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01/03/24

A CRUCIFICAÇÃO BRANCA

António Mesquita


"A crucificação branca" de Marc Chagall




O passado não passa. Transforma-se, como disse Lavoisier de tudo.

Não se pode dizer que tudo começou com a criação do Estado de Israel na Palestina, num território já ocupado. Na altura todos éramos alemães, com uma inextinguível  culpa colectiva. Porque o que se convencionou chamar de Holocausto que era, na Grécia Antiga, o sacrifício religioso dos animais na fogueira para agradar aos deuses, foi, na verdade, uma estreia do Estado moderno, com a técnica disponível na altura, na reconversão dum problema cultural de sempre que não estava só na cabeça dum cabo de guerra e pintor falhado.  O que o distingue dos inúmeros 'progroms' da Idade Média  é a escala e a forma estato-industrial do fenómeno. 

Na Europa, o ódio ao judeu não nasceu num contexto muçulmano, nem religioso - não se queria vingar a crucificação do Cristo -, e no século XX tinha mais afinidade com as teorias sociais (ligadas à usura, ao enriquecimento e à finança) do que com a religião. Nos nazis, havia também, paradoxalmente, um darwinismo ideológico
que os levava a considerar o seu inimigo de eleição melhor tratado pelos veterinários do que pelos médicos.

Fomos todos  coniventes por deixar que acontecesse. O preconceito estava lá bem no fundo. Para o que contribui enormemente o culto separado da identidade. O judeu não se imisce e pensa no espaço do Livro que só dum modo secundário é um espaço político.

Pode dizer-se que esse povo dentro do povo sempre foi, na essência,  uma espécie de casta com vantagens organizacionais e cognitivas em relação ao comum dos cidadãos. A perseguição e a inveja foram em todos os tempos o seu lote.
 
Näo foi por acaso que os judeus dominaram a finança na Idade Média e no capitalismo moderno. Há razões para a elevada percentagem de genialidade nas ciências e na literatura provinda desse meio "protegido do tempo".

No livro de Martin Amis que inspirou o filme de Glazer "The zone of interest", Boris,  um coronel da Waffen-SS, atribui aos seus  compatriotas uma certa grosseria, face aos Franceses, por exemplo, que em qualquer classe têm mais 'finesse' e espírito. Teriam eles  sido capazes de criar os 'Lager' e os camiões de gás, o Holocausto que todos os dias é recalcado nos media?

O caso da Alemanha é intrigante. Por que é que foi ali que o horror aconteceu? Não podemos salvar essa nação da responsabilidade ilimitada, mesmo se os factos ultrapassam cada indivíduo, seja ele qual for, muito para lá da ideia de vontade ou de destino. Dum lado, a música, a filosofia e os poetas. Do outro, a grosseria da nação, a sua insensibilidade cósmica - ou é outra coisa que só a tragédia grega pode abordar?  Em Amis ainda, o militar que cogita no absurdo do extermínio em prejuízo das necessidades básicas da guerra mundial e que compara a finura de qualquer francês com o tosco germânico, dá voz a um  sentimento comum a que uma personagem como Paul Doll (comandante do campo) só pode fugir pela completa alienação, conjugada com a ocasional revolta do corpo através do vómito.

Mas o passado não é ficção televisiva ou cinematográfica. E quem menos o sente assim são naturalmente os judeus. Para os Alemães pode ser um monstro íntimo de culpa (que não impede o ressurgimento de uma minoria nazi), mas para os judeus é um destino "bíblico" que, como se vê em Gaza, agora, se sentem investidos duma missão divina de resgatar o Holocausto, se for necessário impondo-o numa versão genocidária ao "outro" palestiniano. 

Na actual situação em Gaza, duma certa maneira, tudo poderia ter sido previsto, em função da história viva. E é por isso que é difícil não nos sentirmos todos culpados. É por escapismo que acusamos Netanyahu, como se cada israelita no fundo de si mesmo não se identificasse com o massacre dos "amalecitas".

É pouco dizer que as partes directamente envolvidas, a nação-exército justiceira e o terrorismo subterrâneo apostado no extermínio do Inimigo de religião, são incapazes de deter o caos e a desumanização de todos os beligerantes. E nenhuma força exterior parece poder fazê-lo também. Acima de tudo, a paz é impedida pela ideia "total" de cada parte sobre a outra e sobre si própria. Porque os muçulmanos são o que são (fanáticos, mosóginos e dum anacronismo ululante) e os israelitas são o que são (sionistas, cúpidos e convencidos da sua superioridade - Boris, no romance, diz: "The Jews had to come down from their high horse." ).

Como diz Bruno Latour (*): "Nascemos no pós-guerra, tendo, atrás de nós, os campos negros, e depois os campos vermelhos, abaixo de nós, as fomes, por cima das nossas cabeças, o apocalipse nuclear, e  diante de nós, a destruição global do planeta. É difícil, com efeito, negar os efeitos de escala, mas mais difícil ainda é crer sem hesitação nas virtudes incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas ou económicas. E, no entanto, nascemos no meio das ciências, só conhecemos a paz e a prosperidade, e adoramos - é preciso confessá-lo - as técnicas e os objectos de consumo que os filósofos e os moralistas das gerações precedentes nos aconselham a abominar."

Ou seja, Latour está a dizer-nos que não devemos julgar para além do que sabemos, o que é um pensamento tão antigo como Sócrates. Mas o mais comum dos desfechos é, infelizmente,  a cicuta. E como é que termina o filme de Kubrick "Dr. Strangelove"? Com cowboiadas e cogumelos atómicos...



(*) "Nous n'avons jamais été modernes"

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