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01/02/24

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Na Primavera voltáramos aos antigos encontros. Descido o caminho empedrado que lembra as velhas jeiras romanas, chegámos àquele espaço remanso coberto por uma abóboda gótica de vegetação. Para trás ficava o ruído da mundanidade, o atropelo do tempo viajando célere sempre atrasado para algo incompreensível e que arrasta os humanos para uma vida sem vida, dominada pela ansiedade e tanta angústia. Ali te encontramos sentada no sopé do secular carvalho tão protector, tão retemperador das agruras da vida. O teu olhar em espaço tão luxuriante tinha a beleza das coisas perfeitas, a pureza dos sonhos inalcançados. «Escuto o sussurrar da água corrente, do seu canto melodioso e apaixonante. Como escreveu o poeta? ‘Um ribeiro lustral, canta dia e noite’ e a entoação da sua corrente saltitando ou contornando as pedras se mistura com o silêncio apaziguador na companhia de pedras milenares», disseste à nossa chegada. «Procuro recriar no pensamento o trabalho dos monges, mil anos antes de nós, moldando a pedra uma a uma no interior deste tecto verde e azul e acastelando-as até adquirirem a forma de igreja e mosteiro, tão longe de tudo e tão perto do nada se exceptuarmos a natureza, e tudo isso parece incompreensível ao nosso tempo, pleno de técnica e ciência», falavas enquanto as mãos desenhavam gestos. «Por este território passaram romanos até à chegada dos que entregavam a vida à purificação perante Deus e há mil anos atrás por aqui se deixaram ficar, no trabalho árduo da natureza e na entrega a um ideário divino», continuavas com a serenidade dessa voz que nos chega como um murmúrio de vida. «Sabias que por essa época em que estes homens acumulavam pedras com essa arte que ainda hoje nos toca, pela Europa viajava o papa Urbano II chamando a nobreza à guerra, à guerra santa contra os infiéis? Aleixo I Comneno, o senhor poderoso de Bizâncio recorreu a Urbano num jogo político para salvar o trono assaltado nas suas margens por eslavos a Oeste e os seljúcidas a Leste, aproximando-se de Constantinopla, a cidade grande do Oriente que subsistiu a Roma e para obtenção do auxílio que precisava, invocou o discurso do medo, do horror que grassava sobre o sagrado túmulo de Jerusalém como forma de incentivo àqueles que pretendia, marchassem para o salvar. Numa igreja dividida, essa mobilização de homens para cavalgarem até à Terra Santa era algo que também interessava a Urbano. O papa viaja até Clermont onde fará o discurso apelativo da cruzada sobre a cidade da Palestina e não poupará nas palavras para insuflar na nobreza do Ocidente da Europa a urgência de abandonar as suas riquezas e iniciar o trajecto para a salvação do mundo cristão. ‘Caros irmãos, eu, Urbano, sumo pontífice e, pela graça de Deus, prelado de todo o mundo [a ousadia já vestia largas vestes, nessa época], com uma necessidade premente vos interpelo, servos de Deus nestas regiões, enquanto mensageiro de cuidados divinos.’(1) Esclarecido o seu poder, o papa passa a identificar o horror que no Oriente necessitava de ser aplacado e esmagado. ‘Queremos que saibam o triste motivo que nos trouxe à vossa terra e qual a emergência para vós, e para todos os fiéis, que nos trouxe aqui’(1). A descrição dos crimes cometidos pelos «persas», assim os chamava Urbano, não tinham paralelo na história da humanidade, ‘Derrubam altares depois de os conspurcarem com os seus excrementos, circuncisam cristãos e despejam o sangue daí resultante sobre os altares ou para as fontes baptismais. Quando pretendem infligir uma morte realmente atroz, trespassam o umbigo do indivíduo, puxam-lhe os intestinos, prendem-nos a um poste e fazem-nos correr em volta até que, as entranhas arrancadas do interior, a pessoa tomba sem vida. Disparam flechas contra outros atados a estacas; outros ainda, de pescoço bem esticado, são atacados com as espadas, tentando decepar-lhes a cabeça de um só golpe. E o que dizer sobre o atroz tratamento dados às mulheres, sendo melhor manter o silêncio, sem que entremos em demasiados pormenores?’(1) Mil anos passados não te diz nada este discurso?», perguntavas no interior de uma estupefação sem limites. «Não estamos de novo a escutar esta arenga fantasista, violenta e mentirosa, em nome de um Amaleque qualquer, vingativo, cruel e criminoso através da palavra de gente demencialmente doente, parasitária e socialmente monstruosa? E não correm de novo os senhores da Europa e o Ocidente para salvar essa Jerusalém mítica mesmo que para isso – tal como há mil anos atrás – tenham de arrasar o território sem diferenciar bens materiais e esse bem supremo que é a vida? Urbano II apresentava uma justificação para além dele, quer dizer, não era a sua vontade ou interesse pessoal, mas antes, da divindade celestial que representava na Terra. ‘Não falo em meu nome, é Deus quem vos apela, como mensageiros de Cristo, para que incitais todos os homens, de qualquer posto, cavaleiros e soldados rasos, ricos e pobres, a que corram a extirpar esta raça vil das nossas terras e que ajudem a tempo os habitantes cristãos’(1). Escusado será dizer que essa Primeira Cruzada, quer na travessia da Europa quer no assalto a Niceia, a Antioquia e a Jerusalém, foi um cortejo de crimes e tormentos sobre a população nativa, mas que importa tal, se Bizâncio foi salva e o Santo Sepulcro libertado? Os séculos passaram, mas novamente alguns psicopatas invocando o nome de um deus fantasioso, um Amaleque desenterrado de uma ficção bíblica, despeja milhares de toneladas de bombas sobre os impuros, os amaldiçoados para salvação de ‘um povo escolhido’. Por muito que a civilização evolua, a maldade humana na babugem do poder mantém a sua corte de abominação e não pára de bater nos tambores da guerra.» Havia um estremecimento de tristeza no teu olhar enquanto construías um discurso que mostrava o pavor do nosso tempo, tão cheio de democracia, de liberdade, de direitos humanos, tudo distribuído como a riqueza. Quando o silêncio já se prolongava, saíste de um momento de reflexão e prosseguiste, «há historiadores que defendem que a Primeira Cruzada foi o início da colonização do mundo pelo Ocidente e se pensarmos que a nobreza europeia cavalgou para Jerusalém com a cruz no peito, a espada na mão e com a intenção de trazer os alforges cheios do que roubaram, pelo caminho e pelo tempo que lá ficaram, facilmente compreenderemos o que foram os séculos seguintes. Estão agora no seu declínio mas não esqueças que os ‘impérios morrem matando’, pelo que talvez seja adequado, como os monges há mil anos atrás, nos refugiemos neste espaço de silêncio, onde podemos espreitar ao mesmo tempo a beleza do verde da natureza e o azul do universo». A tarde declinava, vagarosa mas constante. Os veios de luminosidade solar que penetravam por entre a folhagem iam diminuindo de intensidade e geravam o aumento da frescura. Subimos juntos, o caminho de pedra dura e ao alcançarmos o primeiro patamar nivelado, olhamos uma última vez para o cenóbio que a incúria humana e as agruras do tempo vão derrubando, mas uma cruz de ferro esvoaçando sobre a pedraria da igreja, mantém-se altaneira e apelativa, e ao contrário daquela que os nobres levavam no peito, esta acolhe-nos num ermo de silêncio e, mesmo que por momentos, protege-nos da loucura do poder e dos poderes e dos sátrapas com os seus exércitos de loucura.



(1) Peter Frankopan, em “A Primeira Cruzada - o apelo do Oriente”, Crítica, 1ª edição, Lisboa, Março de 2023



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