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01/11/14

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE DE UMA EMPRESA IMAGINÁRIA

"Tempos Modernos" (1936, Chaplin)

Exmo. Senhor ,

 

Perdoe-me o abuso deste tratamento um pouco familiar, mas creio que o assunto que aqui me traz, possibilita o aconchego desta proximidade para que melhor possa ler estas minhas palavras. De resto, sempre é um nome próximo da divindade e sinónimo de gente trabalhadora, o que de todo se coaduna com os pergaminhos sociais de V. Exa.. Pois venho aqui acusar a recepção da nova fatwa que distribuiu pelos trabalhadores da sua empresa dirigida ao sindicato minoritário, o qual teima em não só não se modernizar, como insistir em teses que o senhor Zé já disse encontrarem-se desadequadas e esgotadas, pois com a sua longa experiência de vida e essa infinita sabedoria que brota do trabalho abnegado a que diariamente se dedica, há muito demonstrou a necessidade de novos métodos e novas relações. Obrigaram-no assim, a esta recente publicação, em complemento à notinha da doutorzinha que assoberbada com essa tarefa gigante de gerir essa fantasia que dá pelo nome de talento, coisa que sabemos abunda muito sobretudo na parte superior das empresas, e não lhe ocorreu que deveria contar os trabalhadores para de seguida os dividir de acordo com as suas, deles, claro, escolhas. Naturalmente que só ao senhor Zé lhe poderia ter caído esta ideia brilhante, o que não é invulgar, pois sei que não só, lhe cabe a primeira como a última palavra, e todas as restantes que é necessário colocar no meio, intervir aqui, acorrer mais além, estar atento às vendas, deitar um punho ao esboço do marketing, o olhar sempre presente nos pormenores, um pouco, como escreveu Brecht, sem a sua decisão, o milho não se atreveria a crescer com a espiga para cima. As suas palavras planam sobre a organização com essa leveza de, a quem basta chegar para tudo se alterar no sentido positivo. Sempre que é possível escutar a sua voz, é perceptível um discurso claro, objectivo, absoluto e definitivo, sem margem para interrogações, nem dúvidas, como o canto do al muedin, nas madrugadas nascentes a descer das varandas das mesquitas. Dúvidas, não tenho eu de que a grandeza da empresa que dirige, não seria mensurável, sem a sua mão certeira na condução dos seus destinos e na rota por onde palmilham os seus, da empresa, naturalmente, negócios. Os trabalhadores, encontram em V. Exa. um segundo pai, alguém que tem sempre a mão a segurá-los e a palavra a esclarecê-los como ainda agora se viu pela fatwa que aqui me traz. Com a elevação de um deus, o senhor Zé, atento e venerado, está sempre presente, mesmo que seja para acrescentar mais uma palavra ao discurso, mais uma, mas não qualquer uma, antes aquela que vai colocar o ponto final no esclarecimento. Creio até que a estatura e sabedoria de V. Exa. ultrapassaram já a fronteira da empresa, pois a acreditar numa outra missiva que colocou há uns meses atrás no ar condicionado, os aplausos encomiásticos chegam até do exterior, o que diga-se, reconhecimentos que nunca são de mais, face à estatura da sua inteligência e da sua obra. Sei que em qualquer espaço da empresa, o senhor Zé está presente, se o sol nasce uma hora mais tarde, todos se preocupam sobre o que vai pensar V. Exa., se não chove como o previsto, todos se preocupam se o Sr. se vai molhar, nada se faz sem uma palavra, um pensamento, um olhar de V. Exa. o que dá uma garantia de segurança que noutras empresas não existe. Uma vez, se me permite um ligeiro desvio, num desses aeroportos de passagem encontrei um cidadão norte-coreano que trazia um daqueles esmaltes ovais na lapela do casaco com a fotografia do seu líder, era a sua forma de espalhar pelo mundo o seu reconhecimento pela dimensão do seu querido e amado chefe. Claro que uma atitude destas nada tem de semelhante com o senhor Zé, pessoa simples, cuja modéstia não toleraria o seu retrato passeado pelos aeroportos, comedimento bem visível na missiva anterior, em que o senhor Zé mostrava a todos como também era amado no exterior, quando afirmava, o que só mostra essa estatura e sabedoria só acessível aos grandes líderes, que sem os restantes trabalhadores, o seu trabalho não serviria para nada, frase que aliás só posso subscrever, pois é dessas verdades extensivas à sociedade, sem os trabalhadores, os gestores, como é que os senhores dizem?, ah! os gestores de topo, bem podiam ir apanhar papel pois as suas estatísticas só serviriam para isso mesmo, estatísticas. De qualquer forma, afirmá-lo, é algo que merece relevância. E lá continuou, e continua como se vê pela última fatwa, a acompanhar, a intervir, a dizer a primeira e última palavra, a erguer a bandeira, a mudar os canhões, enfim, um trabalho que só mesmo os seres com têmpera de orientadores conseguem. Ocorreu-me até lembrar-me daquele escritor que descrevia, num dos seus romances, o líder de um país, «É que bastava uma palavra dele para que surgissem obras de construção gigantescas, para que colunas de lenhadores fossem atirados para a taiga, para que multidões de centenas de milhares de pessoas cavassem canais, erguessem cidades, construíssem estradas nas terras da noite polar e do gelo eterno. Ele exprimia em si um grande Estado! O grande Estado exprimia-se nele, no seu carácter, no seu feitio.». Peço desculpa por esta comparação, a qual só teve a intenção de expor o êxtase da sua acção, pois todos sabemos que o senhor Zé é não só um grande democrata como uma pessoa de cultura, lembro-me até que em tempos deu uma entrevista em que dizia que tinha 30 livros à cabeceira, o que só por si, nos faz sentir como aqueles pequenos átomos que não encontram companhia.Como o senhor Zé, só encontro paralelo com aquele outro senhor de economia que manda na associação, esse sim, é que é um homem culto, aprumado, transpirando saber e competência. O senhor Zé desculpe, mas estas verdades não podem ocultar-se, o homem é mesmo um mestre, talvez só lá para a Calábria se consiga encontrar gente de tão elevada envergadura.

Arrebatado com a sua acção sábia nos destinos da empresa, tenho estado a desviar-me do que aqui me trouxe. Não é nada de extraordinário, apenas ligeiros acrescentos ao conteúdo da fatwapois o discurso contém imprecisões e, ia a escrever mentiras, mas parece-me que a palavra é desadequada face à grande precisão que coloca sempre na oratória escrita, vou antes chamar-lhe, verdades ao contrário, assim como um negativo de uma fotografia. O facto de ter de ser o senhor Zé a contar os trabalhadores, só por si, mostra o quanto a sua presença é necessária, caso contrário, o milho nascia mesmo torto. O senhor Zé já no fim diz que o cartaz é falso, mas não foi exacto, porque o cartaz é mesmo verdadeiro, tanto é assim, que o senhor Zé viu-o, o conteúdo é que podia ser falso, mas o cartaz não. Sei que são pormenores, mas sabe como são as pessoas, um pouco vazias de ideias sempre a olharem para o acessório. Portanto, vamos assentar nesta parte, o cartaz não era falso, vejamos então o conteúdo. O senhor Zé escreveu na fatwaque os «não sindicalizados» – o trabalhão que teve a contá-los! - assinaram o novo contrato, mas aqui não foi bem preciso, certamente a doutorzinha não lhe disse como as coisas se passaram, pois o senhor Zé não é homem de erros. Aqueles tais «não sindicalizados» foram empurrados por uma portaria daqueles senhores do governo, de quem a minha falecida mãezinha, que Deus a tenha em eterno descanso, dizia, «são uns vadios e uns insurrectos, foge deles meu filho», e eu tento fugir, mas apanham-me sempre. Pois foram esses «vadios e insurrectos» que assinaram por eles. Oh, senhor Zé, fiquei admirado pelo número de aderentes daquele sindicato de fantasia e eu que pensava, na minha infinita ignorância, que esse sindicato era só uma espécie de ONG como aquela que pagava viagens ao senhor Coelho, outra pessoa distintíssima, que Deus o leve em breve por muitos e bons anos e não deixe que ressuscite. Estou convencido que neste dia em que redigiu a última fatwa o senhor Zé não estava bem, certamente nervoso, pois estas maldades que os sindicatos fazem, deixam até uma pessoa como o senhor Zé desassossegada, pois só assim se compreende aquela história que conta sobre a decisão judicial. Vamos lá ver, senhor Zé, é ao contrário, a acção é para que o tribunal diga que o contrato já não está em vigor, pelo que enquanto o tribunal não o disser, o contrato está em vigor. O senhor Zé desta vez até me fez lembrar o Calvin, sim aquele miúdo irrequieto do Público, quando um dia vestiu a camisola ao contrário e pensou que era a cabeça que tinha girado, mas com esta do tribunal, quero crer que o senhor Zé vestiu bem a camisola, mas a cabeça é que ficou do avesso. Então o senhor presidente, coloca uma acção para provar que o contrato não está em vigor, o tribunal diz que está, o senhor presidente recorre, claro o dinheiro não é dele, perdoe este comentário, e o senhor Zé vem dizer que o contrato não está em vigor, se o tribunal ainda não o disse? Oh, senhor Zé, vá num instante aos serviços e ponha a cabeça no lugar, que nós fazemos de conta que não vimos, pois ainda acrescentou que o tal de novo contrato, reflecte o avanço e o progresso das últimas décadas nas relações de trabalho. Oh! Senhor Zé, o futuro é para a frente e o passado é que é para trás, o senhor baralhou-se todo, apanhado no deserto por uma nuvem já não distingue o oriente do ocidente! Deixe lá, dias aziagos podem apanhar qualquer um. Não sei mesmo o que se passou com o senhor Zé nesta manhã em que as ideias lhe apareceram tão atribuladas. Eu sei que esta minha carta já vai longa e o senhor Zé tem muito mais que fazer do que estar aqui a ler-me, mas só mais uma coisinha para terminar, o senhor Zé desta vez resolveu ter opinião. Eu sei que o senhor Zé é mais do que um pai para os trabalhadores e por isso sabe muito bem, melhor do que eles e do que o sindicato das minorias, o que é bom e o que é mau para eles, daí que tenha escrito que o prémio de antiguidade seja injusto e retrógrado, mas lá veio mais uma falhazinha, parece que neste dia tudo corria mal ao senhor Zé, pois não explicou porquê e as pessoas, sempre mal-intencionadas, podem ficar duvidosas. Vejamos, retrógrado é qualquer coisa que se opõe ao progresso. Diga-nos então a que progresso estava o prémio de antiguidade a opor-se? Ficamos a aguardar as suas notícias na próxima fatwa. Então injusto é que não se compreende. O senhor Zé desculpe mas a nossa inteligência é apenas um grão de areia na imensa praia que é a sua e tem de nos explicar isto melhor, pois pagar a experiência adquirida é injusto? Que grande injustiça senhor Zé! Já o senhor presidente da associação juntamente com o petit guru que contratou entre os agentes do superintendente-geral de Contrabandos e Descaminhos nos veio explicar isso e chamaram-lhe mentiroso e ele embrulhou, meteu ao bolso e levou para casa. Ora, não nos passa pela cabeça poder chamar mentiroso ao senhor Zé, isso sim seria uma grande injustiça e talvez até retrógrado, pois estaríamos a opor ao progresso o que é a existência de pessoas como o senhor Zé, assim uma espécie de peças únicas como a fábrica da vista alegre produz. Senhor Zé, não o maço mais com as minhas divagações que o senhor não é pessoa para estar parada a ter de me ouvir com estas tontices e palavras sem sentido. Ficamos então a aguardar pela próxima fatwacontra o sindicato minoritário, tão minoritário que admira que cinco ainda resistam teimosamente ao esplendor de benefícios que o senhor Zé lhes recomenda e lhes envia e não sigam o exemplo dos outros 34 que na hora de escolher o «novo contrato», certamente se lembraram daquela parte do poema a Galileu, Galilei, “E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual conforme suas eminências desejavam, e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal”.

Receba os meus melhores cumprimentos

deste sempre seu,

Emanuel Cante

 

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