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01/12/23

UMA ESCALADA

António Mesquita

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"As falácias narrativas resultam inevitavelmente da nossa contínua tentativa de fazer com que o mundo tenha sentido." (Nassim Taleb)



Hans Castorp ao visitar o primo Joachim no sanatório de Berghof, em Davos, não faz a mínima intenção de pôr as opiniões sobre a sua saúde à frente de todas as prioridades - porque a saúde vai muito para lá da forma como nos sentimos.  Mas foi não contar com a atmosfera mental da Montanha (assim se opunham as ideias prevalecentes no Berghof ao que se pensava na cidade ou na planície).

Acabou por ficar sete anos e ficar muito mais tempo que o primo, o qual tomou a certa altura a decisão marcial (ou não fosse um militar) de regressar à vida de quartel, apesar das reticências dos médicos. Havia sempre uma prorrogação de mais seis meses para debelar "definitivamente" uma ponta de febre.

Joachim, é verdade, foi ajudado no seu rompante pela perspectiva duma carreira estendendo-se como uma estrada segura até à reforma. Era um espírito pacato e nada dado aos arroubos imaginativos do seu familiar. Porque Hans estava longe de saber o que queria fazer da sua vida. As suas preocupações no sanatório faziam-no um auditor apaixonado das divagações filosóficas de outro membro da comunidade dos pulmonares, Settembrini e as suas eternas disputas com um ex-Berghof a viver na aldeia mais próxima, o jesuíta Naphta.

O rame-rame de cada um dos primos, enquanto estiveram juntos, era constituído pelas refeições sempre abundantes, o sol na varanda, enrolados nos agasalhos e a conversa com outros doentes que, como em qualquer microcosmo, apresentavam uma suficiente variedade. As consultas com o doutor Behrens, apaixonantes, como era de prever, faziam parte da rotina.

O Berghof era um mundo tão estranho e com uma "mentalidade" tão própria que os que chegavam de fora se viam como imigrantes chegados de outro país. Foi o caso do tio de Hans que resolveu um belo dia aparecer no sanatório com a intenção de o trazer de volta para a família e a sua antiga vida. Teve que desistir dessa ideia perante a impermeabilidade do sobrinho e as pressões da Montanha para o levar a crer que também ele estava doente.

Entre os temas da "Montanha Mágica", de Thomas Mann,  romance tão justamente aclamado e o cinema não é fácil estabelecer uma ligação. Mas é o que me proponho fazer, pensando no último filme de Ken Loach ( ver entrevista no Expresso de 17 do mês passado): "O pub de Old Oak" que conta a história comovente da reacção da comunidade de Durham, antiga cidade mineira no norte de Inglaterra, à chegada dum grupo de refugiados sírios. Claro que a essência dessa ligação está  no choque que os de fora sentem no meio duma cultura estranha, com as dificuldades de entendimento mútuo que se imaginam.

Graças à vocação de TJ, o dono do pub, abandonado pela mulher e pelo filho, as famílias de imigrantes encontram alguns pontos de apoio. A jovem fotógrafa do grupo, Yara, é a interlocutora. Apesar dum punhado de "old timers", saudosos do orgulho mineiro, tentarem sabotar essa amizade, o filme acaba numa espécie de hino à fraternidade entre os povos. 

Não passaram duas semanas desde a visão do "Pub de Old Oak" e Dublin está a ferro e fogo por causa do medo do estrangeiro e, segundo o "Guardian", centenas de pessoas, em Rosslare, uma cidade costeira mais ao sul, juntaram-se para se oporem à conversão dum segundo hotel em acomodação para refugiados. A alegria genuína que se vê no filme de Ken Loach não é posta em causa por estes incidentes que estão em linha com o que se passa um pouco por toda a Europa, com o avanço da xenofobia e da extrema direita. 

É mais um país que se encontra enclaustrado na sua montanha mágica, com a ideossincrasia do sanatório e temendo que uma mudança de ares e  alguns novos hábitos ameacem o seu pedacinho de sol na varanda.

Lembremo-nos que o livro de Thomas Mann saiu em 1924, em plena decadência da chamada república de Weimar que acabou, como sabemos, nove anos depois com a ascensão avassaladora do nazismo, quando   o judeu, quase que por definicão o "estranho entre nós", foi mais uma vez exorcizado como a origem de todos os males.

É, no entanto, necessário  introduzir uma nuance nesta problemática da imigração, sem a qual, a começar pela Europa, conheceremos uma nova idade das trevas. Não se pode responder ao medo do estrangeiro, com uma ingénya abertura  de fronteiras que, aliás, favoreceria a reconfiguração planetária imposta pela crise climática. 

Se as culturas são o que são é porque sabem criar anti-corpos para defender a sua identidade. Deixar esse papel à extrema direita e aos Trumps de qualquer latitude é simplesmente suicida.

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