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01/04/19

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ALERTA VERMELHO

Mário Faria



Nas minhas incursões na zona de influência do Lidle, há bem mais de um ano fui testemunha de um insólito acontecimento. Um homem, entre os sessenta anos, passeava uma bicicleta no passeio de costas para o movimento dos carros. Ainda a uma certa distância do Coppi (assim o batizei), apercebi-me que gritava para os automóveis com gestos e palavras muito pouco amigáveis. Na dúvida, mudei de passeio para evitar encontros imediatos de 1º, 2º ou terceiro grau. O tipo topou e parou do outro lado da rua para me brindar com um vasto leque de cumprimentos ameaçadores. Cheguei são e salvo a casa. Cruzei-me com o Coppi mais uma dúzia de vezes. O registo era cada vez mais agressivo. Entretanto, desapareceu e não deixou saudades. Há dois meses e pico, apareceu profundamente mudado. Tinha deixado a bicicleta que substituiu por um carrinho de supermercado. Caminhava mais confiante, sereno e com algum orgulho. Parecia satisfeito com a responsabilidade da sua função. E foi assim que se passou durante semanas. Foi sol de pouca dura: desta vez voltou de bicicleta e com um carrinho de supermercado acoplado. Exibia sinais de intensa degradação; menos agressivo e mais estranho dava sinais de desorientação. O Coppi é um mistério: um homem que vi sempre sozinho de mal com a vida e o mundo. Muito provavelmente vítima de um qualquer fantasma que o habita e nada tem a ver com o Brexit. 
O Brexit tem ocupado uma boa parte da agenda informativa. Não entendo muito bem porque é tão complicado sair da UE. Os ingleses ainda vivem sob os vestígios do Império. Sentem-se sem a importância do antanho e esperam com este golpe ressuscitar os dias gloriosos da Commonwealth. Ao mesmo tempo, esperam ganhar oportunidades que os USA facilitarão. O processo de saída parece não ter fim. O Reino Unido ruge mas não deita fogo. Está no limbo e não encontra saída. Sua Alteza está atenta e serena. Não é nada com ela. Pela nossa parte, estamos descansados: basta mostrar o Tratado. Ainda vamos ser o anjo da guarda da Europa. O Centeno é homem para isso.
Sabia-se que Centeno seria o homem escolhido para Ministro das Finanças se o Costa formasse governo. Não sei como se selecionam os candidatos para preencher os diferentes cargos no Governo. Admito que haja procedimentos semelhantes aos que são seguidos no privado, nomeadamente quando se trata de empresas que seguem os bons costumes no recrutamento. Segui e conheci os passos e a exigência no IKEA no momento da selecção de candidatos. O processo é longo, diversificado e muito exigente. É normal que na vida pública seja diferente porque os membros do partido serão quase sempre prioritários. Só que o actual governo resolveu dar um passo atrás e permitiu encher o (nova) governo com muitos amigos e demasiados familiares. Não será por isso que o gato vai às filhoses, mas ao Governo não basta ser sério tem de parecê-lo. Que tiro no pé, Costa!
O gato foi às filhoses e Rui Pinto foi preso preventivamente. Há quem o condene e reclame um castigado exemplar e há quem o absolva e reclame para o Rui o estatuto de denunciante. A privacidade é um direito que não pode ser desvalorizado e quem a viola comete um crime. Sou austero na sua defesa. Mas fico dividido quando o que está em jogo é informação qualificada e de interesse público. Como sair deste nó górdio? Vai ser complicado dados os interesses em jogo e no futebol o escrutínio é um bico de obra. A toupeira que o diga!

 Nota: Coppi foi um ciclista italiano de eleição. 

CHUVA É CANTORIA

António Mesquita



"Quando agora olho para o filme, sinto alguma alegria ao perceber que ele em nada contribui para o estereótipo de filmar os índios como se fossem fósseis vivos”
JOÃO SALAVIZA

Salaviza e Renée Messora filmam uma história de vida dos índios krahô, na aldeia da Pena Branca, estado de Tocantins, no Brasil.

Um rapaz de 15 anos, Ihjãc (Henrique, em português), adoece e põe-se a falar com os mortos. Essas vozes e o espírito personificado pela arara cometem-lhe o ritual da 'tora', uma festa  para encerrar o luto do pai, mas ele teme, ao mesmo tempo, tornar-se xamã. O médico da localidade mais próxima, Itacajá, diagnostica-lhe hipocondria e Ihjãc  vai adiando o regresso à aldeia, com medo do seu 'destino'.

Enquanto vagueia pelas ruas de Itacajá, com a sua poeira, o seu  ruído e, sobretudo, a omnipresença dos altifalantes de feira sente a falta do coro dos insectos nocturnos e do grito das aves da floresta natal. Não é por acaso que este contraste nos aparece tão chocante. É um modo mais subtil de defender a ideia denegada da 'pureza' dos índios. Como diz Salaviza; "Filme realista acima de tudo, “Chuva...” não deseja “cristalizar uma pureza indígena” que ali possa ainda existir (ou ser encontrada pelos olhos do branco) desde o século XVI."

Finalmente, Ihjãc regressa à aldeia para cumprir a obrigação da festa do luto. Depois, vêmo-lo diante da cachoeira onde falava com a arara e o espírito dos mortos e mergulhar nas águas sem voltar a aparecer. Devemos concluir que esta 'solução" para o seu medo do xamanismo significa que, apesar de tudo, a cultura (branca) dominante já o tinha separado da sua comunidade, ao ponto de já não poder acreditar no papel do xamã, mas também não querer nem poder trair o seu povo?

"O seu discurso (de Bolsonaro) contra os indígenas é tenebroso.", diz o realizador,  mas o verdadeiro perigo para a mitologia dos índios,  mais do que  a política, parece ser o da contaminação das culturas, porque Ihjãc já foi tocado pelo mundo envolvente.

Ainda Salaviza: "É preciso, ao invés, reconhecer os krahô sem preconceitos: sabem mexer em telemóveis, têm garrafas de água em cima da mesa, as mulheres gostam de pintar as unhas dos pés... E até há palavras de português que já introduziram no seu vocabulário e em seu proveito. Eles não são menos índios, nem há uma perda cultural, pela inclusão que fazem desses elementos no seu quotidiano, antes pelo contrário, muitas vezes há até um reforço da sua cultura pela absorção e subversão destas coisas que vêm de fora”.

Será que essa identidade índia depende da vontade de resistir e que a verdadeira mudança não começa pelos actos mais triviais do quotidiano, como moldar-se a uma outra língua ou usar um telemóvel? Nesse sentido, tampouco se pode falar 'numa comunidade em vias de extinção".

Enfim, "Chuva é cantoria na aldeia dos mortos" é um filme muito estimulante.


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Todos temos consciência que, com o avançar da idade, o nosso corpo vai colapsando fisicamente, vai encerrando quartos ao longo de um corredor e a cada um desses apagamentos, a memória anula registos, aquela memória mais activa que possui um arquivo de acesso imediato. Naquela manhã, procurava interrogar aquele catálogo das coisas breves, sobre o que me teria levado até Salzburgo nos últimos dias e não conseguia obter uma resposta que compensasse essa tentativa de saber o que fazia ali. Num primeiro instante, ocorria-me a palavra, Mozart, o génio, a música, o seu precioso Requiem. Mas a resposta que encontrava não me satisfazia. A última lembrança dizia-me que tinha entrado na Áustria para satisfazer uma curiosidade, o que me levou até Innsbruck, mas de seguida tudo se nebulava. O centro histórico, os carros eléctricos, o rio, a cor das águas e as montanhas a norte ainda cobertas da neve que a Primavera não derretera por completo. Para além da perfeição, dessa beleza que assenta na ordem natural das coisas, escondendo a intervenção humana, sempre tão modificadora, tão correctora do que nasceu no seu lugar, não esquecia a palavra «flughafen» que o cérebro repetia a si próprio como algo que tivesse algum significado para além daquele que a palavra guardava. Esta era a auréola que a memória acolhera e de seguida apagara-se até este momento em que o comboio me leva em direcção a Viena, com nova pergunta, porquê Viena? Rodava a fita do tempo e tentava ver Salzburgo, o rio Salzach, as margens nessa curva lenta, como cansada, de novo a cor das águas, o verde queimado das cúpulas, Mozart por todo o lado, os picos montanhosos agora a Sul, mas sem essa pressão esmagadora que se sente no Tirol, e sempre esse apuro que procuro como virtude da vida e dos materiais, a beleza das formas. Aliás, a Áustria aparece-nos como um desenho longamente estudado e com os traços certos, sem nada mais para além do necessário, uma ilustração simbiótica entre a natureza e a humanidade. Há instantes que essa perfeição é tamanha que chega a tornar-se perturbadora e ao recordar as aldeias montanhosas do meu país, feitas desse granito milenário, formosas pela sua irregularidade, aparecem-me, comparativamente como um esboço, um rascunho de algo inacabado, e no entanto, sinto um cântico que se ergue das suas calçadas como um chamamento, como uma recordação de um passado de luta contra os elementos físicos da natureza e do poder. Nas margens do Salzach, não senti com tanta intensidade a expressividade do Requiem, como sinto este canto que se ergue do silêncio do casario de telha vermelha que se esvai no meu corpo ao longo destes anos em que procuro a verdade da vida, na verdade dos seres humanos quando submetidos à rudeza da existência e à maldade pérfida dos tiranos, quantas vezes silenciosos, nos seus crimes e nas angústias e dramas que deixam escondidas na alma dos serranos dessas aldeias que laboram e oram, acreditando nesses dois predicados como actos únicos de perfeição perante a eternidade. O comboio desloca-se a uma velocidade assombrosa numa sequência de túneis cujos intervalos deixam escasso tempo para contemplar a paisagem que se estende no exterior e vou assemelhando estes espaços intercalados ao evoluir da vida humana, a cada momento de alegria, de cores vivas, de satisfação, surge um espaço escuro, um tempo sem luz em que apenas seguimos em frente com a convicção de que haverá um momento para o qual o sol adquira novo brilho, novo esplendor luminoso e assim, vou percorrendo os tempos que somam a minha experiência, essa vivência que já é passado e não será futuro. Há sonhos que se transformam em pesadelos e marasmos que se transmutam em fantasias luxuriantes de felicidade. Creio que foi numa dessa saídas de túnel para um espaço aberto que a memória trouxe até mim, um dia de caminhada num percurso de rudeza sem limites que nos fazia descer do Nepal para Darjeeling. Quando atravessamos cordilheiras acima dos três mil metros, sentimos que há uma separação física entre a cabeça e o resto do corpo, como se cada uma dessas partes adquirisse autonomia. Sentia-me perturbadoramente cansado, por que esses dias se arrastavam sem ideia de quando encontraríamos traçado que nos dissesse que o destino estava próximo. Foi num desses momentos de grande fadiga, sentado na extremidade de uma espécie de falésia, na proximidade da aldeia de Kalipokhri, olhando para o que acreditava parecer ser a fronteira que, sem qualquer razão aparente, me ocorreu o nome de Diotima (1) e o seu diálogo à procura de respostas para perguntas que o seu desejo de felicidade faziam aparecer, e a sua resposta enigmática à questão que lhe colocavam, «Aqueles que nos abraçam nunca são os que amamos mais profundamente…». Iludia assim o dilema que vivia entre o amor legal e contractualizado e aquele outro que irrompera pela sua vida, com a torrente de um glaciar alpino desintegrando-se perante uma súbita rajada de calor. Iludia o essencial com a sua resposta, mas aceitava o diálogo filosófico sobre a vida, os valores, o amor e as morais que comprimem os desejos como as margens comprimem o rio. «Não existe felicidade desregrada. Não existe grande felicidade sem grandes tabus», dizia um Arnheim (1) já convicto da sua derrota, ou dito com palavras menos rudes, incapaz de atravessar essa fronteira do proibido, «as grandes almas precisam de legitimidade», acrescentava tentando convencer-se a si próprio e assim ficavam ambos a atravessar uma ponte elevatória cujo mecanismo encravara no momento em que deveria unir-se, deixando-os separados perante um espaço vazio e intransponível. Falavam como se justificassem o que não ousavam viver, e mesmo que, em espírito, Diotima já aceitasse, que seria «mais sensível e sensato o risco do adultério à catástrofe de duas vidas destruídas». Contudo, pedia-lhe silêncio, que não falasse, pois «as palavras podem fazer grandes coisas mas há outras maiores!," pois, acrescentava, «A autêntica verdade entre duas pessoas não pode ser dita» porque «Assim que falamos há portas que se fecham;» Arnheim concordava e do seu pensamento saiu a frase que dizia que «As almas unem-se quando os lábios se separam». Os tabus sociais, as regras invioláveis que os cercavam, obrigavam, mesmo sem o querer, Diotima a domar as águas revoltas do rio que a arrastavam, que a impulsionavam para os braços daquele amor que transportava no olhar e a faziam mover-se entre os fantasmas da realidade. Com Arnheim algo idêntico se passava, pese embora sentir-se na maior parte do tempo com vontade «de se precipitar, como um satélite desorbitado, na massa solar de Diotima». A fonteira aparecia junto à aldeia, subindo e descendo numa linha exígua perante a grandeza da montanha, e ao longe, como um ponto entre cores profundas aparecia a aldeia que procurávamos. O desenrolar do meu pensamento deteve-se no momento em que o comboio deslizou pelo interior da Wien Hauptbahnhof e deixei-me ir, de novo, sem rumo, com o silêncio das palavras que pedia Diotima.   

(1) Personagens da obra literário, “O Homem sem Qualidades, de Robert Musil

Foi há 20 anos que a NATO realizou um dos seus maiores crimes na história da Europa recente. Durante 78 dias, bombardeou o que restava da Jugoslávia, deixando um rasto de mais de 2000 civis mortos e fazendo regredir, sobretudo a Sérvia, 50 anos em termos de infra-estruturas. Não hesitaram em bombardear a Televisão, para que a verdade dos seus crimes não aparecesse nos ecrãs do mundo. Na autoria do crime, estava gente democratíssima, como Javier Solana, o impagável Toni Blair, Bill Clinton ou António Guterres, todos bem recompensados no futuro. Quando a Jugoslávia se rendeu exangue e a sepultar os seus mortos, criaram o Estado fantoche do Kosovo, hoje placa giratória do tráfico humano e do negócio da droga e espaço de uma grande base militar da NATO. O presidente sérvio foi levado prisioneiro para Haia e morreu assassinado quando se encontrava à guarda do Tribunal Penal Internacional, assim se protegendo a democratíssima gente do que Slobodan Milosevic poderia vir a dizer.     



A população dos EUA escolheu para presidente do país uma espécie de loucura humana, um míssil em voo que não se sabe onde vai cair. Esta demência rodeou-se de gente inqualificável. John Bolton é um desses seres que nasceu com o intestino grosso no cérebro e Elliott Abrams é dessa espécie de gente que num país decente estaria internado num hospital psiquiátrico em regime fechado. Há dias teve um diálogo delicioso sobre Juan Guaidó, o auto-proclamado presidente interino da Venezuela e que nessa qualidade estava obrigado a convocar eleições nos 30 dias imediatos. Confrontado com esse facto, Abrams disse que o tempo só começa a contar quando Maduro deixar o poder, o que só pode significar que o auto-proclamado presidente interino, só pode ser interino após Maduro deixar o poder, pelo que de momento, Juan Guaidó é apenas candidato a presidente interino! Creio que é muito compreensível a explicação do pro-cônsul de Trump. Digamos que o inefável Augusto Santos Silva tem estado a reconhecer como representante do poder venezuelano um candidato a presidente interino. Parece um atentado à inteligência, mas é só apenas esta gente a fazer de nós palhaços.



Em Madrid prossegue a farsa do julgamento de 13 presos políticos catalães. Para eles envio a minha solidariedade através da poesia de Manuel Alegre:

Deixai-os pois dizer que vão vencer
Eles fogem da vida por temor da morte
Nós vamos para a morte por amor da vida
E enquanto Esparta só combate por dever
Nós iremos lutar com alegria

Por isso Atenas não será vencida”


MEMÓRIA E RESISTÊNCIA

Manuel Joaquim


Peniche, Museu Nacional da Resistência e Liberdade



O núcleo do Porto da União dos Resistentes Antifascistas Portugueses vai realizar uma excursão, no próximo dia 27 de Abril, ao Forte de Peniche para participar na inauguração do Museu Nacional da Resistência e Liberdade, “uma vitória alcançada de uma luta pela Memória e Resistência”.

Centenas de resistentes ao fascismo passaram pelas celas do Forte de Peniche. Em Janeiro de 1960 deu-se uma fuga histórica com repercussões mundiais. Falou-se de barcos e de submarinos que teriam participado no apoio à fuga dos fugitivos daquela prisão de alta segurança. Simplesmente a capacidade de organização e a inteligência daqueles Homens é que lhes permitiu tal proeza.

Devemos ter na memória outro local de terror que o fascismo manteve durante muito tempo a funcionar em Cabo Verde. O movimento de contestação que entretanto se desenvolveu a nível mundial obrigou os fascistas a fechá-lo. Mais tarde, durante a guerra colonial, foi novamente aberto para prender lutadores pela liberdade das ex-colónias. O responsável pela sua reabertura ainda está vivo e é uma alta personalidade política. 

Ary dos Santos escreveu um poema dedicado aos mortos-vivos do Tarrafal. O texto obtive-o das mãos da Dra. Fátima Silva numa aula de História. Pela sua importância faço a sua transcrição.

AOS MORTOS-VIVOS DO TARRAFAL – ARY DOS SANTOS

Ao cabo de Cabo Verde
dobrado o cabo da guerra
quando o mar sabia a sede
e o sangue sabia a terra
acabou por ser mais forte 
a esperança perseguida
porque aconteceu a morte
sem que se acabasse a vida.
Ao cabo de Cabo Verde
no campo do Tarrafal
é que o futuro se ergue 
verde-rubro Portugal
é que o passado se perde
na tumba colonial, 
ao cabo de Cabo Verde
não morreu o ideal.
Entre o chicote e a malária
entre a fome e as bilioses
os mártires da classe operária
recuperam suas vozes.
E vêm dizer aqui
do cabo de Cabo Verde
que não morreram ali
porque a esperança não se perde.
Bento Gonçalves torneiro
ainda trabalhas o ferro
deste povo verdadeiro
sem a ferrugem do erro.
Caldeira de nome Alfredo
fervilham no teu caixão 
contra o ódio  e contra o medo
gérmens de trigo e de pão.
E tu também Araújo
E tu também Castelhano
E também cada marujo
Que morreu a todo o pano.
Todos vivos! Todos nossos!
Vinte trinta cem ou mil
nenhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!
No campo do Tarrafal
no sítio da frigideira
hasteava Portugal 
a sua maior bandeira.
Bandeira feita em segredo
com as agulhas das dores 
pois o tempo do degredo
Mudava o sentido às cores:
O verde de Cabo Verde
o chão da reforma agrária
e o Sol vermelho esta sede 
duma água proletária.
Do cabo de Cabo Verde
chegam tão vivos os mortos
que um monumento se ergue
para cama dos seus corpos.
Pois se o sono é como o vento
que motiva um golpe de asa
é a vida o monumento
dos que voltaram a casa


José Carlos Ary dos Santos (poema feito aquando da trasladação para Portugal dos restos mortais dos 32 resistentes assassinados no Tarrafal)



PÁGINAS NEGRAS

Mário Martins

segundaguerra-etep.blogspot.com


Todas as guerras acabam reduzidas a estatísticas, estratégias, debates sobre as suas origens e os seus resultados. Estes debates sobre a guerra são importantes, mas não mais importantes do que a história humana daqueles que nelas combateram.” 
Martin Gilbert


A nova vaga de nacionalismo estúpido (ela requer, certamente, compreensão mas não complacência…) que, se for bem sucedida, poderá ditar o fim da União Europeia e tornar outra vez real o fantasma da guerra, e a recente passagem dos 100 anos sobre a data do armistício da guerra de 1914/1918, motivaram-me para ler as cerca de 2.400 páginas das obras do historiador inglês Martin Gilbert “A Primeira Guerra Mundial” e “A Segunda Guerra Mundial”.

De nada valeu a pergunta desesperada de um vespertino de Londres em 1 de Agosto de 1914: “Trezentos milhões de pessoas estão hoje sob o signo do medo e do destino. Não há  ninguém que quebre o encanto, nenhuma luz nesta fria e negra cena?”, já que, três dias depois, “na noite de 4 de Agosto de 1914, cinco impérios estavam em guerra: o império austro-húngaro contra a Sérvia, o império germânico contra a França, a Grã-Bretanha e a Rússia, o império russo  contra a Alemanha e a Áustria-Hungria, e os impérios inglês e francês contra a Alemanha”. 

Como de nada valeram, no final da guerra, em 1918, o aviso clarividente do Primeiro Ministro britânico, Lloyd George, de que as cláusulas do tratado do armistício que estavam a ser elaboradas pelas potências vencedoras podiam vir a ser “uma fonte constante de irritação dos alemães (…) Não concebo causa maior de uma futura guerra do que cercar o povo alemão (…) de vários pequenos povos (…) contendo cada um largas massas de alemães que clamam uma união ao seu país natal…”; ou a observação perspicaz do marechal Foch, generalíssimo dos Aliados, “Isto não é paz. É um armistício para 20 anos.”

Bastaria, com efeito, passarem vinte e um anos sobre a carnificina causada por esta grande guerra imperialista, para eclodir, em 1939, uma guerra nacionalista e  racial, ainda mais terrível, que empapou de sangue o solo europeu, africano e asiático, e transformou mares e oceanos num imenso cemitério de navios e cadáveres.

A quem se interessa pelo sofrimento humano e não, propriamente, pela arte da guerra, importa registar que, se a Primeira Guerra Mundial causou a morte de 9 milhões de militares (entre os quais 7.000 portugueses), e de 5 milhões de civis em consequência da ocupação, bombardeamentos, assassínios em massa, fome e doenças, num total estimado de 14 milhões de pessoas, a Segunda Guerra Mundial quadruplicou o número total de mortos e de feridos e incapacitados, não se sabendo, aliás, ao certo o número de vítimas. No cemitério principal da cidade alemã de Dresden, sujeita a intensos bombardeamentos, uma inscrição no túmulo colectivo pergunta: “Quantos morreram? Quem sabe o seu número?”.

Importa ainda reter que a Segunda Guerra Mundial não distinguiu entre militares e civis, nem entre homens, mulheres e crianças, nem respeitou as regras elementares da guerra. Pode dizer-se que foram três guerras numa só: a territorial, a anti-bolchevique e a racial, cabendo a esta última o horrível extermínio de 6 milhões de pessoas. 

A besta que há em nós andou seis anos à solta, cometendo os crimes mais hediondos e as loucuras mais insanas, reduzindo a nada o valor da vida humana. Nobre, mas ingenuamente, o presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, acreditava, à data da sua morte, em 1945, que “Mais do que pôr fim à guerra, queremos pôr fim à origem de todas as guerras – sim, pôr fim a esse método brutal, desumano e ineficaz, de lidar com as diferenças entre os diversos governos.” Mas depois do que se passou, não devemos ter dúvidas de que a besta, reunidas as condições propícias, voltará a atacar.

Uma das lições a tirar desta negra história, é que foi a política das potências vencedoras da Primeira Guerra, nos anos subsequentes (em que tinham força dissuasora), de conciliação com os ditadores expansionistas Hitler e Mussolini, e de (des)armamento ingénuo, que propiciou as agressões nazis e fascistas e a consequente eclosão da Segunda Guerra Mundial. Tivessem a França e a Grã-Bretanha uma política firme, no intervalo entre as duas guerras, e teriam, certamente, poupado o mundo a viver os anos negros da Segunda Guerra Mundial.

É por tudo isto que, sem prejuízo da reclamação da necessária melhoria do seu funcionamento, nenhum sentimento de injustiça ou de insegurança, nenhuma ideologia ou utopia, nenhuma preocupação soberana ou democrática, podem justificar a aventura perigosa de acabar com a União Europeia. Quem contribuir para esse desenlace carregará a culpa de expor novamente os cidadãos europeus e de todo o mundo ao perigo de se inserirem novas páginas negras nos livros de história.


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