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01/07/17

CARTAS DE SANTA MARIA


Fernão Vasques

http://www.medievalists.net/tag/orkney-islands/


Kirkwall, 30 de Junho

Durante toda a travessia, o mar apresentou-se agitado, ondulado, nebuloso, sem horizonte, arrastando esse mal-estar que nos arrefece e indispõe. Quatro ou cinco pessoas eram a totalidade dos passageiros do ferry. Na chegada a Burwick deixei que todos saíssem e vagarosamente estendi o olhar sobre o pequeno parque de estacionamento. Os dois automóveis que ali estavam, partiram e o navio ficou imobilizado no cais, aguardando novo horário. Olhei em redor e compreendi que estava só e apercebi-me da chegada, não do silêncio, mas dessa sensação de vazio, do nada. Comecei a caminhar sem vontade. A névoa persistia, o horizonte era curto e acreditei distinguir numa pequena colina afastada um grupo numeroso de animais no pasto. A primeira casa que me surgiu, duzentos metros percorridos, estava abandonada, apesar de ser constituída por diversos edifícios. É possível que um ou dois ainda tivessem proveito, pois as portas encerradas davam indícios de utilização. Na curva seguinte, à minha direita, avisto a velha igreja de St. Mary’s, também conhecida como South Kirk. Necessito desta paragem junto deste edifício, caminhar na sua adjacência, deixar-me ir. É uma construção em pedra, datada dos fins do século XVIII, mas foi uma restauração sobre uma outra mais antiga, acreditando-se que a original possa remontar ao século XI. No seu interior alberga uma pedra redonda com duas pegadas esculpidas. Deambulo pelo cemitério que rodeia a igreja com as lápides tão características deste Norte. Encontro uma com a data de 1554 e outra de 1684. É já no caminho para a saída que uma sepultura com configuração diferente me cativa o olhar. Aproximo-me, não por curiosidade, mas antes por uma espécie de sentimento. A pedra tem um nome e uma data que não consigo ler, mas é a dedicatória gravada que me alicia à leitura, «não estás longe, estás somente do outro lado do caminho». Deixei o olhar vadiar enquanto o pensamento se recompunha e procurava alcançar a grandeza daquela frase. Retornei à estrada. Esta estendia-se por um extenso planalto com ligeiras lombas e longas rectas. Não há árvores nem arbustos, apenas terras de pasto, os automóveis são raros e não se avistam pessoas. É só já muito próximo da pequena aldeia de St. Margaret’s Hope que o meu pensamento recupera do pasmo. A visita ao cemitério, deixou-me num deserto, num estado de atordoamento e só então reparo que a névoa desapareceu e um sol tímido se acomodou no céu. O olhar volta a recuperar a capacidade de visitar o que me rodeia e constato que apesar do rigor do clima há casas que possuem bonitos jardins, pelo desenho da construção e pelo colorido das flores. Para chegar à ilha de Mainland tenho de atravessar outras três pequenas ilhas, mas a tenacidade humana encontrou forma de as unir, não por pontes, mas por barreiras de pedras, sobre as quais passa a estrada. Atravesso a maior, Burray, a pequenina Glims Holm sem habitantes e quase de imediato, após vencer os 600 metros de barreira, alcanço a também pequena, Lamb Holm. O meu roteiro levava-me às Shetland, mas a lembrança de uma leitura com uns anos, que mão amiga me fez chegar na forma de livro, “A Capela no Fim do Mundo”, escrito por Kirsten McKenzie, fez-me mudar o trajecto trazendo-me até às Orkney. Enquanto caminhava ao longo da manhã tentei avivar a memória da história, mas tenho lapsos que já não consigo reconstruir. Em 1941, creio, uma unidade do exército italiano é aprisionada em combates junto à cidade de Bengasi na Líbia e os prisioneiros são levados pelos ingleses para o Cairo. Posteriormente são transferidos para a Europa de barco dando a volta pelo Cabo da Boa Esperança e são colocados num campo prisão, construído nesta ilha de Lamb Holm de um quilómetro por seiscentos metros. A história divide-se entre a vida destes soldados no ambiente meteorologicamente agreste das Orkades e dos seus familiares no Norte da Itália ocupada pelo exército alemão. Dois personagens adquirem relevo, Emílio e Rosa. Eram namorados quando Emílio foi para a guerra e aprisionado. Ele escreve e ela responde, mas a escrita dela vai perdendo fulgor amoroso, porque guarda um segredo. Colabora com a resistência anti-fascista e apaixona-se por um jovem resistente, o qual vem a morrer e acaba por facilitar o futuro. Emílio nunca o saberá e o livro inicia a história pelo fim, com a chegada a Lamb Holm dos antigos prisioneiros agora já sexagenários, para visitar o antigo campo e uma capela. Já na parte final da guerra, os italianos presos decidem aproveitar a estrutura de um armazém e com materiais retirados do mar, constroem uma capela. Emílio desenhava bem e faz os desenhos que embelezarão as paredes. A capela continua a existir e foi por ela que desviei a trajectória das Shetland para as Orkades. A capela é muito bonita e está muito bem conservada. Não consegui esclarecer o que é da construção primitiva e o que pode ter sido restaurado. A ilha é totalmente desabitada, existindo apenas o que ficou conhecido como a Capela Italiana. Sobretudo a imagem sobre o altar possui muita beleza, mas o tecto merece ser olhado. Prossigo para norte e não sei explicar o porquê de esta cidade de Kirkwall não me seduzir. Porventura não será o seu ambiente, mas antes o estado de alma em que me deixou a frase lapidar. Desisto de percorrer o arquipélago a norte. Algo me atrai para oeste no extremo de Mainland, na cidade de Stromness com os seus dois mil habitantes. Percorro a rua mais histórica na proximidade do mar sem deslumbre. Visito o museu onde sobressaem os aspectos da pesca à baleia e artefactos inuits, bem como, uma estatueta neolítica com cerca de 5000 anos. Regresso à capital, mas não consigo esquecer a frase que encontrei pouco depois de desembarcar no arquipélago, «não estás longe, estás somente do outro lado do caminho». Amanhã retomo a viagem, afastando-me das Orkades.   

HUMBOLDT


Mário Martins


Cerra os olhos, espeta as orelhas e, do mais suave som ao mais selvático barulho, do mais simples tom à mais elevada harmonia, do grito mais violento e apaixonado às mais gentis palavras da doce razão, é a Natureza que fala, revelando o seu ser, o seu poder, a sua vida e a sua afinidade (…)”
Goethe

Não sei o que é mais espantoso, se a história extraordinária deste grande cientista, se o seu completo esquecimento.

Alexander von Humboldt, filho de uma família aristocrática de Berlim, cuja longa vida atravessou dois séculos (1769-1859), foi o expoente máximo do cientista clássico, que se interessava por tudo e tudo media, antes de a especialização científica fazer o seu caminho. Foi essa abordagem interdisciplinar, que incluía a arte, a história, a poesia e a política, que o levou a elaborar o conceito de natureza como força global. A importância desta nova visão da natureza, entendida como uma rede em que tudo existe em conjunto, é comparável à da teoria da origem das espécies, publicada por Darwin no ano da morte de Humboldt, que tanto o inspirara.  

Humboldt era um poço de energia que usou em viagens épicas pelas Américas e pela Rússia. Não sem alguma ironia, Hans Magnus Enzensberger* fixa o seu modus operandi: “(…) Mede a declinação magnética, a altura do Sol, o teor de sal e o azul do céu. Desconfiados, os indígenas observam-no. Que gente estranha esta, que percorre o mundo em busca de plantas, para comparar o seu feno com outros fenos! Que razões vos levam a deixar-vos sugar por mosquitos para medir uma terra que não vos pertence? São estrangeiros, hereges e doidos. Mas, impassível como o padre espalhando o incenso, o viajante faz girar a sua garrafa de Leyden (…)”.

Humboldt foi admirado por vultos tão diferentes como Darwin, Goethe, Simón Bolívar ou o presidente dos Estados Unidos Thomas Jefferson. O primeiro centenário do seu nascimento foi comemorado em todo o mundo e o seu nome permanece por todo o lado, desde a Corrente de Humboldt que percorre o largo da costa do Chile e do Peru até ao Mare Humboldtianum na Lua.

Para a autora da biografia**, Andrea Wulf, “no início do século XX havia pouco espaço para um homem cujo conhecimento se estendera a um vasto leque de matérias. À medida que os cientistas se encolhiam dentro das suas estreitas áreas de especialidade, dividindo e depois subdividindo, perdiam de vista os métodos interdisciplinares de Humboldt e o seu conceito de natureza como força global (…) Outra das razões pela qual Humboldt se desvaneceu da nossa memória colectiva – pelo menos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos - é o sentimento antigermânico que sobreveio com a Primeira Guerra Mundial (…) Ambas as guerras mundiais do século XX lançaram longas sombras e nem a Grã-Bretanha nem a América eram já lugares para o elogio de um grande espírito alemão.”

*In “Mausoléu” – A história do progresso em trinta e sete baladas, edição Cotovia.

**”A Invenção da Natureza” – As aventuras de Alexander von Humboldt, o herói esquecido da ciência – edição Temas e Debates – Círculo de Leitores

OS IDIOTAS

António Mesquita


A Ágora de Atenas


"Vivermos num mundo real e falarmos com os outros são fundamentalmente uma só e a mesma coisa, e para os gregos, a vida privada parecia "idiota" (*) porque lhe faltava a diversidade que decorre de falarmos sobre alguma coisa e, por isso, também a experiência do modo como as coisas realmente funcionam no mundo."

"A Promessa da Política" (Hannah Arendt)

(*) Em grego, idion significa privado, só para si, peculiar.

Uma das teses mais surpreendentes de Hannah Arendt é a afirmação anti-aristotélica de que o homem não é um animal político. Pelo que, muitas terão sido as sociedades na História em que a expressão do político esteve próxima do zero, e os regimes totalitários seriam o exemplo mais próximo do anti-político.

A política pressupõe, para Arendt, a liberdade e um espaço de palavra entre iguais. A consideração da política como um meio necessário à vida ou à segurança, coisas que as ditaduras podem, às vezes, assegurar, é a negação da política.

A tendência nas sociedades ocidentais para a privatização (idiotização, no sentido grego) de todas as actividades que não tenham a ver com a necessidade (ou a "alienação") corresponde mais do que a um desencanto com a política, tal como ela é feita, à perda do sentido das palavras e do seu poder de desencadearem a acção.

A inflação não é apenas um fenómeno de natureza económica. Toda a palavra é desvalorizada pela repetição e pela ampliação mediáticas.

UMA MANHÃ DE RAIVA


Mário Faria




Saí de madrugada (10h) para adquirir um comando de TV na Meo. Fui a pé: ando a queimar gorduras, a praia está próxima. Lá chegado, tirei a senha. Fui atendido muito rapidamente. Rebate falso: a menina que me atendeu explicou-me que para adquiri o comando tinha que me dirigir ao andar superior e pressionar a letra “I” para ser assistido. Assim fiz. Em baixo, o ambiente era do tipo SNS, em cima cheirava a Guerra das Estrelas. O público estava completamente absorto nas suas tarefas. Como invejo o ar sapiente daquela gente. 30 minutos depois, a moça-empregada chamou-me. Expliquei ao que vinha. Respondeu-me que não tinham comandos, de forma indiferente, a mascar chiclete. Fiquei zangado e à beira de uns quantos palavrões, quando me explicou que poderia, através de um qualquer Meo Go, aceder a todos os canais televisivos. Tirou-me do sério e deixei toda a revolta no texto que juntei no livro de reclamações que vai surtir o mesmo efeito que os emails do Francisco J na justiça. As grandes corporações estão acima da lei e dos bons costumes. Regressei a casa à peanha, depois de ter desistido de entrar nas filas chorudas dos transportes públicos. Cheguei cansado ao lar. O tapete novo comprado a preço de ouro continua a cheirar a loja dos chineses. Estava enjoado e voltei à rua. O casal que espio há muito tempo tomou o rumo do Jardim de Arca de Água. Ela à frente e o homem a um metro dela. No jardim aproximaram-se e caminharam lado a lado. De repente, dão um saltinho e soltam uma risada quando a rega os molhou. E falaram um com o outro. A aparente prova de silêncio tinha caído. O mistério adensa-se e não tenho respostas. Tenho de falar com o Chico Fininho. Tomei o autocarro, o 600, cheio a abarrotar. O barulho era ensurdecedor. Uma zaragata bem-disposta e em tom familiar, até que uma mulher com voz estridente e quase aos berros, perguntou: “é aqui a paragem de Vale Formoso?” ao que um homem respondeu,  com voz grossa e mau hálito: “não, é de Nova Iorque”. Os risos provocaram na mulher uma reacção intempestiva que continha tudo de melhor da língua portuguesa. Saiu, e acenou um adeus com o dedo médio, devidamente estendido e a sorrir de boca aberta e sem dentes. O povo gargalhou mas por pouco tempo. Duas amigas (?) pegaram-se: discordavam sobre as causas e o combate aos fogos. Uma dizia que os bombeiros eram gordos e incompetentes e a outra que eram uns heróis. O tom aqueceu e passou a insulto. O motorista parou a viatura e pediu compostura. Aproveitei para sair. A minha paciência tinha chegado ao limite. Voltei a casa. Tinham tentado arrombar os arrumos. A comandante da casa, tomou conta da ocorrência e gizou o plano de defesa. Havia um movimento inusitado com a contribuição dos vizinhos mais próximos. Perguntado se achava bem o plano gizado, sugeri que o melhor era comprar um cofre para defender os bens. Tornei a sair, sem ouvir a resposta. Encaminhei-me para a caixa multibanco mais próxima mas a máquina comeu-me o cartão e não me deu o dinheiro. Voltei a casa para o anular. O comité de crise já tinha chamado um serralheiro para blindar os “arrumos”. O processo de anulação do cartão foi um sucesso. Tornei a sair e fui ao banco para receber um novo cartão. Voltei ao 600 e a viagem foi um sossego. Finalmente um pouco de paz. 

RECORRÊNCIA


Manuel Joaquim
(Tvi24 - IOL)


Todos os dias a comunicação social bombardeia-nos com notícias sobre os incêndios, o Siresp, os bombeiros, a falta de coordenação dos serviços, exigências de demissões deste ou daquele ministro, de comandantes, etc, , e entrevistas com diversas personalidades. Falam muito sobre a calamidade, como se fossem acontecimentos novos, mas não dizem nada de importante. O Siresp, que dizem que falhou. Passam por cima das decisões políticas tomadas ao longo de anos que levaram à destruição de estruturas fundamentais para a gestão e protecção da floresta. Problemas que já foram debatidos diversas vezes na Assembleia da República, o Siresp com comissão de inquérito, mas sem grandes resultados. 

Alguns, destituídos de escrúpulos, à espera de dividendos políticos, dizem disparates sobre o suicídio de pessoas, defendem a manutenção de crassos erros sobre a arborização do território para a obtenção de resultados imediatos tendo em conta os ciclos políticos, evidenciando, não só má-fé mas sobretudo ignorância.

Existem muitos trabalhos publicados ao longo de muitos anos sobre os problemas da floresta, por pessoas altamente competentes.

O jornal Público, em 2006, publicou um artigo do Prof. Jorge Paiva, biólogo e investigador da Universidade de Coimbra e de outras universidades, que descreve a situação da floresta portuguesa e do erro da plantação do eucalipto pelas suas consequências. Refere nesse trabalho que “ a partir da segunda década do século XX, apesar dos alertas ambientalistas, efectuaram-se intensas, contínuas e desordenadas arborizações com eucalipto, tendo-se criado a maior área de eucaliptal contínuo da Europa “

Agostinho Lopes, deputado do PCP na Assembleia da República, interveio em plenário em 2002, caracterizando a situação da floresta e propondo medidas necessárias para salvar uma parte considerável da riqueza nacional. As propostas apresentadas foram para o saco roto.

Nos finais de Junho publicou o seguinte artigo que me parece ser importante divulgar para melhor esclarecimento das pessoas.


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