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01/01/24

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





Definitivamente a fadiga venceu-nos. Vagueamos pelas pequenas ruas de Numão apenas para reter o desassossego de partir como quem foge, como abandono de uma tarefa inconclusa. Nesse desarrumar dos passos, deixamos o pensamento à solta com a despreocupação de quem tem tempo de sobra para o que lhe resta fazer. O olhar persegue o horizonte montanhoso, colinas que se inclinam em socalcos trabalhados pela mão humana. Séculos ou mesmo milénios viram os seres humanos desafiarem tempos meteorológicos para moldar a terra e a pedra. Ergueram castros, castelos e as suas poderosas construções perdem-se numa eternidade que foi e continua a ser desconhecida para os seus construtores. Todos eles se extinguiram e a pedra na sua robustez permanece altiva em desafio ao tempo. Que sonhos moviam estas populações em épocas tão remotas que até a actual memória humana lhe perde referência. A vida humana evolui entre duas não existências, a do nascimento e a da morte que nos reduz à insignificância de uma poeira espalhada pela menor das brisas. Cada ser humano pode descobrir todo o passado que encontrou ao nascer, mas vai desconhecer de forma absoluta todo o futuro que vai acontecer após a sua extinção. Fica apenas um número, talvez um nome, no caderno infinito dos registos da vida. Assim nos perdemos entre Numão e Freixo, entre duas aldeias e dois castelos. Freixo singrou quando Numão iniciou um declínio que lhe fez perder importância. A descida em direcção a Côa é deleitosa, como um caminho sem pedras, desliza-se com macieza enquanto os olhos se deliciam na contemplação das vinhas, dos vinhedos, dos socalcos, da cor da terra. O céu está puro com o azul perfeito, mas a qualquer momento esta serenidade pode alterar-se. Numa curva para a esquerda aparece-nos o IP2 e sentimos esse desprazer da urbanidade, do movimento das grandes rotas. Cruzamos sem nos determos em pormenores e logo subimos pela N102 num trajecto conjunto com a nossa estrada. É quase impensável percorrer a N222 e não entrar em Vila Nova, mas contornamos a vila. Primeiro em direcção a Almendra e logo de seguida na rota do Museu do Parque Arqueológico do Vale do Côa. É uma nova viagem aos confins da humanidade, à rudeza de tempos que nos parecem hoje inclementes e no entanto, aqueles seres humanos, pese embora a brevidade da vida que tiveram, sonharam, reflectiram e gravaram na pedra o mundo que os rodeava, a vida de que dependia a sua e regressamos aos pensamentos matutinos, ao paradoxo de a alma humana poder alimentar seres que deixam a sua vida passar entre deuses malditos e fictícios, semeando a sua loucura demente e terrena em barbáries infindáveis e impunes, enquanto outros acalentam utopias que projectem a humanidade para tempos de alegria e de temperança que permita que a breve passagem pela existência não seja apenas um desfilar de horrores, mas antes de fraternas vivências. Sentimos as horas a fugir mais céleres do que a nossa ansiedade, mas prende-nos o olhar por este passado retratado neste belo museu sobre o rio. Regressamos e tomamos o rumo de novo para Leste. Descemos até ao Côa e ao km 210 a N222 despede-se do Douro enquanto retoma a subida em direcção a Castelo Melhor. O final da nossa estrada e da nossa viagem aproxima-se, mas nesta pequena aldeia não existe apenas o típico castelo medieval é também o acesso às gravuras rupestres do Vale do Côa. A nossa querença pendula entre a breve visita ou o ficar para uma visualização merecedora, mas vence a vontade de regressar. É pois sumário este diálogo com as pedras do passado em Castelo Melhor. Vamos levar esta pena a pesar no nosso caderno dos dias em que viajamos de Oeste para Leste na busca do desconhecido. Sente-se com mais premência a chegada do fim e após uma curva aberta para a esquerda quase de forma súbita, termina ao km 222 a N222. É um final abrupto que nos deixa numa melancolia nostálgica difícil de acalmar. Almendra está logo abaixo, pouco mais de um quilómetro, mas já não sentimos energia para a visitar. Voltamos à esquerda para a N332, agora Rua do Prado Pequeno que leva ao longo de dez quilómetros até à antiga estação de Almendra que aguarda que promessas se cumpram para voltar a ter vivência humana. Descemos até ao Douro. Um pouco antes da sua margem, prosseguimos pela Rua do Prado Pequeno agora em terra batida ao encontro da N221 por onde descemos até Barca d’Alva. Muito gostaríamos de seguir para Norte até Miranda, mas será noutro tempo se outro existir. Por hoje, detemo-nos por aqui, por este pequeno lugar fronteiriço cuja estação, também esta, aguarda pela chegada do comboio. Fazemos-lhe companhia nessa espera enquanto vemos o Douro passar com ar sonolento neste final de tarde. E se ao km 0 lembramos Adriano cantando Barca d’Alva ao romper do dia, neste quase crepúsculo, recordamos José Afonso, na sua balada de Outono, “Rios que vão dar ao mar / Deixem meus olhos secar / Águas das fontes calai / Ó ribeiras chorai / Que eu não volto a cantar”.

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