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01/08/09

ENTRE A MÚSICA E A POESIA

Alcino Silva

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Era uma noite de Verão, desses estios em que a Primavera se recusa a partir. Estava fresco e em certos momentos o vento lembrava-nos que era bom acolhermos os braços no interior das mangas de um casaco. O céu respirava tranquilidade e a lua soberana na sua alva esplêndida espalhava luz entre as estrelas. O auditório estava repleto na sua beleza de reconstrução recente. As vozes calaram-se e os sussurros desapareceram tímidos no interior das gargantas. Segundos depois, o som doce e meigo do alaúde colocou-nos o pensamento em voo. Como um avião a correr na pista levando já a cabine elevada a harpa e a guitarra renascentistas cobriram a floresta de cores outonais. Os sons da música de Palestrina estenderam-se pelo céu em voo de prazer. Como uma nave isolada num universo estelar e solitário, a noite parecia perfeita, não fosse o som plangente do tär acolitado pela flauta, ter rasgado a perenidade do momento e elevado a perfeição ao nível dos instantes divinos. Quando a voz provinda de Esfahan rompeu em cântico a sala estremeceu no arrebatamento do que é sublime. A partir desses minutos, seguiu-se uma viagem pela vida como se a humanidade se apresentasse viva ao longo dos tempos. Alexandre Magno invadindo a Pérsia e destruindo Susa, a dinastia Sassânida na glória dos alvores medievais, os ventos assolando as montanhas a norte e os povos adormecendo ao ritmo das caravanas que cruzam o deserto nas suas viagens entre o Oriente e o Ocidente. Sentia-se o andar lento dos camelos como que vagueando sobre as areias e o torpor da distância misturado com o calor a transformarem a jornada em algo sobrenatural. Ao longe escuta-se a cadência das águas do Cáspio a refrescarem as areias finais do Kara-Kum. Após o canto sobre a música de Caccini, regressou o som mágico do tär com o encantamento do tambourine em mistura com o zarb. O pensamento insistia em mergulhar num céu de bonança que um calor imaginário parecia enfeitiçar. O canto persa elevou-se de novo como se, atirado, lançado, projectado ao vento do alto dessas torres esguias e magníficas que rompem as nuvens. Ao longe percebia-se ainda o andar dolente dos animais das caravanas que tal como a música se diluíam entre o tremer da longitude do horizonte, desaparecendo para lá do alcance do olhar. Tinha começado o Festival Internacional de Música da Póvoa de Varzim.

Sim, é correcta essa tua pergunta ao me encontrares aqui. Viajei toda a noite após a última nota ter fechado o meu pensamento e encerrado o horizonte onde voava. Viajei toda a noite para aqui estar de madrugada calcando as areias da praia que foi dos teus Verões onde povoavas a alma com os teus amores perdidos enquanto deixavas que as águas frias do Pacífico te molhassem os pés como se refrescassem as palavras que soltavas como chamas de amores inconsolados. Tenho percorrido a Terra com os teus "Vinte Poemas de Amor", mas hoje, hoje meu poeta, após os últimos passos dos homens e dos animais se terem perdido na distância, corri para a tua "Canção Desesperada". "Emerge a tua lembrança desta noite em que estou", escreveste tu quando soubeste que essa amada mulher não voltava, tinha partido no último comboio da Terra e as lágrimas não a deixaram voltar o rosto. "Abandonado como os cais na madrugada", continuavas nesse teu poema de angústia. Que desamparo, que solidão. Haverá maior do que essas pedras que penetram mar adentro e ficam perdidas e solitárias nessa luta nocturna contra o vaguear do mar? Não. Não pode haver. Mais ainda que as caravanas que se perdem na lonjura dos desertos, é esse isolamento sumido na vastidão desse espaço que não é de ninguém e que nenhum ser humano se atreve a visitar antes que a luz do sol dê vida à cor escura da pedra gasta por uma humidade eterna. Entregaste a vida meu poeta e como tu "fiz retroceder a muralha de sombra/caminhei para além do desejo e do acto" e tu mulher amada, cantada em noites que as estrelas se beijavam. "Como um copo albergaste a infinita ternura", acalentaste nos olhos todas as aldeias da Terra e estendi para ti a alma como se nadasse num rio sem margens, "Era a sede e a fome, e tu foste uma fruta", "Ah mulher, não sei como pudeste conter-me/ na terra da tua alma e na cruz dos teus braços!" O destino levou-te antes de ter chegado e todos os navios partiram nesta noite sem data. O desespero dos pássaros nocturnos apossou-se do sorriso que desenhaste nos meus olhos e levou "a ternura, leve como a água e a farinha" que havias semeado. Agora que os últimos sons se calaram e a crua luz da noite encerrou o deserto, já não sei se me encontro no luar da música ou na madrugada da poesia, sinto apenas que "É a hora de partir, a dura e fria hora/que a noite prende a todos os horários" e "Abandonado como o cais na madrugada./Apenas a sombra trémula se me torce nas mãos./Ah para além de tudo. Ah para além de tudo". E mesmo assim, no extremo desse cais esquecido ainda é o teu olhar que encontro, vivo e belo nessas águas oceânicas que esmagam as pedras que restam nesta "hora de partir".


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