerra que, a acontecer, terá consequências desastrosas para o mundo inteiro. A crise económica e financeira que está a apoquentar cada vez mais pessoas, comparada com o que poderá acontecer, será simplesmente insignificante.

 As movimentações militares que estão em curso no Médio Oriente com o objectivo claro de agredir a Síria e o Irão são terrivelmente assustadoras para a Humanidade.
Por isso, o Conselho Português para a Paz e Cooperação está a desenvolver a nível nacional uma campanha de sensibilização e de esclarecimento,  alertando  e mobilizando  o Povo Português contra a guerra. É uma iniciativa meritória que deve merecer a nossa atenção.

Aproveito a oportunidade para prestar uma simples homenagem, lembrando Igrejas Caeiro, membro da Presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação.

  

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