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01/01/24

AS BENEVOLENTES

António Mesquita

"O 'Führervernichtungsbefehl' é uma coisa terrível. Paradoxalmente, é quase como uma ordem do Deus da Bíblia dos judeus, não é verdade? Agora vai, fere Amalek! Vota-o ao anátema, com tudo o que possui, sem piedade perante ele, mata homens e mulheres, crianças e crianças de peito, bois e ovelhas, camelos e asnos.

Você conhece o texto, vem no primeiro livro de Samuel. Quando recebi a ordem, foi isto o que pensei. E como lhe disse, penso que é um erro, que deveríamos ter tido a inteligência e a capacidade de descobrir uma solução mais... humana, digamos assim, mais em conformidade com a nossa consciência de alemães e de nacionais-socialistas. Neste sentido, é um fracasso." ("As Benevolentes" de Jonathan Littell)



As Benevolentes são as Euménidas de Ésquilo (525 a.C) na trilogia "Oresteia", depois de terem sido as Erínias, as Fúrias que perseguiam o herói com todo o mal que podiam como executoras do juízo supremo de Zeus, pelo assassínio de Clitemnestra, a mãe de Orestes, culpada aos olhos do filho de ter assassinado o pai, o chefe dos exércitos, Agamemnon. 

A justiça do pai dos deuses não seguiu o seu curso até à execução de Orestes, porque  o poder não unificado  da mitologia grega como que acolhe a complexidade do mundo. Uma filha de Zeus, Atena, protege o matricida. E é por isso que as Fúrias se transformam em Benevolentes, sob a figura das Euménidas.

Este intróito é necessário para explicar o título e a trama do Goncourt de 2006, "Les Ɓienveillantes" de Jonathan Littell, um americano, nascido em 1967, que estudou em Paris e escreve em francês.
As mais de oitocentas páginas deste "roman-fleuve"  descrevem as peripécias da vida dum jovem alemão, Maximiliano Aue, que atravessa a segunda guerra mundial na pele dum nazi,  culto e racional, o contrário dum espírito dogmático, aberto às dúvidas e às inquietações do tempo que um ocidental não filiado no NSDAP poderia partilhar até um certo ponto.

O livro está escrito em andamentos como uma partitura musical, ou não fosse Aue um melómano, entusiasta de Bach, de Schönberg e dos franceses do século XVII, como Rameau e Couperin. 

A peça de Ésquilo dá o mote às motivações pessoais do narrador, em que estão presentes o incesto a idealização do pai e o ódio matricial. Alguma complacência narcísica afecta a descrição das suas experiências   incestuosas e homossexuais.  Esses temas são como que o fundo compulsivo do narrador e são vividos, tal como o matricídio como que por um outro. 

O posto de Aue leva-o a presenciar algumas das piores atrocidades dos SS e a sua participação nos crimes é quase maquinal, como quando "acaba" a liquidação de judeus nos fossos do tipo "lata de sardinha", em camadas sobrepostas. Esse funcionamento automático, como roda da engrenagem, é apresentado como facto indiscutível, e "justificado" pelas necessidades da guerra e consequência de algumas tomadas de decisão erradas, mas forçadas pelas circunstâncias. 

Não se pode levar mais longe a negação da liberdade individual e o peso determinante das forças sociais e do não-humano. Como diria Bruno Latour (*), o transcendente do social e o da natureza convivem, paradoxalmente, com a imanência, a ideia de que somos senhores dos nossos actos e que podemos utilizar as forças naturais segundo o nosso alvedrio.

O que é novo neste romance contra a corrente é esta vontade de nos pormos na pele de autores ao mesmo tempo voluntários e involuntários dos crimes mais hediondos, pela sua organização sistemática, cometidos alguma vez por seres humanos. A abstracção que os justifica como necessidade da nação, do "volk", que foi buscar inspiração a alguma poesia translida e a filósofos traídos como Nietzsche, é apenas mais uma ilustração da ideia de Hannah Arendt da "banalidade do mal". O mal não é um abismo raro e insondável, mas pode tornar-se quotidiano e prosaico.

O mérito de Littell é obrigar-nos a compreender, através duma minúcia quase fractal, que exigiu um trabalho de pesquisa admirável,  como se pode pensar e fazer o mal radical quase sem nos envolvermos, numa superficialidade que não é outra coisa que a falta de penetração da verdade. Como o actual conflito em Gaza o demonstra pode-se com toda a boa consciência confiar à Inteligência Artificial a escolha dos alvos e massacrar com toda a limpeza e o profetismo duma sentença bíblica.

A aparição das Euménidas, no caso de Aue, que foi capaz, depois da guerra, de refazer a sua vida como fabricante de tecidos de renda, conforme o exemplo de tantos dignitários e membros do partido nazi é, no fundo, o reconhecimento de que não somos dignos da responsabilidade total implicada na ideia de liberdade. 

Ter nascido na Alemanha e no leste europeu há cem anos foi uma grande maldição e não só para os judeus. Só se salvaram os que fugiram a tempo. Basta imaginarmo-nos nesse lugar e nesse tempo para perdermos toda a boa consciência.



(*) "Nous n'avons jamais été modernes" de Bruno Latour






NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Definitivamente a fadiga venceu-nos. Vagueamos pelas pequenas ruas de Numão apenas para reter o desassossego de partir como quem foge, como abandono de uma tarefa inconclusa. Nesse desarrumar dos passos, deixamos o pensamento à solta com a despreocupação de quem tem tempo de sobra para o que lhe resta fazer. O olhar persegue o horizonte montanhoso, colinas que se inclinam em socalcos trabalhados pela mão humana. Séculos ou mesmo milénios viram os seres humanos desafiarem tempos meteorológicos para moldar a terra e a pedra. Ergueram castros, castelos e as suas poderosas construções perdem-se numa eternidade que foi e continua a ser desconhecida para os seus construtores. Todos eles se extinguiram e a pedra na sua robustez permanece altiva em desafio ao tempo. Que sonhos moviam estas populações em épocas tão remotas que até a actual memória humana lhe perde referência. A vida humana evolui entre duas não existências, a do nascimento e a da morte que nos reduz à insignificância de uma poeira espalhada pela menor das brisas. Cada ser humano pode descobrir todo o passado que encontrou ao nascer, mas vai desconhecer de forma absoluta todo o futuro que vai acontecer após a sua extinção. Fica apenas um número, talvez um nome, no caderno infinito dos registos da vida. Assim nos perdemos entre Numão e Freixo, entre duas aldeias e dois castelos. Freixo singrou quando Numão iniciou um declínio que lhe fez perder importância. A descida em direcção a Côa é deleitosa, como um caminho sem pedras, desliza-se com macieza enquanto os olhos se deliciam na contemplação das vinhas, dos vinhedos, dos socalcos, da cor da terra. O céu está puro com o azul perfeito, mas a qualquer momento esta serenidade pode alterar-se. Numa curva para a esquerda aparece-nos o IP2 e sentimos esse desprazer da urbanidade, do movimento das grandes rotas. Cruzamos sem nos determos em pormenores e logo subimos pela N102 num trajecto conjunto com a nossa estrada. É quase impensável percorrer a N222 e não entrar em Vila Nova, mas contornamos a vila. Primeiro em direcção a Almendra e logo de seguida na rota do Museu do Parque Arqueológico do Vale do Côa. É uma nova viagem aos confins da humanidade, à rudeza de tempos que nos parecem hoje inclementes e no entanto, aqueles seres humanos, pese embora a brevidade da vida que tiveram, sonharam, reflectiram e gravaram na pedra o mundo que os rodeava, a vida de que dependia a sua e regressamos aos pensamentos matutinos, ao paradoxo de a alma humana poder alimentar seres que deixam a sua vida passar entre deuses malditos e fictícios, semeando a sua loucura demente e terrena em barbáries infindáveis e impunes, enquanto outros acalentam utopias que projectem a humanidade para tempos de alegria e de temperança que permita que a breve passagem pela existência não seja apenas um desfilar de horrores, mas antes de fraternas vivências. Sentimos as horas a fugir mais céleres do que a nossa ansiedade, mas prende-nos o olhar por este passado retratado neste belo museu sobre o rio. Regressamos e tomamos o rumo de novo para Leste. Descemos até ao Côa e ao km 210 a N222 despede-se do Douro enquanto retoma a subida em direcção a Castelo Melhor. O final da nossa estrada e da nossa viagem aproxima-se, mas nesta pequena aldeia não existe apenas o típico castelo medieval é também o acesso às gravuras rupestres do Vale do Côa. A nossa querença pendula entre a breve visita ou o ficar para uma visualização merecedora, mas vence a vontade de regressar. É pois sumário este diálogo com as pedras do passado em Castelo Melhor. Vamos levar esta pena a pesar no nosso caderno dos dias em que viajamos de Oeste para Leste na busca do desconhecido. Sente-se com mais premência a chegada do fim e após uma curva aberta para a esquerda quase de forma súbita, termina ao km 222 a N222. É um final abrupto que nos deixa numa melancolia nostálgica difícil de acalmar. Almendra está logo abaixo, pouco mais de um quilómetro, mas já não sentimos energia para a visitar. Voltamos à esquerda para a N332, agora Rua do Prado Pequeno que leva ao longo de dez quilómetros até à antiga estação de Almendra que aguarda que promessas se cumpram para voltar a ter vivência humana. Descemos até ao Douro. Um pouco antes da sua margem, prosseguimos pela Rua do Prado Pequeno agora em terra batida ao encontro da N221 por onde descemos até Barca d’Alva. Muito gostaríamos de seguir para Norte até Miranda, mas será noutro tempo se outro existir. Por hoje, detemo-nos por aqui, por este pequeno lugar fronteiriço cuja estação, também esta, aguarda pela chegada do comboio. Fazemos-lhe companhia nessa espera enquanto vemos o Douro passar com ar sonolento neste final de tarde. E se ao km 0 lembramos Adriano cantando Barca d’Alva ao romper do dia, neste quase crepúsculo, recordamos José Afonso, na sua balada de Outono, “Rios que vão dar ao mar / Deixem meus olhos secar / Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar”.

O ESTADO DA SAÚDE

Manuel Joaquim

https://www.jn.pt/4887631718/equipas-fixas-nas-urgencias-de-cinco-hospitais-ate-final-do-ano/



As pessoas estão a ser permanentemente bombardeadas com notícias sobre a situação nos hospitais, nas urgências, os tempos de espera, a falta de médicos de família, tudo para as levar a questionar o SNS. Um apresentador da TV, um tal que diz que escreve livros, é um verdadeiro artista a apresentar as notícias sobre a saúde, com pinceladas de negrume, provavelmente a fazer campanha política a favor do partido do irmão e a maltratar tudo o que existe a nível da saúde. 

O actual bastonário da Ordem dos Médicos publicou há uns tempos um artigo no jornal Público com o título “Mas, afinal, para que serve a Ordem dos Médicos?”, onde refere que “no meio da crise mediática dos Serviços de Urgência deste verão o MS decidiu contestar o Regulamento da Constituição das Equipas Médicas nos Serviços de Urgência …” Mais adiante, afirma que há “uma intromissão política – mesmo que exercida através de instrumentos jurídicos – é sempre perigosa e nociva.”

Mas a quem compete legislar e organizar os Serviços de Saúde? Não é ao Governo? O que a Ordem dos Médicos faz é política partidária com tempo de antena quase diário nos diversos canais das TVs. O anterior bastonário vê-se aonde está agora enfeudado partidariamente. O actual, foi eleito com 11 176 votos quando a Ordem tem inscritos mais de 61 mil médicos. A representatividade é muito pequena.

O actual Ministro da Saúde não é um defensor do SNS. Quando foi Secretário de Estado da saúde em anterior Governo, abriu as portas do SNS à medicina privada e aos grupos económicos que exploram os hospitais e clínicas privadas.

AS pessoas não sabem o que se passa nos serviços de saúde dos países chamados ricos, na União europeia, na Inglaterra, nos EUA e no Canadá. Não se entra nas urgências hospitalares, a não ser por acidente, quem não tiver seguros privados de saúde não é tratado. É isso o que pretendem fazer em Portugal, destruir o SNS e alimentar as seguradoras. 

Em Portugal, antes do 25 de Abril, a situação era muito má. A mortalidade infantil era muito elevada, não existia uma cobertura de saúde, recorria-se aos médicos particulares. Algumas profissões conseguiram assistência através da criação de Caixas Sindicais e de Previdência, de Serviços de Assistência e através de grandes empresas e de organismos do Estado. Os doentes que precisassem de assistência hospitalar urgente passavam horas e horas a aguardar um médico para serem assistidos. Quase sempre acompanhados por familiares que passavam pacientemente o tempo de espera. 

Depois do 25 de Abril deram-se os primeiros passos para cobrir o país com assistência. Construíram-se hospitais, centros de saúde, criação de novos serviços como o da Saúde Infantil, Planeamento Familiar, Doenças Coronárias, Diabetes, Vacinações, etc.. 

Em 1979 foi criado o SNS, com os votos contra dos partidos da direita. Os partidos da direita, sob várias máscaras, continuam empenhados em desmantelar o SNS.

Em 2001 o Relatório Mundial da Organização Mundial de Saúde classificou Portugal em 12º lugar, dos melhores SNS a nível Mundial, à frente da Holanda, Grã-Bretanha, Suíça, Suécia, Alemanha, Canadá, EUA. 

O que é preciso é que as pessoas defendam o SNS e os Serviços Públicos de Saúde e medidas urgentes para a sua melhoria.

OS FINS (NÃO) JUSTIFICAM OS MEIOS

Mário Martins


Nicolau Maquiavel


Os que vencem, não importa como vençam, nunca conquistam a vergonha.”
“O Príncipe” - Nicolau Maquiavel

«O motivo pelo qual este livro ainda é lido nos nossos dias é porque se baseia na natureza humana, tal como Hamlet ou Macbeth, de Shakespeare.»
Jonathan Powell, antigo diplomata britânico



Para o filósofo, historiador, poeta, diplomata e músico florentino do Renascimento, Nicolau Maquiavel, reconhecido como fundador do pensamento e da ciência política moderna pelo facto de ter escrito sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser (nota da badana do livro), “os fins justificam os meios", conhecida paráfrase  do que escreveu na sua famosa obra “O Príncipe”.

Paráfrase que poderá ou não estar correcta já que  para o escritor Jorge de Sena o pensamento de Maquiavel  “é o contrário daquilo que tem sido pejorativamente acusado de ser”. De qualquer modo, a frase “maquiavélica” ganhou foros de cidadania e o seu significado é claro.

O mesmo significado é igualmente atribuído à frase "o sucesso valida o acto" (exitus acta probat), escrita pelo poeta romano Ovídio, que viveu na passagem da era AC para DC, escrita na sua obra Heroides (Cartas das Heroínas) (Wikipédia).

Em sentido oposto, a doutrina cristã (a doutrina, não a prática…), segundo o  Catecismo da Igreja Católica, defende que "Não se pode justificar uma acção má com boa intenção. O fim não justifica os meios." (Wikipédia)

E já em pleno século XX o reputado escritor inglês de “O admirável mundo novo”, Aldous Huxley, refutou que os fins possam justificar os meios, porque os meios usados determinam a natureza do fim que é alcançado. 

Refutação teórica que seria levada à prática por duas personalidades de magna grandeza que, infelizmente, não fizeram escola: Mahatma Gandhi, na Índia, e Nelson Mandela, na África do Sul.

Se no plano individual, segundo as melhores regras do Direito, a violência só pode ser exercida em legítima defesa e de modo proporcional, toda a história política humana, palco de toda a sorte de ambições e interesses contraditórios, onde abundam as paixões mais descontroladas, demonstra, salvo raríssimas excepções como as atrás citadas, que esperar uma mudança radical do comportamento humano em geral no sentido de os fins não justificarem os meios, é uma esperança vã e quiçá mesmo uma impossibilidade. As características dos ataques e guerras da actualidade aí estão, mais uma vez, para o ilustrar. 

No século XIX, o general prussiano Carl von Clausewitz proferiria, no melhor estilo realpolitik, a célebre asserção de que “a guerra é uma mera continuação da política por outros meios" (sublinhado meu)

A relativa acalmia vivida nos anos do pós-2ª. guerra mundial só foi possível no quadro da divisão do mundo em dois blocos geo-políticos antagónicos, com botões nucleares à mão. 

Desafortunadamente, “O Príncipe” de Maquiavel vai continuar a “vender-se” muito bem…

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