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01/03/12

A LUZ DE DEUS

Alcino Silva

http://stitchintimesaves9.wordpress.com/


“quem entra em Santa Sofia tem a vista imediatamente atraída pela cúpula, imagem da esfera celeste. A sensação mistura o esmagamento que decorre da finitude humana e a elevação progressiva do olhar e da alma para o Reino de Deus. Além disso, a iluminação vem do alto (…). Vinda do cimo, a claridade é ao mesmo tempo um símbolo da luz celeste e um convite a olhar o Céu.”1

Ao longo da vida alimentamos fascínios e percorremos caminhos viajantes ao seu encontro ou na sua procura. Nunca os encontramos de todo, é certo, mas vamos erguendo construções em torno da sua demanda. Debruçamo-nos sobre a ética, ou sobre os valores, ou ainda na defesa dos princípios que delimitam as avenidas da nossa vivência social, ou mesmo dos sentimentos através dos quais se manifestam os nossos gestos. Quantas vezes, estremecemos face ao fascínio da beleza, mesmo quando esta se revela nas expressões monumentais que a humanidade erige. Nalgumas destas, espreitam, a mitologia, o sentido da vida, noutras, o sagrado e noutras ainda o profano. Por mim, procuro o Deus que os crentes ainda não encontraram. Dizem escutá-lo, crêem até ler as suas palavras, em desenhos concebem o seu rosto, veneram-no como se o vissem, mas na verdade, não o topam. A mim, Georges Duby ensinou que “Deus é luz”2 e desde então habituei-me a procurar o silêncio no interior das grandes catedrais. Entro, deixo o olhar aventurar-se em longos passeios pelas paredes, pela abside, pela cúpula, pelos vitrais e vivo essa solidão no meio dos crentes e deparo com essa luz que descreveu o eminente historiador francês. Entra a jorros pelas cores harmoniosas que vivem no interior desses vitrais esplendorosos e visita-me nessa ternura do pensamento, da razão, da verdade reflectida. Serve de correio entre o que eu penso e o que a humanidade acumulou em sabedoria e a troca que gera mais saber, provém dessa luz que chega ao interior dessas catedrais, onde repouso em reflexão, enquanto os crentes se mortificam, rezando. Sim, é assim mesmo, os crentes rezam e eu penso. Rezam pelos pecados que cometeram perante o Deus que acreditam e não encontram, castigam-se a si próprios, esbanjam-se em promessas que não cumprem e ajoelham-se prosternados. Por mim, dialogo com o Deus que eles não encontram e que acredito não existir mas que sempre me acha. Que estranha incompatibilidade esta de encontrar o que sei não existir e de eles não conseguirem alcançar em quem tanto acreditam. Interrogo-me nesse diálogo com a luz, essa luz de Deus e regresso às palavras do historiador, «Deus é luz (…). Luz absoluta. Deus está mais ou menos velado em cada criatura, consoante ela é mais ou menos refractária à sua iluminação; mas cada criatura o desvenda à sua medida, pois liberta diante, de quem a observar com amor, a parte da luz que tem em si.”2 Compreendo melhor agora, cada um desvenda à sua medida e liberta a parte da luz que tem em si. Sentado, na imponência interior daquela casa dedicada ao Deus dos crentes, observo-os de novo e percebo que não podem libertar o que não trazem, o seu pensamento escurece perante o Deus que imaginam, os olha, mas na verdade não os vê pelo simples facto de não existir, mas existe na luz que entra em roldões de claridade e penetra naqueles que o aguardam no interior da nave, os que vêem mas não rezam. Não os compreendo, oram afanosa e seriamente, concentrados, rostos martirizados dirigidos a um altar, ao seu Deus crendo que se guarda no interior de um sacrário e a luz penetra em luminosidade de intensas cores pelos amplos e límpidos vitrais e procura-me sem cansaço, sem sacrifício e conversamos na serenidade intemporal do prazer de estar e pensar. A mim, não autorizam a proximidade do altar, o qual reservam para si, para as empenhadas súplicas que lhe dedicam em cerimónia colectiva ou em sacrifício pessoal. Mas concedem-me o espaço da abóbada ou das modelares janelas vitralinas, nas quais o arco-íris se representa de figuras entre a mitologia e a santificação. “Deus é um estremecimento das águas, um corpo que irrompe”3, mas os crentes não sabem, nem reparam. Fixos num lugar escurecido não vêem a luz nem as palavras que lhes dizem que “Deus borbulha, primitivo, incandescente, um nome desconhecido, mais semelhante a um sopro pela imprecisão das gramáticas, um fulgor ilimitado”3. Mas os crentes insistem em não ver o que encontro eu sem martírios, a luz de Deus, daí que tantas vezes não consigam distinguir o céu da terra, o mar da praia, o finito do infinito, nem conseguem mergulhar no sonho da humanidade. Os seus olhos permanecem presos no altar e o pensamento ocupa-se da oração memorizada, soletrada, cantada até, mas não conseguem erguer os olhos à procura da luz, razão pela qual, não sabem como distinguir o dia da noite, esquecendo até a história rabínica que dizia, “Quando, a meio de uma estrada, olhares um rosto, um rosto qualquer, e o amares tanto como o rosto do pai, da amada, do amigo mais querido, a noite acabou e o dia começou”3. É por esta e outras razões que me sento nas catedrais e deixo que o olhar e o pensamento me escapem à procura da luz que vem do Deus, que os crentes não encontram, fixos que estão, na sua procura no fundo de um lugar escuro e denso onde nunca o acharão.


1 – “A Idade Média no Oriente”, Alain Ducellier, Michel Kaplan, Bernardette Martin, Publicações D. Quixote, Lisboa, Março de 1994.
2 – “O Tempo das Catedrais”, Georges Duby, Editorial Estampa, Lisboa, 1979
3 – José Tolentino de Mendonça, Jornal de Letras, nº 1076, de 28 de Dezembro de 2011 a 10 de Janeiro de 2012.

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