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01/02/18

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




São inúmeros os personagens que achamos ao longo do tempo. Uns encontramo-los no correr dos dias, outros, chegam-nos através dos livros. Muitas das vezes, chegamos a conhecer melhor os que nos vêm pelos livros daqueles que nos trazem a vida. Há dias, ao percorrer os livros, encontrei não as personagens das histórias que contam, mas a dos autores. Freitas do Amaral foi um discípulo do último ditador. Surpreendido pela revolução e vendo o seu futuro interrompido, apressou-se a criar o Centro Social, o Partido onde se aninhariam desde logo, os extremos apeados do poder autoritário e violento que acabara de tombar. Fiel a si próprio votou contra a Constituição por ser demasiado socializante, quer dizer, por pretender repartir demasiado a riqueza. Nunca se retratou. Mas o homem evoluiu com a idade e chegou a ser ministro de um governo do Partido Socialista, talvez por este não ser socializante. Vá-se lá saber por quê um dia apareceu a presidir à Assembleia Geral da ONU e agora que a velhice o acolheu, tal como o seu mestre, dedicou-se à História e a escrever livros sobre ela e, para não fazer a coisa por menos, atirou-se a dois mil anos de história, Da Lusitânia a Portugal, da Bertrand. Ao que consta, terá dito que o seu intuito foi fazer uma História de Portugal, expurgada da visão marxista. Pois, compreendo, foram sempre uns grandes malandros, os marxistas e, certamente, nunca lhes perdoará, o contributo que tiveram para o ruir da ditadura, onde tantos sonhos seus navegavam. Não foi necessário afastar-me para longe, pois logo encontrei um tal Manuel S. Fonseca, editor do Expresso. Nos cem anos da Revolução Russa, foi à procura dos crimes dos bolcheviques, ou seja, os marxistas do Professor, e lá deu à luz a “Revolução de Outubro, cronologia, utopia e crime, da Guerra e Paz, Desde logo nos apimenta o molho, “A Revolução dia a dia, do enforcamento do irmão de Lenine à morte e entrada de Lenine no mausoléu”. É uma orgia de sangue talvez inspirada no canal televisivo do Correio da Manhã. Quando pensava que já tinha descido aos infernos, aparece-me um tal Alberto Gonçalves, um rapaz que escreve crónicas no Observador com a sua A Ameaça Vermelha, a calamidade política que atingiu Portugal e que muitos teimam em ignorar, da Bertrand. É sobretudo uma obra de quem tem todas as certezas, expressas na resposta à sua própria pergunta, “Portugal está melhor em meados de 2017 do que estava no final de 2015? E eis a resposta, não”. Fiquei a pensar que talvez fosse melhor ler o outro livro das suas obras completas, “Ninguém diga que está bem”. Claro que estou a ser injusto, pois não li qualquer um destes tratados literários, mas acredito que, pelo menos, sejam melhores do que os romances históricos da Isabel Stilwell. Há dias em que os nossos olhos se atormentam. Não há muito, tropecei com uma Avenida Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva em Gondomar, via larga, duas faixas de rodagem, separador central, árvores na infância a desenharem um futuro robusto. Certamente terá sido um gesto de apreço, desse Valentim, democrata eminente, de valores inclassificáveis pelo comum dos mortais, cujo estrutura moral, só pode ombrear com os maiores. Até me vieram as lágrimas aos olhos ao pensar na justiça de homenagear em vida tão ilustre personagem, a sua grandeza como homem das artes, um insigne no mundo da cultura, de um dimensionamento cultural incomparável, de uma sabedoria que se estende pela sociedade como um rio em tempo de cheia, criatura de verbo fácil, inteligência muito para além da sua época. Só posso acreditar que a seu tempo, quando for chamado para ombrear entre os deuses mais divinos, outra homenagem lhe será prestada e imagino até, um cortejo majestoso caminhando em passo marcial, rodeado de crentes que encherão a negrura da noite com a luz de milhares de círios e descansará então na eternidade do tempo, no panteão dos deuses, onde entrará pela alameda dos leões de pés para a frente, as mãos como símbolo de coroação sobre o peito, em repouso e a cabeça ligeiramente erguida. Será então o momento de gáudio e a justa prece do país em sua honra, esta escultura da sabedoria já não se contentará com uma simples avenida, por grande que seja, mas antes o país a mudar de nome, a pátria dos descobridores e dos marinheiros infinitos, adoptará para todo o sempre, o nome de Cavaquistão, pois só assim, os deuses se aquietarão face à injustiça.

    

Gosto deste lugar onde repousas. Sente-se uma melancolia primaveril em redor. Não vejo o rio, mas escuto o seu murmurar perante a proximidade do oceano. O ruído dos comboios, que vejo quando atravessam a ponte, chega como um som sonolento, produzido pelas rodas sobre os carris. Estas árvores centenárias de copa alta e cujas folhas estremecem ligeiramente com a brisa, cobrem-nos, mostrando-nos o céu retalhado de geometria azul. É bom ficar por aqui, conversando, neste diálogo que há tanto tempo nos une, entre a lembrança do passado e as contradições do presente. Lembro aquela quase última Primavera, na qual tudo parecia acontecer. O fim estava próximo, Cristina, mas nós ainda não sabíamos. Os dias pareciam iguais, mas eram sempre diferentes e os nossos sorrisos escondiam quase sempre a gravidade do que vivíamos. De dia, era o trabalho, que a falta de descanso, quantas vezes, tornava pesado. Ao fim da tarde, quando por fim regressava a casa, naquela longa caminhada, percorria sempre aquela rua, que nos dias de hoje aparece quase inalterada. As casas baixas, os sons da tarde, diluídos pelo crepúsculo que já se pressentia e a vivacidade dos pássaros cujo canto nos chegava com afectuosidade. Era o trajecto mais longo, mas reservava-me sempre uma surpresa. Pressentia-a quando ainda não era visível, aquela menina de extensos cabelos e olhar profundo. Sim, era uma menina, porque éramos todos uns meninos que a vida obrigava a ser grandes. Eram só trinta segundos de um prazer inesquecível que ainda hoje emerge no pensamento como se acontecesse na véspera. Olvidava tudo, naqueles instantes, até aquele combate desigual que diariamente travávamos. Éramos tão poucos e parecíamos muitos, excedíamo-nos e havia instantes que acreditávamos ser imortais, invencíveis no combate pelo pensamento, a liberdade e a justiça. Em certos dias, já levava comigo um telefonema ou um recado do Serra e sabia que a noite seria longa, mas quando aquela princesa se aproximava, tudo se apagava, uma outra luz se acendia e enquanto nos cruzávamos, só o nosso olhar falava e sentia a música ululante da Carmina Burana, enlear-me o corpo. Eram olhares que se prendiam e, à noite, quando as trevas do medo nos rondavam, quando, protegidos nas sombras, espalhávamos a verdade em mensagens de fino papel, procurava refúgio na ternura daquele olhar que o fim da tarde me trazia, e baixinho, muito baixinho, soletrava as palavras do poeta, «só te peço que não pares, que cantes, grites e chores, que sejas uma espiral e que a tua voz ecoe calma terna e concisa, no meio desta cidade». Tínhamos de viver acompanhados de alguma fantasia, caso contrário, não sobreviríamos. Aqueles cem metros de rua, eram então, a alegria que vencia o medo, desde que o nosso olhar se prendia, antes de nos cruzarmos, até depois, quando olhávamos ao mesmo tempo para trás, procurando trazer de volta o olhar que cada um deixara ir. Nesse tempo, ainda não sabia que viria a morrer de solidão. Sim, Cristina, a ditadura tornava-nos solidários e a democracia fez de nós solitários, senhores de um eu profundo que rejeita o nós, e faz de cada um deus supremo no interior do seu grande ego, sabedores de tudo, e, quantas vezes, intolerantes, aos argumentos dos outros. Mas hoje, lembro esses tempos, com carinho, com a ternura que vivíamos em contraponto à violência com que nos cercavam. Já é tarde para quase tudo, mas não deixamos o passado, que chega melancolicamente, morrer sem o recordarmos, como merece. Talvez funcione como consolo, neste anonimato em que sempre vivemos, mas também como vida, sentida com intensidade, com alegria, com a certeza de que tínhamos razão e em nós pulsava o devir, o futuro de um tempo melhor e, nesse conforto, vive também e ainda, os negros olhos daquela menina que ajudavam a vencer o medo.  

  

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