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01/02/12

ESTAMOS NUM TEMPO DE VIRAGEM?



Manuel Joaquim

"The New Deal", Painting/Mural by Conrad A. 





As notícias que nos chegam, sobre a crise que vivemos, são cada vez mais diluídas por outras que captam mais a nossa atenção. As grandes notícias são sobre maçonaria, serviços secretos, clubes de futebol, jogadores e treinadores, vestidos e traições de princesas, julgamentos que decorrem com a publicação de grandes fotografias, algumas das quais sobre cenas com o conde.

 Mas com a crise a acentuar-se cada vez mais e a infernizar o dia a dia das pessoas, que vivem do seu trabalho ou de rendimentos escassos ou que já estão numa situação de penúria por terem sofrido cortes em subsídios e por causa do desemprego, os órgãos de manipulação da opinião pública já não podem ignorar a realidade por mais base e pó-de-arroz que utilizem. Começam a aparecer notícias sobre o crescente afastamento das pessoas dos serviços médicos e das farmácias, do abandono e morte de velhos sem apoios de serviços sociais e das famílias, de manifestações de insatisfação e protesto pelas situações de desemprego, pelo aumento do preço dos transportes, dos combustíveis, das portagens, dos bens essenciais, por causa da carestia da vida.
 
Sobre a situação económica, é um fartar de notícias sobre as compras de empresas por chineses, brasileiros, ou angolanos, os esgotamentos e as danças das cadeiras dos banqueiros, a entrada nos eixos do governo da Madeira, os inquéritos aos hospitais e as dividas das câmaras municipais e são as declarações categóricas e firmes de ministros e apaniguados de que vamos cumprir rigorosamente os “nossos” compromissos e prazos. Segundo dizem, somos gente de bem! 

Uns, que ainda há pouco defendiam as privatizações de todos os sectores, menos estado para melhor estado, que acusavam governos estrangeiros de serem ditatoriais ou corruptos, andam agora caladinhos para conseguirem desses mesmos governos algumas migalhas nas mesas dos banquetes com as riquezas nacionais. Um já chegou a banqueiro e tem trabalhado afincadamente para emagrecer o património nacional e engordar o património de quem serve. Outros, continuam a defender as privatizações, a venda do património nacional, “mas não todo”, se for a empresas públicas de outros países (China e Angola).  

Se há um ou outro jornalista (?) que pretende dar alguma notícia que ponha em causa os interesses instalados, despedem-no, via telefone, com o argumento de que vai terminar a sua colaboração por ter chegado ao fim o respectivo programa. O governo anterior tratava de comprar os órgãos de manipulação da opinião pública, através de empresas públicas e de bancos ao seu serviço, condicionando financiamentos. O actual utiliza os mesmos princípios mas é mais eficaz e rápido no seu domínio e domesticação. No fascismo, era o lápis azul, e a PIDE, hoje é através do lápis azul, da tesoura e do desemprego.

Medidas para dinamizar a economia e combater o desemprego, recuperar a dignidade de vida das pessoas, nada. É gente que já vive acima das suas possibilidades e que gastam mais do que ganham. São palavras dos que vivem dos impostos pagos pela maioria das pessoas. 

Quando a crise internacional estava ainda em desenvolvimento, 2008/2010, alguns fazedores de opinião, vendo semelhanças entre os dois acontecimentos, afloravam a crise de 1929, (terça-feira negra, de 29 de Outubro de 1929) falavam sobre a febre especulativa, o enriquecimento rápido e fácil e o colapso de Wall Street. No entanto, nunca aprofundavam as suas causas, os seus efeitos, utilizavam, na sua linguagem, a expressão  New Deal, mas não a explicavam e não falavam nas medidas que foram tomadas para combater a Grande Depressão que os EUA viveram entre 1929 e 1936.

Havendo semelhanças, em alguns aspectos, entre os dois acontecimentos, e até semelhanças no tipo de receitas defendidas por “sábios” daquela época e por “sábios” de agora, - “acima de tudo, devemos equilibrar o orçamento” - as respostas têm sido muito diferentes. A começar pelos discursos de posse dos presidentes eleitos, Cavaco Silva, e Franklin Roosevelt. Enquanto Cavaco subordinou o seu discurso aos compromissos assumidos pela troika interna - PS, PSD, CDS – perante a troika externa – Alta Finança - Roosevelt, no seu discurso de tomada de posse, em  4 de Março de 1933, defendeu que “Esta nação clama por acção, e acção agora…. Devemos agir rapidamente.” 

Em 1929, o número de desempregados era de 1,5 milhão, em 1933, o número tinha subido oito vezes, uma pessoa em cada quatro da força total de trabalho estava sem emprego. A construção de habitações caiu 90%. Nove milhões de cadernetas de poupança foram para o lixo, quando os bancos fecharam as portas. Faliram 85 mil empresas. Como pôde acontecer essa tragédia?

"Nos três meses seguintes à posse de Roosevelt, escreve Schlesinger,”O Congresso e o país foram submetidos a uma avalanche de ideias e programas presidenciais diferente de tudo o que se conhecia na história dos Estados Unidos.” Foram os famosos Cem Dias do New Deal, nome dado ao programa de recuperação económica e reforma social do Presidente Roosevelt. Esta designação provém da suposta semelhança com a situação de novidade e igualdade de oportunidades propiciada por uma nova “mão” (deal) num jogo de cartas. Foram lançados os alicerces de um novo padrão de relacionamento entre o Governo e a economia privada, um padrão que iria significar uma radical mudança na organização do capitalismo norte-americano.”

Foram aprovados 15 projectos-leis importantes: A Lei Bancária de Emergência; a criação do Corpo Civil de Conservação para absorver jovens desempregados; a Lei de Ajuda Federal de Emergência para suplementar os exauridos recursos assistenciais dos Estados e cidades; a Lei da Hipoteca Agrícola de Emergência, que emprestou aos agricultores quatro vezes mais em sete meses do que todos os empréstimos federais nos quatro anos anteriores; a Lei da Tennessee Valley Authority, criando a TVA, empreendimento inteiramente novo no âmbito da iniciativa governamental; a Lei Bancária de Glass-Seagall, divorciando os bancos comerciais das suas actividades de colocação de acções e obrigações no mercado e garantindo os depósitos bancários, entretanto revogada por Bush, o que contribuiu decisivamente para a falência de muitos bancos na presente crise e que, de certo modo, contribuiu para ela mesma, com os enormes valores “lixo” contabilizados; a primeira das Leis dos Valores Mobiliários, com a finalidade de reprimir a especulação mobiliária e a imprudente pirâmide empresarial.
Os Cem Dias somente inauguraram o New Deal; de modo algum o completaram. Ainda estariam por aprovar a Lei da Previdência Social, a legislação habitacional, a Lei da Recuperação Nacional, a dissolução das companhias holding em serviços de utilidade pública…De facto, só em 1938 é que o New Deal seria “completado” com a aprovação da Lei dos Padrões Justos de Trabalho, estabelecendo salários mínimos e o número máximo de horas de trabalho, e banindo o trabalho infantil no comércio interestadual.
Todos os programas expressaram uma mudança fundamental do papel do Governo, procurando encontrar “resultados socialmente aceitáveis”

Enquanto nos EUA houve a preocupação de intervir decididamente em praticamente todos os sectores económicos e sociais com o objectivo de superar as tremendas dificuldades e perigos para o próprio sistema, por cá, a política que é aplicada tem como único objectivo intervir na distribuição do rendimento, fragilizando as relações de trabalho e diminuindo os salários, retirando rendimentos à grande massa da população, através de aumentos de preços, de aumentos de impostos, confisco puro e simples de remunerações, para beneficiar o grande capital financeiro. Ao mesmo tempo as riquezas nacionais são desbaratadas.

O que foi dito, aplica-se, obviamente, a Portugal. Mas, com algumas adaptações, é possível generalizar  porque a política de rapace está em curso em quase todos os países europeus.

Sem dúvida que existem semelhanças entre as duas crises, sobretudo no empobrecimento das populações. Mas as realidades, tanto nacionais como internacionais são qualitativamente muito diferentes. Se na Grande Depressão, 1929 – 1936,  esteve em risco o próprio sistema capitalista, a crise actual que saída vai ter?


Fontes
- “A Formação da Sociedade Económica”, de Heilbroner, R.L. (1987), Rio de Janeiro, Editora Guanabara (Fonte das transcrições acima)
- Polanyi, K, (1968), The Great Transformation, Boston; Beacon Press – Trad. Ed. Afrontamento, Porto
- A Grande Crise de 1929 . J. K Galbraith
- As Vinhas da Ira, de John SteinBeck
- O Negro e Mr. Harding, de José Rodrigues Miguéis                                                                                                                                                                                                                                                                 

AS MÃOS


Alcino Silva


fire.rettorato.unito.it


Com as mãos tudo se faz e se desfaz
Com as mãos se rasga o mar
De mãos é cada flor cada cidade
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.


Manuel Alegre



A conversa acontecia à sua volta. Uma vez ou outra entrava na roda das palavras, mas sabia que os olhares não pousavam em si. Aceitara o convite para usufruir da companhia e esta confortava-o daquela solidão que nos isola sem nos afastar dos outros, permitindo-lhe a proximidade daquele olhar que viajava no seu pensamento, de visitar aquele espaço onde habitava um sorriso que transformava os rios em lagos de fantasia. A conversa prosseguia, ia e vinha, ora agitada e expansiva, ora mais discreta e vaga. Contemplava e procurava a direcção dos olhares, um pouco alheado, e foi num desses instantes que reparou no movimento das mãos e até si chegou a recordação da memória onde vive o passado, os tempos vividos, mas porque voltou atrás não sabia, nem por ali quis permanecer, reteve-se no presente, naquele instante, nos traços que o movimento desenhava como num quadro imaginário e transparente. As longas linhas das mãos estendiam-se como finos fios de uma beleza frágil e delicada, a pele escondendo rios de sangue subterrâneos num esboço de correntes, impulsos, vontades, quiçá sonhos deambulando pelo olhar que parecia procurar alguém, nesse encontro do que desejamos, mas ao qual as mãos não podem alcançar. A sua atenção retinha-se agora apenas naquela perfeita extensão final dos braços e supôs abraços estendidos, o movimento dos dedos entrelaçando carícias e percorrendo territórios numa viagem de ternura. As mãos insistiam em cativar-lhe o olhar, em arcos serenos e pausados de melhor explicar as palavras, como o prolongamento de um sorriso que dançava como um cisne nuns olhos carregados de sentimento. Estava preso no encanto das mãos e quando estas de novo se ergueram, saindo do repouso que encontravam uma junto da outra, sentiu esvoaçar os sons de Haendel soprados por violinos inventados que aquelas mãos, onde residia uma beleza perturbadora, activavam numa cadência que imobilizava. Foi como se aquelas mãos lhe tocassem, agarrassem as suas, as aprisionassem entre os longos e serenos dedos e o conduzissem ao de leve pelos caminhos das madrugadas onde a ardência de luzes coloridas fazia abrir um céu enfeitiçado. Os sons desfaziam-se em cores, em tintas donde brotava a luminosidade da Veneza de Canaletto ou seria antes a irreverência das pinturas de Caravaggio, já não o sabia. Encerrado numa campânula, não escutava a melodia das vozes, antes e apenas o que as mãos faziam sair das cordas dos violinos suavemente tocados numa tangente pelo arco que seguravam num exercício de ir e voltar, exaltando o Messias numa cadência de louvor, voando nessas cores renascentistas e proféticas. Uma das mãos tocava-lhe o rosto, pousava-lhe a palma sobre os lábios. Segurou pelo pulso, beijou-a com a pureza cristalina da água de nascente, com delicadeza insistiu em retê-la na sua, arrastou-a ao de leve pelo olhar, o seu, nessa carência de consolo que vive nos homens e prolongou o gesto por minutos que se escoaram num tempo que não viu. Porque lhe acenavam, porque se movimentavam vozes no exterior daquele vidro onde permanecia? Pareciam chamá-lo, a música, extinguindo-se, levou a luz das cores e Veneza terminou os seus dias. Acordavam-no do sonho, no torpor dos seus olhos, as mãos, aquelas mãos já não acenavam, mas estas, as que continuava a ver do outro lado da mesa, continuavam a esboçar desenhos que prolongavam as palavras que voavam para outros olhares em direcção a outros mares. Haendel partira, Caravaggio e Canaletto jà não estão connosco, ficaram apenas as mãos, a delicadeza daqueles traços, a leveza da pele, a perfeição dos dedos abrindo-se como flores primaveris. Que importa se é tudo imaginação?, se todas as noites adormece com o afago daquelas mãos sobre o seu rosto.”





MUROS RELIGIOSOS (8) O Budismo


Mário Martins

300px-Buddha_in_Sarnath_Museum_(Dhammajak_Mutra)
Uma estátua de Buda feita por Sarnath no século IV (Wikipédia)
 
 
“(O budismo) afirma igualmente que existem diversas divindades, mas estas não são elementos essenciais da doutrina: o budismo não é pois um politeísmo. Além disso, ao contrário das religiões monoteístas, Deus ou o Criador supremo não tem nele qualquer lugar.”
 
Môhan Wijayaratna
 
 
(…) O budismo é a mais inapreensível das religiões universais. É quase impossível pronunciar a seu respeito uma generalidade conforme a todos os seus aspectos, e mais ainda definir o que é um budista (…).
 
(…) Não há escrituras universalmente reconhecidas a que o crente se deva reportar (…) Não há uma língua sagrada comum, uma autoridade religiosa geral, dogmas com definições claramente formuladas e obrigatórias, e as modalidades de implantação diferem consideravelmente de um país para outro. Só se começa a apreender uma certa unidade tomando consciência das divisões, para depois reencontrar a ligação subjacente.
 
Ao contrário do hinduísmo e do judaísmo, o budismo tem origem num fundador, Buda (…) Ao contrário do cristianismo e do islão, esse fundador não foi uma encarnação divina ou um mensageiro de Deus, mas um ser humano que expôs uma disciplina mental que já pusera em prática com êxito e uma verdade que compreendera ao desenvolver as suas capacidades interiores (…) Os budistas, portanto, não dirigem qualquer oração ao seu mestre desaparecido; apenas devem seguir-lhe os conselhos.
 
(…) Poucos budistas recusariam reconhecer na pessoa do Buda (expressão que significa Iluminado) Sâkyamuni o fundador da sua fé, o qual terá vivido nos séculos VI-V a. C. Nascido no sul do Nepal actual, sob uma auréola mitológica não muito diferente da natividade cristã: é miraculosamente que penetra no seio de sua mãe adormecida (…) e é do mesmo modo miraculoso que dela sai aquando do nascimento, não pelas vias naturais, mas pelo flanco (…), logo o seu destino é “traçado” pelas profecias que os adivinhos fazem a seu pai (um pequeno rei da segunda casta, a dos guerreiros) depois de terem examinado as marcas singulares que o corpo da criança apresenta e que revelam o grande homem: ou virá a ser imperador universal, soberano de todo o orbe do mundo, ou será buda. O rei deseja naturalmente que o filho perfaça o comportamento próprio da sua casta e insiste em conservá-lo à margem de uma carreira religiosa inconveniente para o seu meio; isola-o por conseguinte numa vida de prazer ao abrigo do sinistro espectáculo do mundo. O jovem cresce sem cuidados, apesar da morte precoce da mãe, casa-se e terá até um filho. Mas os deuses velam por que o seu destino religioso se cumpra: ao sair de um dos seus palácios acompanhado do cocheiro, tem sucessivamente os “quatro encontros” decisivos, primeiro com um velho abandonado pelos seus, depois com um doente, a seguir com um cortejo funerário e finalmente com um renunciante, um asceta que abandonou as prerrogativas da sua casta, o seu lugar no mundo, para partir à busca da libertação. O jovem compreende então onde está a sua vida e decide pôr-se a caminho (…) Depois de uma longa cavalgada, devolve o cavalo, corta a abundante cabeleira, enverga roupas grosseiras e vira-se para a busca da Iluminação (…) Durante esses anos encontra vários mestres, pratica e ultrapassa os seus diversos ensinamentos (…), rejeita-os sucessivamente e ele mesmo se torna uma espécie de mestre com prestígio suficiente para atrair a si cinco discípulos ou companheiros fieis (…), e decide entregar-se a uma ascese total, abstendo-se de qualquer alimento e suspendendo pelo ioga as suas funções vitais até aos confins da morte (…) Compreende então (…) que a ascese extrema não leva a coisa alguma, emerge da sua concentração e toma um pouco de alimento (…), atira ao rio a tigela onde tomou a sua primeira refeição e ela sobe a corrente para chegar até uma caverna onde toma o seu lugar ao lado das tigelas lançadas fora do mesmo modo pelos budas das idades precedentes. Assim o Iluminado (…) não é um indivíduo único, mas o actor de uma história que se repetirá indefinidamente enquanto subsistir um mundo para salvar; estamos muito longe do carácter de hápax (o que é dito uma única vez) das personalidades messiânicas e proféticas deste lado da Eurásia. O futuro Buda sabe agora o que tem a fazer; recuperadas as forças (…) centra a sua meditação na própria natureza da existência (…), atinge a realização da Iluminação perfeita e completa, adquirindo a recordação de todas as suas existências precedentes (…), adquire, sobretudo, a compreensão total do mecanismo das causas e condições que provocam a existência, com os meios que permitem pôr-lhe fim e atingir a libertação perfeita (…); ele sabe agora que já não renascerá. Poderia consagrar o resto dos seus dias a fruir dessa certeza solitariamente (…) mas um buda é não apenas um iluminado, mas também um iluminado que, pela sua pregação, ensina os outros a atingirem por sua vez a Iluminação. Por isso, o Buda irá consagrar-se à propagação do ensino que inicialmente hesitara em entregar aos homens (…).
 
No domínio do conhecimento, o Buda insistiu na importância das experiências pessoais e na compreensão assente nos factos empíricos. Na sua época (…) existiam efectivamente três espécies de mestres religiosos: os primeiros, como os brâmanes, eram os “revelacionistas” (…); pretendiam ter um conhecimento dos Veda (textos sagrados exalados pelo Absoluto). Os segundos eram metafísicos racionalistas; o seu ensino assentava em especulações. Por fim, outros mestres diziam que haviam atingido o seu conhecimento desenvolvendo as suas próprias capacidades interiores: era com essa categoria de mestres que o Buda se identificava.
 
Várias religiões contemporâneas do Buda assentavam em revelações acerca do mundo, sua origem, sua existência e seu fim. O Buda nunca se preocupou com essas questões e recusava-se a responder-lhes, acentuando a inutilidade de tais discussões em comparação com o objectivo da vida religiosa (…) Segundo ele, o indivíduo que insistia em pretender obter respostas a seu respeito estava a perder o seu tempo, tal como alguém que, ferido por uma seta envenenada, procurasse informações sobre a seta e sobre a pessoa que a atirou, sem deixar ninguém retirar a seta ou cuidar do ferimento.
 
Numa atitude surpreendentemente agnóstica e de “ver para crer”, o Buda perguntava aos mestres brâmanes que ensinavam várias vias para a união com Brahmã (Deus criador) se alguma vez viram esse Brahmã com que se queriam unir. Como a resposta era negativa, o Buda comparava a atitude dos mestres com a de um jovem que dissesse: “Estou apaixonado pela mais bela das jovens deste país, desejo-a, sem contudo saber quem é essa jovem, onde está ela, sem nunca a ter visto e sem saber a que família pertence”. E quando os mestres definiam Brahmã como Esplendor supremo “visto que não há outro esplendor superior a esse, nem esplendor mais excelente que esse”, o Buda dizia-lhes: “Ó amigos, podeis continuar assim longo tempo respondendo: visto que não outro esplendor superior a esse…, desde que me indiqueis qual é esse Esplendor supremo de que falais”.
 
(…) O ensino do Buda não é, pois, uma simples revelação da natureza das coisas, mas, antes de mais, um método (…) Essa prática, para ser verdadeiramente levada a bom termo, não se pode exercer no seio da vida mundana: tem necessidade de um enquadramento adequado que é o oferecido pela vida monástica (…).
 
Embora a doutrina búdica não se baseie numa explicação ou numa revelação acerca da criação ou do fim do mundo, nem por isso guarda silêncio total sobre o mundo fenoménico. Segundo as escrituras canónicas, o mundo não se limita ao planeta habitado pelos seres humanos e pelos astros concebidos como um sistema organizado. Pelo contrário, o mundo é composto de inúmeras unidades, cada uma das quais corresponde a um sistema solar. Estes sistemas solares são “qualidades” e de tamanhos diversos (…) Existem assim milhares de sistemas planetários (…) Contudo, as escrituras canónicas não apresentam estes pormenores como revelações sobre o universo. Trata-se de simples declarações dos “nobres seres”, os que compreenderam as coisas pelo desenvolvimento das suas próprias faculdades extra-sensoriais (…).
 
A doutrina búdica (…) interessa-se prioritariamente pela condição presente de cada indivíduo a quem diz respeito e prescreve-lhe que comece por compreender as coisas interiores e não as coisas exteriores: “não é pela viagem que se pode atingir o fim do mundo; no entanto, não há libertação possível sem se ter atingido o fim do mundo. Eu (Buda) ensino que estas quatro coisas: o mundo, o aparecimento do mundo, a cessação do mundo e o atalho que conduz à cessação do mundo - estão contidas neste corpo com uma vara de comprimento”.
 
Estas palavras mostram a natureza da mensagem de salvação que o budismo procura transmitir. Por um lado, essa mensagem diz respeito pessoalmente a cada indivíduo interessado e, por outro, o seu conteúdo diz sempre respeito ao momento presente. “Partir do tempo presente em que se vive” é um princípio muito importante no budismo.
 
Na maioria das religiões históricas a salvação é uma recompensa pelos actos meritórios. Não é o que se passa no budismo (…) A salvação budista apenas se oferece àquele que quer sair completamente da série das existências (renascimentos). Embora não deva cometer kamma (actos) demeritórios, também não é obrigado a afectuar kamma meritórios; deve sobretudo preocupar-se com o progresso interior que lhe permitirá deter a série de existências (…).
 
Pôr em prática cada vez mais profundamente os conselhos do ensino búdico permite chegar ao desinteresse, à renúncia total, à equanimidade. Segundo a palavra do Buda, neste estádio o indivíduo renuncia às coisas más, mas igualmente às coisas boas. Assim, quanto mais nos tornamos budistas, menos nos interessamos pelas querelas do mundo e até pelas querelas religiosas (…).
 
Nota final: As considerações precedentes dizem essencialmente respeito ao ramo do budismo chamado Theravâda (doutrina dos Antigos) ou hînayãna (Pequeno Veículo), presente no Sri Lanka (Ceilão), Birmânia, Tailândia, Laos, Camboja, regiões chinesas de população tai e alguns distritos do Bangladesh. O outro grande ramo do budismo, chamado Mahâyâna (Grande Veículo), que remonta a há cerca de dois mil anos, e “está dividido principalmente entre a área de cultura tibeto-mongol, de um lado, e, por outro, a área de cultura chinesa, que abrange, além da China, o Japão, a Coreia e o Vietname, considerando-se um caso à parte o do budismo nepalês de tradição sânscrita”, fundamentalmente endeusa, por assim dizer, a figura e o significado do Buda. Com efeito, “o budismo antigo sustentara que restava aos fiéis (…) o corpus de lei, isto é a colectânea das palavras do Buda; a sua mensagem constituía assim de certo modo uma presença permanente, uma vez que a Extinção o situara para todo o sempre para além do mundo (…). Com o surgimento do Grande Veículo e da sua “doutrina dos três corpos de Buda” “o corpo de Lei deixou de ser entendido como designando apenas a mensagem deixada pelo Buda, para significar antes de mais nada a sua modalidade de existência transcendente (…) Deste corpo de Lei emana um corpo, que permanece ainda para além das capacidades de percepção dos seres humanos (…) Vem seguidamente o terceiro e último nível de existência, o da dimensão humana (…) foi neste corpo que o Buda histórico âkiamuni mostrou aos seres a possibilidade da Iluminação e da Extinção (…). Para o Grande Veículo “o Buda está desperto desde uma Antiguidade que ultrapassa o entendimento humano; desde há incalculáveis idades cósmicas que ele exerce a sua incansável actividade de salvação dos seres num número infinito de universos (…).
 
Todas as citações (em itálico) são da obra “As grandes religiões do mundo”, Jean-Nöel Robert e Môhan Wijayaratna, Direcção de Jean Delumeau, 1993, Editorial Presença, 2002.

OS QUE NÃO SABEM FALAR


António Mesquita



"Eu gostava bastante dos médicos, não me sentia minimizado pelas suas dúvidas. O problema é que a sua autoridade aumentava de hora em hora. Não nos damos conta, mas são uns reis. Abrindo a minha habitação, diziam: - Tudo o que está aqui nos pertence. Lançavam-se sobre os meus recortes de pensamento: - Isto é nosso. Interpelavam a minha história: - Fala, e ela punha-se ao seu serviço. Rapidamente me despojava de mim mesmo. Entregava-lhes o meu sangue, a minha intimidade, oferecia-lhes o universo, dava-lhes a luz. Aos seus olhos, em nada assombrados, convertia-me numa gota de água, numa mancha de tinta. Reduzia-me a eles próprios, passava inteiro debaixo do seu olhar, e quando, no fim, nada tinham presente senão a minha nulidade e já nenhuma coisa mais para ver, levantavam-se, muito irritados, gritando: - Muito bem, onde está você? Onde se esconde? Esconder-se é proibido, é uma falta, etc."
 
 
"A loucura da luz" (Maurice Blanchot)
 
 
 
O poder da linguagem, a mágica das palavras que se apropriam do pensamento (que lhe impõem um regime), que "deixam à porta" o "leigo" como um doutor em teologia, na Idade Média, em nenhum lugar encontra melhor exemplo do que na profissão de médico, mesmo no mais democrata. A este propósito, ocorre-me o que Proust dizia sobre o snobismo (o último reduto do "sangue azul") da aristocracia, com o exemplo do duque de Guermantes e do seu primo, o príncipe. Deles, o mais snob, o que mais desprezava "abaixo" dele, não era o aristocrata indefectível, mas o democrata.
 
Não é culpa dos médicos se nos "reduzimos" à coisa doente frente ao poder que representam. De bom grado nos submetemos, se obtivermos a cura. De facto, não é uma profissão como as outras, nem, na verdade, um poder político.
 
O paradoxo é que quase todos confiamos a esse poder e a esse suposto saber, o que nos é mais íntimo e o que devíamos conhecer melhor. De facto migramos, com tudo o que somos, para um lugar de pensamento único e de linguagem esotérica em que nos tornamos, de facto, infantis (de 'infans', o que não sabe falar).


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