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07/06/17

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O BELGA


Mário Martins



Eu gosto do Porto. (…) Gosto de um Porto cá muito meu (…). Entro então nele a tiritar de frio, atravesso-o molhado de nevoeiro, arranjo quarto, e deito-me no aconchego dessa velha e casta paixão que nos une. (…) De vez em quando perco a cabeça, estrago os horários, (…) meto-me num eléctrico e dou a volta ao mundo, a descer à Foz pela Marginal e a subir pela Boavista. (…)”

Miguel Torga, 1956


Está de regresso o Belga, após 21 anos de clausura no museu e 88 anos depois de ter sido importado da Bélgica, todo janota no seu fato amarelo torrado, à linha 1, a mãe de todas as linhas: “A linha era inconfundível. Andavam nela os carros maiores que havia na Carris: os Belgas, que pareciam frigoríficos americanos muito matulões (…)”* Num destes dias em que o vi, sinal dos tempos, era guardado, quer dizer, guiado por uma mulher, a mão no freio do matulão, de ancas avantajadas, as do eléctrico. Na Lapa onde cresci, andava, em miúdo, de “guna”, quer dizer, de borla, nos estribos, de onde se saltava, sem noção do perigo, em andamento, nos 7s para o Amial, S. Mamede ou Ponte da Pedra, ou no 8 para o Campo Lindo. Mas voltemos à linha 1: “Além dos apertos (…), da mistura de cheiros, variável do odor a sovaco (…) ao chulé, do cheiro a peixe dos operários do frigorífico de Massarelos ao pivete a bacalhau encasquetado dos operários do frigorífico do Bicalho, e ao cheiro a peixe fresco das peixeiras da Afurada que entravam no Ouro, do cheiro a óleo, a ferro e a carvão dos operários da «remise», da central eléctrica e das fundições, ao cheiro a colas, madeiras e resinas dos operários dos estaleiros de Lordelo (…). O condutor (…), quer dizer, o antigo cobrador, vulgo o «Pica», ao anunciar Monchique, Massarelos, Bicalho, Gás, etc., ia provocando coros de resposta, do género ic, ic, ic, elos, elos, elos e, quanto ao Bicalho, estão a ver a gangada a gritar, alto e bom som, diante de crianças, a rima correspondente (…). Do segundo género eram os comentários sobre o aspecto de quem entrava: das pernas e mamas aqui, das «vamps» do Infante, dos cus assim e assado das pandorcas de Miragaia, dos fatos de macaco e «chega-te pra lá, ó macaco do fato de Massarelos», etc. (…). O máximo, nestes dislates verbais, era atingido nas disputas entre os da boa-vai-ela e as peixeiras, que rematavam ao mais alto nível de insultos a toda a família e ameaças de «ainda levas com uma pescada nas trombas, ó filho da curta, ó roto!», etc.. Da Senhora da Luz ao Molhe, ao Castelo do Queijo e à Praia Internacional, ia o 1 descarregando a humanidade. (…).”* Agora termina a viagem, ingloriamente, no Passeio Alegre onde se adivinha, em Maio, maduro Maio, o verde a explodir nos quintais que restam da velha Foz.

*Excertos, em itálico, com a devida vénia, do bem saboroso texto de Helder Pacheco, na excelente publicação “O carro eléctrico no Porto”, editada em 1995 pela Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.

CARTAS DE SANTA MARIA


(Urqhart castle)

Inverness, 31 de Mai



A Foz do Ness é o nome desta cidade onde cheguei. Sim, este é o Ness que vem do lago onde alguns procuram afanosamente um monstro que não se deixa ver. É uma pena e uma perda de tempo procurá-lo quando os verdadeiros monstros são bem visíveis e infernizam-nos a vida real. Na verdade o Ness desagua num imenso estuário e só doze quilómetros além entra vagarosamente no Mar do Norte. Vim de Sul para Norte e atravessei as Altas Montanhas. É uma sucessão de lagos e fios de água. A neve ainda resistia no cume das cordilheiras que rodeiam o Lago Lochy. Em Fort Augustus abandonei a A82, por onde todos seguem. Rodeei o Ness pela margem direita através da B862. Voltei a subir as montanhas até ao Lago Tarff.  A 500 mts de altura a paisagem é soberba. Os 35 kms do Ness ficam sob o nosso olhar. São momentos de paralisia, de reflexão. Sentimos a nossa pequenez perante a imensidão da paisagem. Num minuto apercebemo-nos do significado do verbo amar, a vida, as pessoas, os lugares. É quando nos deixam assim, na fronteira do inacreditável, do inenarrável, do que não pode ser fotografado, apenas vivido nesses instantes em que a roda do tempo se detém para nos podermos aperceber de quem somos, do que fazemos e para onde vamos. O tempo que perdemos em futilidades quando a vida é como a paisagem, só a podemos viver uma vez, porque muda a cada instante, pela luminosidade, a intensidade das cores, a temperatura ou a hora do dia. Baixei para Foyers para alcançar a margem do lago e poder olhar as ruínas de Urquhart Castle do lado oposto. As ruínas do que já foi grande. Num espaço cuidado, bem conservadas, deixam-nos a ideia de uma Escócia soberana, independente, uma nação com alma. Propositadamente quis vê-las à distância, como quem interroga o passado sem o perturbar. O meu caminho prosseguiu pela margem direita ao longo da B862. Foi neste percurso estreito, rodeado de verde entre árvores e arbustos que a memória me trouxe um tempo em que a música que escutava variava com as estradas que percorria. Não a escolhia nem a procurava, chegava com os espaços que atravessava. Não a trazia na memória, surgia do interior da alma. Quando viajava na N347 a caminho de Montemor nesse instante em  que a quietude do fim de tarde visita o nosso cansaço por entre as árvores que marginam a estrada antes de alcançarmos os campos do Mondego, chegava-me a Elegia do José Afonso, “O vento desfolha a tarde/ como a dor desfolha o peito”; na N226 a caminho de Lamego quando a luz do dia nos anuncia a visita do crepúsculo, deixava-me embalar pela doçura das curvas e aparecia-me a Canção de Embalar“Trovas e cantigas muito belas/ afina a garganta meu cantor/ quando a luz se apaga nas janelas/perde a estrela d’alva o seu fulgor”; porém quando o meu caminho era a N222, nesse traçado esplêndido entre a Régua e o Pinhão, surgiam-me os sons alegres de Maria Faia e era como se o automóvel adquirisse asas e planasse sobre a margem do Douro,  “Eu não sei como te chamas ó Maria Faia/ nem que nome te hei-de eu pôr/ ó Maria Faia, ó Faia Maria”. Havia uma música que me chegava em qualquer estrada nesses momentos em que as escarpas da vida me traziam as maldades do mundo, a violência dos senhores, dos “mordomos do universo todo” e a alma explodia como uma galáxia em expansão ao som do Dies Irae do Mozart, como se me erguesse nas mãos de todos os deserdados num voo de justiça e furor como quem acredita serpossível humanizar a humanidade. Entrei no sul da Inglaterra pela Cornualha e ao caminhar pela B3301 ao admirar as ondas em vagas sucessivas de encontro ao sopé da falésia foi a vez de escutar Carmina Burana Ó Fortunanesses cinco minutos iniciais de autêntica fantasia que nos faz sentir marinheiros descobridores enfrentando adamastores. Ao lembrar-me de todos estes momentos interrogo-me porque razão naquele momento em que me aproximava de Inverness, no sossego de uma estrada bela e aprazível a música que escuto provinda da alma é a Balada de Outono“Águas passadas do rio/meu sono vazio/não vão acordar/Águas das fontes calai/ó ribeiras chorai/ que eu não volto a cantar”. Para  da cidade, no fim do estuário, há uma praia extensa ao longo de uma ínsua. Uma jovem passeia um cão que vai correndo no vai e vem das ondas. Ao longe um cargueiro rasga o horizonte, a sua grandeza diminuída pela distância. O resto é silêncio, o que vejo e sinto e o que a alma me traz nos sons que a criação de Beethoven fez chegar até aos nossos dias. É o silêncio que vejo a norte para onde se encaminha o meu destino. 

Fernão Vasques*



* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.

MIGUEL URBANO RODRIGUES

Manuel Joaquim







Há mais de 50 anos que ouvi falar de Miguel Urbano Rodrigues. Mais tarde, por volta de 1966, 1967, lia recortes do jornal “Estado S.Paulo” e da revista brasileira “Visão”, de artigos que Miguel publicava, muitos sobre a situação política portuguesa. Chegavam-me à mão por intermédio de Alexandre de Almeida, meu colega de trabalho, que os obtinha pelo intercâmbio de recortes e notícias que promovia por intermédio de outras pessoas ou por sua própria iniciativa através de correspondência com alguns portugueses refugiados no Brasil.

Tive a oportunidade de o conhecer pessoalmente após o 25 de Abril e de conversarmos muitas vezes sobre acontecimentos que só ele sabia contar. Brasil, Colômbia, Cuba e toda a América Latina, estavam sempre presentes.

Uma vez, jantamos juntos, em Vila Nova de Gaia. Falamos sobre um livro que tinha acabado de publicar, escrito em conjunto com a sua companheira, Catarina. A parte final do livro é sobre a visita que efectuaram ao Irão, país que tinha visitado pela primeira vez. A sua descrição, distante mas respeitável, impressionou-me verdadeiramente.

Tenho presentes os debates na TV com Franco Nogueira que causaram sensação. As suas entrevistas nas televisões e dos comentários de respeito e de admiração que provocavam nos comentadores. E recordo-me das palavras elogiosas que teceu, certa vez, à jornalista Ana Lourenço, no fim de uma entrevista.

A obra publicada é vasta e de leitura imprescindível para se conhecer um Homem de tão grande cultura e saber que até ao fim da vida lutou e manteve a confiança num futuro melhor para a Humanidade.

Natural de Moura, 2 de Agosto de 1925 – 27 de Maio de 2017



O SILÊNCIO

António Mesquita




"O Silêncio" (1963-Ingmar Bergman)



"A interioridade do mental, é isso talvez originalmente, essa falta de audácia em afirmar-se no ser e na sua pele. Não o ser-no-mundo, mas o ser-em-questão."

"Entre nous" (Emmanuel Lévinas)

É a queixa de Anna (Gunnel Lindlom) a sua irmã Esther (Ingrid Thulin), no filme de Bergman, "O Silêncio".

Por que é que ela se obstina, desde a morte do pai, a procurar um sentido para a vida? Porquê essa má consciência que se alimenta, precisamente, da sua vida interior, quando bastava entregar-se aos instintos do corpo saudável e simplesmente ser?

Mas é o que também se torna impossível a Anna, para quem a libertinagem e a perseguição do prazer são uma espécie de desforra perante o ascendente intelectual da irmã e, de facto, uma auto-tortura.

Este duelo sororal poderia ser um belo comentário à teoria do Rosto do Outro (Lévinas) e da responsabilidade que faz nascer em nós, anterior a qualquer experiência ou juízo.
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