StatCounter

View My Stats

01/04/24

201


E AGORA?

Mário Martins

https://www.google.com/search?client=firefox-b-&sca_esv=c1ac07e53b73c3dc&q=eleicoes+imagens




Todos os partidos e coligações eleitorais que elegeram deputados nas recentes eleições legislativas, obtiveram mais votos do que em 2022, à excepção de dois: o PS, que perdeu mais de meio milhão de votos e 42 deputados, constituindo-se assim no grande perdedor destas eleições, e a CDU (PCP/PEV), que voltou a ter menos votos e deputados.

A abstenção desceu cerca de 8 pontos percentuais, significando, ainda assim, a falta de comparência de mais de três milhões de portugueses em condições legais de votarem no território nacional, ou de mais de 4 milhões contando com a emigração.

Quanto à AD (PSD/CDS/PPM), citando a conhecida frase de António Costa em tempos idos, limitou-se a ganhar “por poucochinho”.

Não há, porém, como fugir à questão: o grande vencedor foi esse partido de extrema-direita, populista, ardiloso e infiável, que anda em más companhias (diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és), esse partido que dá pelo nome oficial de CHEGA obteve mais de um milhão de votos e 50 deputados.

Neste quadro, a futura governação afigura-se muito problemática, se se confirmar a ausência de acordos com o Chega e se verificar a oposição pura e dura da esquerda, situação que conduzirá, a curto prazo, à convocação de novas eleições. Não obstante, é de prever que dificilmente a direita deixará fugir esta oportunidade. 

Para o colunista Miguel Esteves Cardoso o Chega não passa de um partido do contra, que “nunca mais terá uma oportunidade como esta. Ver-se-á aflito para segurar o milhão do contra”. 

Já Clara Ferreira Alves é mais pessimista do que MEC, ao considerar que “O Chega, e a extrema-direita populista, capturaram os pobres e os descamisados. Os revoltados. E os jovens, que também estão revoltados.”

Para a Pluma Caprichosa “A luta de classes não foi abolida, nunca será abolida. A sociedade avançada digital, onde os robôs substituem pessoas com vantagem e os ricos ficam cada vez mais ricos, e cada vez pagam menos impostos, irá gerar absolutismos.”

(…) A tecnologia impõe o niilismo, a submissão e a anomia. Cria uma dependência. Uma subcultura alicerçada no imediatismo, no sensacionalismo e nas baixas paixões. Mais do que combater a extrema-direita, há que combater este niilismo. Que a extrema-direita, no ímpeto revolucionário, organizador e orgânico, combate agora a seu modo, prometendo uma revolução. Por isso é bem-sucedida.”, conclui, caprichosamente, a Pluma.

Corroborando a tese de Clara Ferreira Alves de que “os jovens também estão revoltados”, circula a informação de que votaram maioritariamente à direita. O voto jovem, de que o Chega certamente arrebanhou boa parte, garante a este partido um futuro promissor enquanto “partido do contra”. Mas o entusiasmo dará lugar à desilusão uma vez participante do poder, situação que o tornará, inevitavelmente, tão permeável à corrupção e aos “tachos” como os partidos do “centrão”, mal-grado o estímulo aos partidos radicais/populistas de uma eventual vitória de Trump na eleição presidencial americana de Novembro.

Em todo o caso, não deveremos menosprezar a potencial ameaça ao regime (embora um dos seus ideólogos, Diogo Pacheco de Amorim, membro do antigo MDLP, organização conotada com actos terroristas, reclame que não são contra o regime, mas sim contra o sistema…) de uma possível liderança do governo no futuro. Lembremo-nos do exemplo, entre outros, de Orbán na Hungria, há quatorze anos no poder por via eleitoral, no quadro de restrições à liberdade de imprensa e à independência dos tribunais.

Ao menor descuido, a democracia pode virar farsa...

CANÇÃO DE EMBALAR

António Mesquita




"(...)  e àquele que dentre eles fosse mais hábil em predizer o que ia acontecer - parece-te que ele teria saudades ou inveja das honrarias e poder que havia entre eles, ou que experimentaria os mesmos sentimentos que em Homero e seria seu intenso desejo 'servir junto de um homem pobre, como servo da gleba' e sofrer tudo a regressar àquelas ilusões e viver daquele modo?" 
(Platão, "A República")



A propósito do grupo militante  chamado entre nós Climáximo, na esteira de outros por esse mundo fora e da mensagem do sueco Andreas Malm que até já escreveu sobre a melhor forma de fazer explodir  um 'pipeline', o cronista do Público António Guerreiro levanta uma série de questões urgentes:

"Movimentos como o Climáximo partem da evidência de que já estão esgotadas todas as tentativas democráticas de contestação e o que está em causa é de uma grandeza e de uma urgência que não se compadecem com mais hesitações. A seu favor têm os relatórios científicos que já quase ninguém contesta; mas contra si têm o facto de vivermos em estado de disjunção cognitiva."

As acções eco-terroristas intentadas por esses movimentos sobre o material (até ver não visando as pessoas), constatada que  foi já por todos, os "conscientes" e os "inconscientes" da emergência climática de que não se pode esperar nada de decisivo da parte dos Estados, reféns que são nas democracias do "povo soberano" nos seus complexos estratos e interesses corporativos e, nas ditaduras,  da agenda de conservação e reforço do poder  pessoal, são, evidentemente, desesperadas, mas duvido que travem qualquer grande iniciativa democrática. E, para todos os efeitos, prevalece o que Guerreiro chama de "disjunção cognitiva" da população mundial perante o que seria já a "sexta extinção em massa" em curso no planeta.

Na verdade, a violência destas manifestações inspiradas vagamente numa postura ecológica e na ideia ingénua de que um consenso será alguma vez possível para a  salvaguarda do nosso habitat, senão quando for demasiado tarde, deixa supor que bastaria a acção concertada das nações no sentido de diminuir as emissões de carbono na agricultura e de restringir o consumismo, nomeadamente, no turismo  e no transporte individual, para evitar o cataclismo. A ideia por detrás deste utopismo, segundo o articulista, são as nossas crenças na "geoengenharia e na tecnologia".  Podemos fechar os olhos perante o desastre iminente porque uma descoberta genial está prestes a revelar-se nalgum laboratório ou universidade em qualquer lugar do mundo.

A Irresponsabilidade é, de facto, a dos grupos que querem dar a ideia de que estão a lutar pelas medidas mais drásticas e, assim confortam no seu "sono dogmático" os que esperam essas mudanças sem realmente as quererem nem compreenderem.

Estaria em causa o ocultamento da verdadeira causa das alterações climáticas, segundo alguns, que não se deixam intimidar pela incongruência, ao apontarem o dedo ao "modo de produção capitalista". Acontece que nunca  existiu uma alternativa ecológica a esse "modo de produção" (as variedades de capitalismo  ideológico são tão ou até mais gravosas para o planeta, dado não existir omnisciência individual e consideradas as características paranóicas das ditaduras).

A "verdadeira causa" podemos não ser capazes de a pensar ou exprimir. Mas sabemos fazer algumas projecções lógicas e as que fazemos são alarmantes para quem  não for velho demais.

Diria, portanto, na minha modesta opinião, que será irresponsável alimentar ilusões se os "decisores" deste mundo, fazendo-se respeitar e compreender, tiverem, além dos meios para inverter a marcha para o desastre, a ideia do que é preciso fazer. Ora, nós ainda nem sabemos lidar com fenómenos como os Trumps de fora e de dentro e os Putins e os Netanyahu deste mundo. 

Neste quadro, romper com as ilusões só pode ajudar ao desastre. É como estamos distantes do homem que saiu da caverna platónica.

Uma série da Netflix cavalga esta onda de "fim do mundo", num estilo quase histérico. Chama-se "O problema dos 3 corpos". Começa por algumas cenas violentas da Revolução Cultural chinesa, em que se ataca a ciência burguesa e o seu expoente máximo, Einstein. Os físicos são especialmente mal tratados e obrigados a abjurar as suas convicções científicas. O paralelo com o tempo presente, niilista para muitos, e de falência dos valores e das certezas da física, é brusca e demagogicamente estabelecido.  Faz-se esperar o filme reflectido que nos sirva de espelho.


                 


                                                                 LÁPIS AZUL?


Sendo um dos directores/redactores da "Periscópio" desde a primeira hora, o autor do "Depoimento" não pode ignorar não só o espírito como as regras que a presidem. Tal como não pode ignorar que nunca ninguém, incluindo ele próprio, utilizou a revista para veicular propaganda de campanha. Isto significa que é impróprio pôr-se de fora, ele redactor, de um lado, e a direcção, do outro, que é o que resulta do que escreve na primeira linha: “não foi publicado o meu artigo por, segundo parece, não se enquadrar…”.

De resto, publica-se na íntegra o "Depoimento", apesar destas incorrecções, porque não custa nada a admitir que a censura é, de facto,  um mal planetário, sobretudo nas ditaduras...



NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


(Amadeo de Souza-Cardoso)




A vida no seu deslizar pelo tempo acaba por semear raízes na nossa memória que brotam em flor quando procuramos acordar o passado. Sobretudo o passado mais longínquo parece renascer com cores diferentes daquelas com que o vivemos. Os lugares e as pessoas aparecem no presente mais vibrantes, festivas e com um sentimento cativante, algumas com imensa ternura. Eram os dias da eternidade, da esperança que rompia o medo e saltava sobre os mais diversos obstáculos que a cada esquina do tempo surgiam. A cada amanhecer descobríamos um sorriso no rosto de cada pessoa que nos tombava no olhar e crescíamos na dureza granítica das dificuldades, rompendo o abismo com a força hidráulica das máquinas construtoras. Viajávamos pela cidade como numa floresta, descobrindo os recantos sombrios, alimentando de luz os musgos invernosos e solidificando as paredes que erguíamos. Vivíamos o futuro como se já tivesse chegado, soletrávamos as letras dos poemas que nos queriam proibir de ler e ensaiávamos melodias que nos conduziam por avenidas amplas e sem fronteiras. Agíamos como se fôssemos imortais, pensando nos soldados de Dario, e cada um movia-se como se fosse parte de uma imensa coluna de blindados à conquista do amanhã. No silêncio das tardes sem fim, com o olhar em alerta percorríamos as ruas do velho burgo, as suas vielas esquecidas, com as suas quintas escondidas atrás de antigos muros de onde irradiavam lanços de roseiras florindo misturando-se com buganvílias extensas. Interiorizávamos o sentimento de que vivíamos em constante primavera, como se fosse uma festa da vida, um júbilo contagiante que nos impulsionava para a não desistência. E quando a noite chegava, por entre as sombras nocturnas, pelos bairros e ruelas, imitando o poema que falava de liberdade, espalhávamos a voz daqueles que não se viam, aqui e ali e mais adiante, como se a luz dos escassos lampiões nos indicassem o caminho onde só existiam rios que corriam para o mar. Eram as madrugadas sem fim que nos levavam sem descanso para diante. E a cada jornada sentíamos a queda de uma pedra do muro que nos tapava o futuro, que nos impedia de alcançar os dias serenos com que construíamos sonhos. E não faltava tempo, alcançávamos sempre o que não conseguíamos medir, mas pulsava em nós como uma canção que a memória soletrava baixinho. E encontrávamos olhares na quietude dos fins de tarde quando a luminosidade nos começava a apresentar a noite, eram olhares com tanta luz que acendiam de novo o dia e nos descansavam a alma em sonhos impossíveis. Para além do nosso, havia os olhares dos outros, daqueles que por nós passavam, nos rodeavam, entre os quais nos movíamos como parte de um todo que nos servia de refúgio. Cada um com a sua rotina, o seu trabalho, o seu mundo de dificuldades e as suas quimeras guardadas na amargura do tempo sem fim. O caminho do rio e do mar, os navios que iam e vinham, as pontes da travessia unindo lugares e fusionando uniões que permitiam um caminho mais largo, menos penoso, mais fortificante. Está tudo tão longe e ao mesmo tempo ainda se sente o pulsar daqueles dias plenos de fraternidade, de almas comuns que se amparavam na solidão silenciosa de um caminho que podia ser longo. “Unidos como os dedos da mão”, perseguíamos utopias, desses sonhos que só se alcançam caminhando, e a cada vitória, a utopia afasta-se um pouco mais, como nos explicou esse imenso escritor uruguaio, e de novo voltamos a caminhar. Sentados agora na arca do tempo, olhamos para o longe com o sentimento do presente e chega até nós o toque do tambor daqueles que insistem em desbravar bosques fechados com as mãos livres de quem resiste. 

DEPOIMENTO

Manuel Joaquim

https://quadricultura.pt/wp-content/uploads/2019/01/201404-04-CC-L%C3%A1pis-Azul-14.jpg




Na Periscópio de Março passado não foi publicado o meu artigo por, segundo parece, não enquadrar-se no espírito da revista, apesar da mesma não pretender pôr em causa a liberdade política do autor e o texto ser da sua exclusiva responsabilidade. 

A vida não está fácil para qualquer censor. Mas a censura, hoje, Já não se faz com o lápis azul como antigamente. Há decisões políticas à escala global para proibir determinados órgãos de comunicação social e determinados assuntos que ponham em causa a voz do dono.

Já antes da guerra na Ucrânia os sites da Rússia, da China e de outros países foram bloqueados. Brevemente haverá mais restrições. A União Europeia, na sua última reunião, decidiu nomear um finlandês para elaborar um relatório para estabelecer regras na comunicação social a nível europeu para acabar com opiniões que ponham em causa as suas orientações sobre a guerra na Ucrânia (Europa?). No domingo passado, numa intervenção musical, uma cantora referiu-se que por este caminho seremos proibidos de cantar determinadas canções. 

Após o 25 de Novembro a censura fez-se com perseguições e despedimentos de jornalistas, privatizações e vendas de órgãos de comunicação social e o recrutamento de muita gente ligada aos novos poderes. Agora está aí com passadas invisíveis e o trabalho dos censores será fácil com a utilização de algoritmos que tomarão as convenientes decisões, o que, aliás, já se verifica. A imprensa não é livre e brevemente vai ser mais amordaçada.

A maioria dos comentadores são escolhidos a dedo. Uns expressam as suas opiniões, outras as opiniões de quem servem. Alguns sofrem de dissonâncias cognitivas que é um conflito mental entre os factos e o que pensam, seguindo em muitos casos um determinado guião. Para estes, existem países governados por ditadores, autocráticos, com falsas eleições, manipuladores e tudo o mais, mas são estes mesmos que passam o dia a proibir, a reprimir, a censurar e a intervir em casa alheia. Pretendem que os factos coincidam com o que pensam.

No domingo à noite assisti a um debate na CNN, sobre a guerra na Ucrânia e sobre o ataque terrorista em Moscovo, entre um senhor chamado embaixador José Vítor Silva Ângelo, nascido em 1949, no Alentejo, que foi secretário-geral da ONU, que passou anos em vários países de África como representante da ONU e que pelos vistos é conselheiro de segurança nacional, e o major-general Agostinho Costa. O senhor Vítor Ângelo depois de vários comentários e referindo as suas experiências defendeu a opinião de que o ataque terrorista tinha sido um autogolpe de Putin para justificar ataques a sério à Ucrânia. O major-general Agostinho Costa disse-lhe que os comentários não devem ser infantilizadores para os espectadores e devem ser baseados em factos. Que a Rússia tem feito ataques muito a sério na Ucrânia, não precisa de pretextos para intensificar a guerra. O embaixador, perdendo as estribeiras, declarou que o major-general para falar com ele tinha que se pôr em sentido e bater-lhe continência. 

O embaixador deve dizer que experiências teve de terrorismo ao longo da sua vida especialmente nos países africanos por onde passou para ficarmos mais esclarecidos. 

Do Poeta Palestiniano, Tawfiq Zayyad (1929 – 1994), transcrevo da revista O Militante, Novembro/Dezembro 2023, parte do poema

AQUI FICAREMOS

(…)
Aqui ficaremos
Façam-nos o pior
Nós guardamos a sombra
Da oliveira e da figueira
Nós semeamos as ideias
Qual fermento na massa
Os nossos nervos estão enregelados
Mas o fogo do inferno aquece os nossos
corações.

Se tivermos sede
Espremeremos as rochas
Se tivermos fome
Comeremos a terra
Mas nunca partiremos.
O nosso sangue é puro
Mas não o pouparemos.
Aqui temos o nosso passado
O nosso presente
E o nosso futuro
O nosso futuro está atrás de nós.
Como se fôssemos vinte impossibilidades
Em Lydda, em Ramla, na Galileia
Ó raízes vivas agarrem-se firmemente
E penetrem no fundo da terra.

É melhor para o opressor
Refazer as suas contas
Antes que a roda desande
«Para cada acção há uma reacção» - ouçam
O que diz o Livro.

POESIA

Helena Serôdio










ENIGMA





Se eu passar para além da compreensão
Do mistério e do próprio pensamento,
Não procures mais a explicação
Porque eu vivo também nesse tormento...

O enigma do amor e da paixão
Faz-me sempre vibrar de sentimento,
Mas não pode atingir a perfeição
Porque em mim dura apenas um momento...

Consciente de mim não sei quem sou,
Meu amor, nada tentes desvendar
Porque assim o destino me criou.

Em mim tudo é estranho, sou suicida
E este inconformismo há-de frustrar
Tudo quanto sonhei na minha vida!...


01/03/24

200


NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Há momentos na vida em que não podemos ficar calados. Fazê-lo não só nos tornaria cúmplices como co-autores dos crimes. Como alguém escreveu num cartaz, “Devemos guardar silêncio quando as crianças dormem, mas não quando são assassinadas”. Há cinco meses que assistimos incrédulos e impotentes a uma monstruosa limpeza étnica sem precedentes na História moderna. Os números são assustadores e fazem desequilibrar qualquer tentativa de perceber o quão hediondo está a acontecer perante o nosso olhar. Trinta mil mortos civis, sendo que setenta por cento são mulheres e crianças, quinze mil crianças assassinadas, trezentas e sessenta mil casas destruídas, hospitais assaltados e desfeitos, mesquitas arrasadas pela base, bebés pré-naturos mortos nas incubadoras cujos médicos foram obrigados a abandoná-las pela força das armas, doentes mortos em unidades de cuidados intensivos por cortes da energia e de oxigénio, centenas de jornalistas assassinados, famílias inteiras bombardeadas e mortas, ambulâncias destruídas em sucessivos bombardeamentos, pessoal médico preso, cerca de duas centenas de trabalhadores das Nações Unidas assassinados, setenta mil toneladas de bombas sobre as casas de Gaza, ruas destruídas a buldózer em Gaza e na Cisjordânia, rebentamento das condutas de abastecimento de água, colunas de abastecimento bombardeadas, milhares de civis palestinianos presos, torturados e humilhados, populações intimadas a deslocarem-se para Sul e quando a Sul chegam são intimadas a fugir para Norte. Entretanto, são bombardeadas pelo caminho. Soldados judeus filmam-se enquanto destroem bairros inteiros e dedicam a proeza à mulher e aos filhos. É uma hecatombe. Procuramos palavras conhecidas como, infâmia, selvajaria, crime, mas são escassas para transmitirem o que ocorre na terra da Palestina. Temos de compor palavras novas. Não é inocente a acção de matar mulheres e crianças, é o futuro que estão a pretender dizimar. Israel é um país inventado. Forjado sobre uma das maiores aldrabices da História, “Um povo sem terra, para uma terra sem povo”. Nunca existiu, nem um aspecto nem o outro. Os judeus são unicamente um povo religioso, naturais e cidadãos dos mais diversos países do mundo, unidos apenas pela religião. Mais de noventa por cento dos actuais habitantes do Estado de Israel, são emigrantes ou filhos e netos de emigrantes. O que têm feito ao longo de setenta e seis anos é tornar a sua aldrabice em verdade através da expulsão maciça do povo autóctone. O Estado de Israel nunca cumpriu qualquer resolução das Nações Unidas, invadiu três vezes, o Líbano, a Síria, a Jordânia e o Egipto e ocupa ilegalmente territórios da Síria e da Palestina. Bombardeia outros países quando lhe apetece e lhe convém, sempre usufruindo de uma impunidade garantida pelas democracias coloniais. Não têm limite para as suas loucuras. Na definição do inenarrável George W. Bush, Israel é um Estado pária. Saramago escreveu um dia que no interior do Estado de Israel existe um campo de concentração onde vivem cinco milhões de palestinianos. Mas o Estado de Israel há muito se converteu num hospital psiquiátrico a céu aberto, onde psicopatas incuráveis se passeiam com toda a impunidade para os seus crimes. O à vontade com que descrevem os seus intentos criminosos não é apenas perturbadora, deixa-nos na perplexidade de tentar compreender como foi possível chegarmos aqui. As democracias coloniais inventam narrativas sempre que pretendem actuar como imperialismo colonizador. Para a destruição da Jugoslávia e da Líbia, auto-denominaram-se, «comunidade internacional». Para a guerra que grassa na Ucrânia há dez anos, a narrativa passou a ser, «Ocidente colectivo». Como já todos percebemos, o «Ocidente colectivo» são trinta e cinco países, mas como há dias concluiu o delicioso Borrell, “O domínio do «Ocidente colectivo» está a chegar ao seu fim”. Mas para a cobertura dos crimes aterrorizantes do Estado Judeu a narrativa passou a ser «Israel tem direito a defender-se». Pela primeira vez na História, o país colonizador e ocupante tem «direito a defender-se» perante os ocupados, os colonizados, como se a vítima se transformasse em opressor. A ser verdade esta narrativa ainda teríamos o exército nazi com direito a defender-se dos maquisards franceses. Como se a destruição de Oradour-sur-Glane, se transformasse de um miserável e monstruoso crime de guerra num direito de defesa. É em absoluto a perda total da razão, do equilíbrio, é o declive para o fim de um domínio colonial de quinhentos anos que leva as elites do «Ocidente colectivo» a um destempero sem freio. De resto, experiência de arrasar aldeias, expulsar e matar os seus habitantes e aplanar o terreno fazendo desaparecer qualquer evidência dos crimes, é experiência que não falta aos judeus do Estado de Israel. Mas a narrativa dos judeus não se queda no «direito a defender-se», criou uma outra para a acção militar dos grupos armados palestinianos no dia 07 de Outubro, «o horrendo massacre do Hamas». Quando as evidências, os factos e as provas começaram a acumular-se – dos 1200 mortos judeus, 40% eram militares no activo e na reserva, gente armada, e os restantes foram mortos pelo bombardeamento aéreo e de blindados do exército judeu ou em fogo cruzado -, o colectivo de loucura que domina o Estado, aprovou uma lei que criminaliza quem contestar a narrativa do governo. E a quem contesta qualquer direito ao Estado ocupante, transformam-no em «anti-semita» como se o povo árabe não fosse também um povo semita. A brilhante acção militar das forças palestinianas de Gaza, veio trazer para a arena política mundial o sofrimento de um povo que leva já oitenta anos de resistência, milhares e milhares de mortos, outros tantos milhares de prisioneiros e milhões e milhões de expulsos ou condenados a viver em autênticos campos de concentração. Apesar da fraulein europeia ter corrido para Jerusalém para abraçar o seu estimado Bibi, numa visita infamante e de absoluto desprezo pelo povo da Palestina, o seu Bibi na sua vivência demencial não se apercebeu que o mundo em redor está a mudar e nem as suas nem as narrativas do «Ocidente colectivo» têm caminho para singrar. Já não basta a frase dos senadores romanos, «até quando vais tu Catilina abusar da nossa paciência». Já não basta, a paciência esgotou-se perante gente a viver demencialmente na pré-história, acreditando, como os fanáticos do Texas e da Guiana nas décadas de 70 e 80, que são um «povo eleito e escolhido». Os mortos, feridos e amputados do exército judeu acumulam-se aos milhares e a resposta para os milicianos do Hezbollah ou dos Hutis do Iémen é já de quem está a perder o fôlego. O Estado de Israel na sua violência cruel, desumana e impune subiu tão alto que a partir de Outubro só pode descer e sem dúvida que vai declinar, até aprenderem a conviver, no território que assaltaram, com o povo milenar que ali habita. Como canta a cristã libanesa, Julia Boutros, «resistiremos» (1). Sim, os palestinianos continuarão a fazer o que fazem há oitenta anos, RESISTIR. É certo que sobre a terra queimada e revolvida pelas bombas de Gaza e da Palestina já não se ouve o chamamento à oração do muezzin. Mas do subsolo da terra ardida, nasce um grito dos sobreviventes que não perdoarão ao mundo se este permitir, de novo, que os crimes do Estado Judeu continuem impunes.


1) https://www.google.com/search?q=julia+boutros%2C+palestina&rlz=1C1GCEA_enPT795PT795&oq=julia&gs_lcrp=EgZjaHJvbWUqBggBECMYJzIGCAAQRRg5MgYIARAjGCcyDggCECMYExgnGIAEGIoFMgcIAxAuGIAEMgoIBBAuGNQCGIAEMgoIBRAuGNQCGIAEMhMIBhAuGIMBGK8BGMcBGLEDGIAEMg0IBxAuGIMBGLEDGIAEMgYICBAAGAMyBggJEAAYA9IBCTU0NDNqMGoxNagCALACAA&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:3b744042,vid:834tyxBxksU,st:0

A CRUCIFICAÇÃO BRANCA

António Mesquita


"A crucificação branca" de Marc Chagall




O passado não passa. Transforma-se, como disse Lavoisier de tudo.

Não se pode dizer que tudo começou com a criação do Estado de Israel na Palestina, num território já ocupado. Na altura todos éramos alemães, com uma inextinguível  culpa colectiva. Porque o que se convencionou chamar de Holocausto que era, na Grécia Antiga, o sacrifício religioso dos animais na fogueira para agradar aos deuses, foi, na verdade, uma estreia do Estado moderno, com a técnica disponível na altura, na reconversão dum problema cultural de sempre que não estava só na cabeça dum cabo de guerra e pintor falhado.  O que o distingue dos inúmeros 'progroms' da Idade Média  é a escala e a forma estato-industrial do fenómeno. 

Na Europa, o ódio ao judeu não nasceu num contexto muçulmano, nem religioso - não se queria vingar a crucificação do Cristo -, e no século XX tinha mais afinidade com as teorias sociais (ligadas à usura, ao enriquecimento e à finança) do que com a religião. Nos nazis, havia também, paradoxalmente, um darwinismo ideológico
que os levava a considerar o seu inimigo de eleição melhor tratado pelos veterinários do que pelos médicos.

Fomos todos  coniventes por deixar que acontecesse. O preconceito estava lá bem no fundo. Para o que contribui enormemente o culto separado da identidade. O judeu não se imisce e pensa no espaço do Livro que só dum modo secundário é um espaço político.

Pode dizer-se que esse povo dentro do povo sempre foi, na essência,  uma espécie de casta com vantagens organizacionais e cognitivas em relação ao comum dos cidadãos. A perseguição e a inveja foram em todos os tempos o seu lote.
 
Näo foi por acaso que os judeus dominaram a finança na Idade Média e no capitalismo moderno. Há razões para a elevada percentagem de genialidade nas ciências e na literatura provinda desse meio "protegido do tempo".

No livro de Martin Amis que inspirou o filme de Glazer "The zone of interest", Boris,  um coronel da Waffen-SS, atribui aos seus  compatriotas uma certa grosseria, face aos Franceses, por exemplo, que em qualquer classe têm mais 'finesse' e espírito. Teriam eles  sido capazes de criar os 'Lager' e os camiões de gás, o Holocausto que todos os dias é recalcado nos media?

O caso da Alemanha é intrigante. Por que é que foi ali que o horror aconteceu? Não podemos salvar essa nação da responsabilidade ilimitada, mesmo se os factos ultrapassam cada indivíduo, seja ele qual for, muito para lá da ideia de vontade ou de destino. Dum lado, a música, a filosofia e os poetas. Do outro, a grosseria da nação, a sua insensibilidade cósmica - ou é outra coisa que só a tragédia grega pode abordar?  Em Amis ainda, o militar que cogita no absurdo do extermínio em prejuízo das necessidades básicas da guerra mundial e que compara a finura de qualquer francês com o tosco germânico, dá voz a um  sentimento comum a que uma personagem como Paul Doll (comandante do campo) só pode fugir pela completa alienação, conjugada com a ocasional revolta do corpo através do vómito.

Mas o passado não é ficção televisiva ou cinematográfica. E quem menos o sente assim são naturalmente os judeus. Para os Alemães pode ser um monstro íntimo de culpa (que não impede o ressurgimento de uma minoria nazi), mas para os judeus é um destino "bíblico" que, como se vê em Gaza, agora, se sentem investidos duma missão divina de resgatar o Holocausto, se for necessário impondo-o numa versão genocidária ao "outro" palestiniano. 

Na actual situação em Gaza, duma certa maneira, tudo poderia ter sido previsto, em função da história viva. E é por isso que é difícil não nos sentirmos todos culpados. É por escapismo que acusamos Netanyahu, como se cada israelita no fundo de si mesmo não se identificasse com o massacre dos "amalecitas".

É pouco dizer que as partes directamente envolvidas, a nação-exército justiceira e o terrorismo subterrâneo apostado no extermínio do Inimigo de religião, são incapazes de deter o caos e a desumanização de todos os beligerantes. E nenhuma força exterior parece poder fazê-lo também. Acima de tudo, a paz é impedida pela ideia "total" de cada parte sobre a outra e sobre si própria. Porque os muçulmanos são o que são (fanáticos, mosóginos e dum anacronismo ululante) e os israelitas são o que são (sionistas, cúpidos e convencidos da sua superioridade - Boris, no romance, diz: "The Jews had to come down from their high horse." ).

Como diz Bruno Latour (*): "Nascemos no pós-guerra, tendo, atrás de nós, os campos negros, e depois os campos vermelhos, abaixo de nós, as fomes, por cima das nossas cabeças, o apocalipse nuclear, e  diante de nós, a destruição global do planeta. É difícil, com efeito, negar os efeitos de escala, mas mais difícil ainda é crer sem hesitação nas virtudes incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas ou económicas. E, no entanto, nascemos no meio das ciências, só conhecemos a paz e a prosperidade, e adoramos - é preciso confessá-lo - as técnicas e os objectos de consumo que os filósofos e os moralistas das gerações precedentes nos aconselham a abominar."

Ou seja, Latour está a dizer-nos que não devemos julgar para além do que sabemos, o que é um pensamento tão antigo como Sócrates. Mas o mais comum dos desfechos é, infelizmente,  a cicuta. E como é que termina o filme de Kubrick "Dr. Strangelove"? Com cowboiadas e cogumelos atómicos...



(*) "Nous n'avons jamais été modernes"

DA VERDADE OBJECTIVA

Mário Martins

https://pt.quora.com/Qual-%C3%A9-a-sua-opini%C3%A3o-sobre-o-conceito-de-verdade-subjetiva



“A verdade é vista como um fenómeno oracular e não como uma realidade objectiva; é aquilo que o poder declarar que é verdadeiro, não há factos acima da opinião relativa do chefe e da sua ideologia.” 
Timothy Snyder, citado por Henrique Raposo in “O fascismo tem um nome: pós-verdade”

Revista do Expresso, 2023-10-20



Partindo da consideração de que “O jargão pós-moderno, que manteve nas últimas décadas um mantra absoluto no coração da cultura ocidental (segundo o qual) não se pode ter discussões morais, pois tudo é relativo; não há uma verdade válida acima dos grupos historicamente situados, cada grupo tem a sua ‘verdade’; só há pontos de vista.”; bem como da identificação de casos típicos da pós-verdade (Trump é um homem amoral, e o trumpismo é a manifestação de um mal; os tories ingleses que promoveram a fraude do Brexit diziam que os factos são para totós), Raposo conclui, em forma de aviso, que “Se não reassumirmos que existe de facto uma verdade objectiva e impessoal acima de pessoas e facções, o mal triunfará e a esquerda pós-moderna e a direita randiana* serão os idiotas úteis do fascismo 2.0.”

Se subscrevo esta crítica da pós-verdade, essa espécie de guarda-chuva conceptual que abriga os sofistas da contemporaneidade, praticantes de toda a sorte de desmandos, desde o menosprezo da ciência e da prova, até ao logro da difusão de notícias falsas, importa, no entanto, examinar mais detidamente o conceito de verdade objectiva.

Contextualizemos, primeiro: o que queremos dizer quando falamos de verdade objectiva? No meu artigo de Dezembro passado defendi que não é humanamente possível aceder à verdade natural ou absoluta, ao âmago e ao sentido da Natureza. Donde, a verdade objectiva é a que se gera dentro do perímetro humano (o qual ninguém pode ultrapassar seja por que forma for), isto é, na relação entre os homens (a pessoa x está ou esteve com a pessoa y no local z) e entre estes e o mundo que os cerca (ontem, na praia, apanhei um valente escaldão). Verdade objectiva, sim, mas humana.

Dizem os filósofos clássicos (v.g. Kant – 1724-1804) que “A verdade material deve consistir na concordância do conhecimento com (um) objecto determinado ao qual se refere (…)” (Dicionário de Filosofia, de Jacqueline Russ)

Já na contemporaneidade, em Habermas (n. 1929) a verdade confunde-se com a validade intersubjectiva ou consenso. Se uma proposição não é submetida ao crivo da comunidade, nada se pode dizer sobre a sua falsidade (Wikipédia)

Asserções sobre as quais paira o fantasma do Relativismo, conceito segundo o qual os pontos de vista não têm uma verdade absoluta ou uma validade intrínseca, mas apenas um valor relativo, subjectivo, e de acordo com diferenças na percepção e consideração; conceito este que, no entanto, foi desde há muito refutado pelo filósofo grego Sócrates, pela pena de Platão: se são verdadeiras todas as opiniões mantidas por qualquer pessoa, então também é preciso reconhecer a verdade da opinião que considera que o relativismo é falso; ou seja, se o relativismo é verdadeiro, então ele é falso (desde que alguém o considere falso). 

Ao invés, a imagem em epígrafe sugere que a verdade é relativa uma vez que, à primeira vista, o mesmo objecto aritmético tem duas leituras diferentes. O facto, todavia, é que não se trata de um único objecto aritmético, mas sim de dois: um 6 e um 9, tal dependendo da posição oposta dos dois observadores.

Em apoio da sua crítica à pós-verdade, Raposo invoca a ideia de razão em Platão a qual questiona e se fundamenta na ideia de justiça. “O que é a justiça? O que é uma sociedade justa? É a nossa sociedade actual uma sociedade justa? interroga Raposo para, de seguida, concluir: Este confronto entre a ‘medida justa’ – platónica e kantiana – e a realidade é a base da nossa civilização, da filosofia, do direito, da literatura. E esta ideia universal, esta ‘medida justa’ para a qual devemos apontar a nossa inteligência, é acessível a qualquer ser humano, seja qual for a sua raça, idade, sexo, nacionalidade ou mesmo época histórica.”

Observo porém, que as diferentes culturas e valores civilizacionais constituem muros altos que só a ciência, com o seu método e linguagem verdadeiramente universais, consegue transpor. A ciência une o que a cultura desagrega, infelizmente com grande vantagem para esta, a não ser que, eventualmente, venha a prevalecer uma cultura verdadeiramente planetária.


*Ayn Rand (pseudónimo de Alisa Rosenbaum), foi uma filósofa e romancista americana, de origem judaico-russa, que no seu mais famoso romance “A Revolta de Atlas”, coloca uma personagem a defender que “Não existem factos objectivos. Todos os relatos sobre os factos são apenas as opiniões de alguém. Por isso, é inútil escrever acerca de factos […] Nada é absoluto. Tudo é uma questão de opinião.” 

01/02/24

199

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Na Primavera voltáramos aos antigos encontros. Descido o caminho empedrado que lembra as velhas jeiras romanas, chegámos àquele espaço remanso coberto por uma abóboda gótica de vegetação. Para trás ficava o ruído da mundanidade, o atropelo do tempo viajando célere sempre atrasado para algo incompreensível e que arrasta os humanos para uma vida sem vida, dominada pela ansiedade e tanta angústia. Ali te encontramos sentada no sopé do secular carvalho tão protector, tão retemperador das agruras da vida. O teu olhar em espaço tão luxuriante tinha a beleza das coisas perfeitas, a pureza dos sonhos inalcançados. «Escuto o sussurrar da água corrente, do seu canto melodioso e apaixonante. Como escreveu o poeta? ‘Um ribeiro lustral, canta dia e noite’ e a entoação da sua corrente saltitando ou contornando as pedras se mistura com o silêncio apaziguador na companhia de pedras milenares», disseste à nossa chegada. «Procuro recriar no pensamento o trabalho dos monges, mil anos antes de nós, moldando a pedra uma a uma no interior deste tecto verde e azul e acastelando-as até adquirirem a forma de igreja e mosteiro, tão longe de tudo e tão perto do nada se exceptuarmos a natureza, e tudo isso parece incompreensível ao nosso tempo, pleno de técnica e ciência», falavas enquanto as mãos desenhavam gestos. «Por este território passaram romanos até à chegada dos que entregavam a vida à purificação perante Deus e há mil anos atrás por aqui se deixaram ficar, no trabalho árduo da natureza e na entrega a um ideário divino», continuavas com a serenidade dessa voz que nos chega como um murmúrio de vida. «Sabias que por essa época em que estes homens acumulavam pedras com essa arte que ainda hoje nos toca, pela Europa viajava o papa Urbano II chamando a nobreza à guerra, à guerra santa contra os infiéis? Aleixo I Comneno, o senhor poderoso de Bizâncio recorreu a Urbano num jogo político para salvar o trono assaltado nas suas margens por eslavos a Oeste e os seljúcidas a Leste, aproximando-se de Constantinopla, a cidade grande do Oriente que subsistiu a Roma e para obtenção do auxílio que precisava, invocou o discurso do medo, do horror que grassava sobre o sagrado túmulo de Jerusalém como forma de incentivo àqueles que pretendia, marchassem para o salvar. Numa igreja dividida, essa mobilização de homens para cavalgarem até à Terra Santa era algo que também interessava a Urbano. O papa viaja até Clermont onde fará o discurso apelativo da cruzada sobre a cidade da Palestina e não poupará nas palavras para insuflar na nobreza do Ocidente da Europa a urgência de abandonar as suas riquezas e iniciar o trajecto para a salvação do mundo cristão. ‘Caros irmãos, eu, Urbano, sumo pontífice e, pela graça de Deus, prelado de todo o mundo [a ousadia já vestia largas vestes, nessa época], com uma necessidade premente vos interpelo, servos de Deus nestas regiões, enquanto mensageiro de cuidados divinos.’(1) Esclarecido o seu poder, o papa passa a identificar o horror que no Oriente necessitava de ser aplacado e esmagado. ‘Queremos que saibam o triste motivo que nos trouxe à vossa terra e qual a emergência para vós, e para todos os fiéis, que nos trouxe aqui’(1). A descrição dos crimes cometidos pelos «persas», assim os chamava Urbano, não tinham paralelo na história da humanidade, ‘Derrubam altares depois de os conspurcarem com os seus excrementos, circuncisam cristãos e despejam o sangue daí resultante sobre os altares ou para as fontes baptismais. Quando pretendem infligir uma morte realmente atroz, trespassam o umbigo do indivíduo, puxam-lhe os intestinos, prendem-nos a um poste e fazem-nos correr em volta até que, as entranhas arrancadas do interior, a pessoa tomba sem vida. Disparam flechas contra outros atados a estacas; outros ainda, de pescoço bem esticado, são atacados com as espadas, tentando decepar-lhes a cabeça de um só golpe. E o que dizer sobre o atroz tratamento dados às mulheres, sendo melhor manter o silêncio, sem que entremos em demasiados pormenores?’(1) Mil anos passados não te diz nada este discurso?», perguntavas no interior de uma estupefação sem limites. «Não estamos de novo a escutar esta arenga fantasista, violenta e mentirosa, em nome de um Amaleque qualquer, vingativo, cruel e criminoso através da palavra de gente demencialmente doente, parasitária e socialmente monstruosa? E não correm de novo os senhores da Europa e o Ocidente para salvar essa Jerusalém mítica mesmo que para isso – tal como há mil anos atrás – tenham de arrasar o território sem diferenciar bens materiais e esse bem supremo que é a vida? Urbano II apresentava uma justificação para além dele, quer dizer, não era a sua vontade ou interesse pessoal, mas antes, da divindade celestial que representava na Terra. ‘Não falo em meu nome, é Deus quem vos apela, como mensageiros de Cristo, para que incitais todos os homens, de qualquer posto, cavaleiros e soldados rasos, ricos e pobres, a que corram a extirpar esta raça vil das nossas terras e que ajudem a tempo os habitantes cristãos’(1). Escusado será dizer que essa Primeira Cruzada, quer na travessia da Europa quer no assalto a Niceia, a Antioquia e a Jerusalém, foi um cortejo de crimes e tormentos sobre a população nativa, mas que importa tal, se Bizâncio foi salva e o Santo Sepulcro libertado? Os séculos passaram, mas novamente alguns psicopatas invocando o nome de um deus fantasioso, um Amaleque desenterrado de uma ficção bíblica, despeja milhares de toneladas de bombas sobre os impuros, os amaldiçoados para salvação de ‘um povo escolhido’. Por muito que a civilização evolua, a maldade humana na babugem do poder mantém a sua corte de abominação e não pára de bater nos tambores da guerra.» Havia um estremecimento de tristeza no teu olhar enquanto construías um discurso que mostrava o pavor do nosso tempo, tão cheio de democracia, de liberdade, de direitos humanos, tudo distribuído como a riqueza. Quando o silêncio já se prolongava, saíste de um momento de reflexão e prosseguiste, «há historiadores que defendem que a Primeira Cruzada foi o início da colonização do mundo pelo Ocidente e se pensarmos que a nobreza europeia cavalgou para Jerusalém com a cruz no peito, a espada na mão e com a intenção de trazer os alforges cheios do que roubaram, pelo caminho e pelo tempo que lá ficaram, facilmente compreenderemos o que foram os séculos seguintes. Estão agora no seu declínio mas não esqueças que os ‘impérios morrem matando’, pelo que talvez seja adequado, como os monges há mil anos atrás, nos refugiemos neste espaço de silêncio, onde podemos espreitar ao mesmo tempo a beleza do verde da natureza e o azul do universo». A tarde declinava, vagarosa mas constante. Os veios de luminosidade solar que penetravam por entre a folhagem iam diminuindo de intensidade e geravam o aumento da frescura. Subimos juntos, o caminho de pedra dura e ao alcançarmos o primeiro patamar nivelado, olhamos uma última vez para o cenóbio que a incúria humana e as agruras do tempo vão derrubando, mas uma cruz de ferro esvoaçando sobre a pedraria da igreja, mantém-se altaneira e apelativa, e ao contrário daquela que os nobres levavam no peito, esta acolhe-nos num ermo de silêncio e, mesmo que por momentos, protege-nos da loucura do poder e dos poderes e dos sátrapas com os seus exércitos de loucura.



(1) Peter Frankopan, em “A Primeira Cruzada - o apelo do Oriente”, Crítica, 1ª edição, Lisboa, Março de 2023



"A PAZ É POSSÍVEL"

Manuel Joaquim

http://timerime.com/en/event/725604/Capela+de+Vallauris/




Nos anos 70 do século passado Portugal estava em guerra nas colónias africanas onde muitos jovens morreram ou ficaram estropiados para toda a vida, com desgraças para as suas famílias, para os amigos e para o país em geral.

Criado em 1967 pelo Papa Paulo VI, em 1 de Janeiro de cada ano, a Igreja Católica comemora o Dia Mundial da Paz. Em 8 de Dezembro de 1972, O Vaticano publicou uma mensagem do Papa para o dia 1 de Janeiro de 1973 sob o tema “A PAZ É POSSÍVEL”.

A mensagem diz que a PAZ é possível, se for verdadeiramente querida, e se a paz é possível, ela é obrigatória.

No Porto foi publicado um cartaz com a frase “A PAZ É POSSÍVEL”. 

Lembro-me de conversar com Alberto Andrade para comprarmos esse cartaz e fazer um quadro e o colocarmos na sala da Direcção do Sindicato de Seguros onde tínhamos actividade.

Recordo-me das reacções de alguns dirigentes ao depararem com o quadro. Alguns manifestavam receios por causa da Pide, outros engoliam em seco, e outros queriam saber quem tinha tomado a iniciativa.

Ainda estava presente o Papa Paulo VI ter recebido em audiência, tempos atrás, dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas, o que na altura causou problemas diplomáticos graves entre Portugal fascista e o Vaticano.

Falar na PAZ antes do 25 de Abril era subversivo.

Nos novos tempos falar da PAZ parece-me que continua a ser subversivo. As pessoas que defendem a PAZ são consideradas traidoras (pelas que defendem a guerra). As pessoas que defendem melhores condições de trabalho, melhores salários, melhores reformas, melhores escolas, melhor saúde, mais habitação, são simplesmente ignoradas. As suas iniciativas não passam nos jornais, nas rádios, nos telejornais, enquanto outras, são anunciadas até à exaustão. 

Assistimos na Europa à multiplicação de vozes para os países se prepararem para a 3ª guerra mundial. São as vozes dos fabricantes de armamentos e das indústrias farmacêuticas para enriquecerem cada vez mais à custa dos dinheiros desviados da melhoria das reformas dos pensionistas, dos serviços de saúde, dos serviços da educação.

A Europa, tal como a conhecemos neste momento, está transformada numa colónia, dominada pelos EUA. Os dirigentes da União Europeia são figurões sem formação, lacaios que se limitam a cumprir ordens de quem manda, tendo como contrapartidas chorudas remunerações e prebendas.

Neste momento decorrem às portas da Rússia, manobras militares com mais de 90.000 militares com os respectivos materiais de guerra. Portugal também participa. Vários meses a prepararem-se para a guerra, a gastarem o dinheiro que faz falta para a melhoria das condições de vida das pessoas.

As autoridades da Letónia estão a expulsar cidadãos de origem russa, que são cerca de 25% da população. Os EUA vão colocar muito brevemente armas nucleares na Inglaterra. 
São provocações a mais para quem está do outro lado da barreira.

Utilizando as palavras de uma personalidade importante, “gente não tem instinto de sobrevivência”.  

Milhares de agricultores manifestam-se em França, na Polónia, na Roménia, na Suécia, na Hungria, na Moldávia, na Chéquia, Na Eslováquia e na Alemanha. Trabalhadores de outras actividades também se manifestam reivindicando melhores condições de trabalho e de vida.

Entretanto, vimos reuniões secretas de organizações fascistas onde já discutem planos para quando chegarem ao poder. Em 25 de Novembro passado reuniram num hotel em Potsdam, na Alemanha, empresários ricos, assessores do Partido para Alemanha (AfD), políticos da CDU e outros, onde discutiram a deportação massiva de imigrantes para um “país modelo” do norte de África. 

Não estão a inventar nada de novo. O Plano Madagáscar, delineado pelo regime nazi alemão em 1940, pretendia deslocar centenas de milhares de judeus europeus para a ilha de Madagáscar, na altura colónia francesa. Em 20 de Janeiro de 1942 os nazis decidiram ser mais fácil o extermínio das pessoas.

Agora é em relação aos imigrantes e não só. 

Ouvi uns dirigentes de Israel a dizerem que estão a discutir a criação de uma ilha artificial para deportaram para lá os palestinianos e que também estão a negociar com países africanos (Congo) para o mesmo fim.

Além dos fascistas alemães, são os judeus a recuperarem o mesmo plano dos nazis de 1940. 
View My Stats