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01/06/18

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Há lugares que não esquecemos, espaços terrenos onde deixamos o olhar definitivo, locais onde a memória percorre os dias da alegria e os nossos passos são caminhos que nos levam sempre para além de nós na procura do outro. A beleza não se instala, ela é o lugar que encontramos. Estes sítios da vida são tantas vezes de silêncio, da fuga ao ruído dos sons, a solidão elevada a instantes de reflexão. A primeira vez que chegamos, acolhe-nos o espanto. A fotografia que nos cativara estava aquém da realidade encontrada. O vale estreito mais parecia um abraço entre duas colinas em que a terra e as rochas se comprimiram para que os corpos materiais se auscultassem. As pedras trabalhadas eram quase todas ruínas, restos olvidados de um tempo que não regressava, os pequenos muros pela montanha acima mostravam um tempo de cansaços, a madeira que unia dois lados inseparáveis, gasta pelos séculos, e as cores variavam entre castanhos e cinzentos, mas o verde e o azul eram o centro daquele pequeno mundo. Uma melodia deslizava, entre um estreito canal gravado profundamente no chão pelo escavar da longevidade e, quase subitamente, precipitava-se no abismo. Foi ali que reconstruí o tempo, a doçura da vida humana e na ternura dos recantos encontrei os teus olhos ávidos de viagem. Com eles segui, quase sempre clandestino e aprendi a desfolhar o teu corpo como se lesse o livro mais antigo da biblioteca que ali existiu. A cada manhã que nascia lia uma página de ti e nas margens, a alma aberta deixava apontamentos dos voos que contigo sonhara, e a cada epílogo, recomeçava nova leitura e novos apontamentos fazia. Escrevia a lápis, e num desses momentos de escrita, saíste do livro como quem nasce e foi o tempo de percorrermos as veredas daquele lugar concebido para amar, Deus e a Humanidade, mas com os meus anseios só a ti amava, como símbolo da pureza que tanto desejava. No dia seguinte, sentado na mesma pedra, abria de novo o livro e voltava a viver a aventura de te conhecer. Escrever nas margens era como percorrer o corpo que respirava em cada palavra que lia e desenhava vontades e desejos que não alcançaria. Também ergui muros, muralhas, castelos, perdi-me em cada caminho que os meus dedos esboçavam sobre a leveza da pele que te cobria, recitei poesia com a música do pequeno rio que nos separava. No dia em que por fim devolvi o livro à biblioteca, nasceram as ruínas, o desabar das construções quiméricas, o lento desgastar da memória que o vento erode sem descanso nem medo e deixei-me levar por aquela corrente que tomba da altura a que só as águias ascendem e que se transforma na espuma que vemos e de onde renasce a água que dá vida e alento ao sonho humano. Inicialmente, custou-me a adaptar-me aquele mundo de silêncio e da solidão rodeada de seres que não falavam, até encontrar o livro em que vivias, mas o regresso, o retornar ao mundo exterior à limpidez do lugar onde te encontrara, “pareceu, em contraste, um inferno de ruído e vulgaridade.” (1)


(1) – Patrick Leigh Fermor em “Tempo de silêncio”, Tinta-da-China, 1ª edição, Lisboa, Abril de 2018

Mergulho neste sol com a ânsia primaveril da infância. Um rosto habita a imaginação que me leva. O manto brilhante de um sorriso inunda-me o pensamento e purifica-me a alma. Um corpo inteiro povoa os meus dias com o aroma das manhãs sem tempo. Já não sou e ainda não fui, navego o presente como se fosse tudo. A saudade é uma dor e uma perda, também já foi girândola de fogo em noites sem luz. Havia uma rainha, uma deusa, coroando os meus sonhos, era uma dádiva, nos dias perfeitos. Procuro um porto, um destino, e só encontro infinitos.

Continuamos impávidos e serenos a assistir ao holocausto palestiniano e como de massacre em massacre o Estado Judeu prossegue impune na senda do crime.
  

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