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01/05/21

O ESPÍRITO DO TEMPO

Mário Martins


br.123rf.com

 

Há o que chamamos espírito do tempo, que forma o padrão dominante da mentalidade e da psicologia colectivas. Depois da tragédia da 2ª. guerra mundial, o espírito, alimentado pela aceleração da evolução científico-técnica e, em especial, pela computação, era o de progresso contínuo, aparentemente imune a novas grandes tragédias, muito menos mundiais. Ao horror da guerra sucederia inevitavelmente um futuro radiante de paz.

Na realidade, à guerra global seguiram-se guerras locais, estúpidas e horrendas como aquela, mas de menor escala, até que, subitamente, no início dos anos oitenta, o progresso contínuo, desmentido pela reedição dessa antiquíssima tradição humana de guerrear, parou de forma dramaticamente inesperada, com a entrada em cena do vírus da sida, que não só afectou e ainda afecta a vida sexual e social das pessoas por esse mundo fora, como matou, segundo dados da OMS, cerca de 33 milhões (até agora, a Covid matou cerca de 3 milhões), e para o qual não foi ainda criada uma vacina eficaz mas “apenas” fármacos que tornaram a sida uma doença quase crónica. Desgraça que um negacionista, sempre predisposto para qualificar a tragédia como farsa e confundir factos com opiniões, autoproclamado  amigo da verdade”, mas que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa define como “aquele que nega ou não reconhece como verdadeiro um facto ou um conceito que pode ser verificado empiricamente”, consideraria obviamente imputável a uma conspiração dos fabricantes de preservativos.  

Mais recentemente, em plena crise Covid, um negacionista português, juiz da nossa praça, que, muito naturalmente, imputa a pandemia a uma conspiração da indústria das vacinas, interrompeu uma sessão do tribunal por o magistrado do Ministério Público se ter recusado a tirar a máscara, e mais do que isso, numa atitude deveras surpreendente mas, sem dúvida, romântica à maneira do que ainda se praticava em Portugal nos princípios do século XX, desafiou o director nacional da Polícia, que havia apresentado queixa dele, para um duelo, não às mais tradicionais espada ou pistola, mas à MMA, sigla inglesa que significa artes marciais mistas. Quem presidiria ao duelo? Não poderia ser ninguém da maçonaria à qual o juiz acusa o director da Polícia de pertencer. Mas, salvo confissão pessoal, como ter a certeza disso se os membros das organizações desse tipo estão a coberto do manto de segredo? Ricardo Araújo Pereira já apostou 100 euros na vitória do polícia. Talvez menospreze um juiz cujo perfil afinal se coadune melhor com a função de agente de segurança.

Para aplacar um pouco os ímpetos bélicos do nostálgico juiz recomendaria, em tempo de Páscoa e Primavera, a audição das Paixões de S. Mateus e de S. João, de Johann Sebastian Bach. O famoso compositor estava, indubitavelmente, em estado de graça quando escreveu a de S. Mateus, mas a abertura da paixão sanjoanina é simplesmente arrepiante, qualquer coisa do “outro mundo”. Preferindo uma obra não tão marcadamente religiosa, sugeriria a Sagração da Primavera, bailado em dois actos, de Igor Stravinsky. Tratando-se de obras-primas, obviamente cristãs, as de Bach, ou de índole pagã, a de Stravinsky, elas tanto podem ser apreciadas por crentes como por não crentes, quer pelo seu alto valor artístico, quer por representarem, a seu modo, o mistério da existência e a angústia da condição humana. Aqui, o espírito é o de um tempo mais perene.

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