Não é raro que a grande Literatura
seja permeada, por entre a trama psicológica dos personagens ficcionados, pela
melhor Filosofia.
É o caso de Os Sonâmbulos,
obra do austríaco, nascido em Viena, Hermann Broch, depois naturalizado
americano após conseguir escapar aos nazis, pelos quais foi preso durante algum
tempo.
Trata-se de uma trilogia
romanesca, publicada nos inícios dos anos trinta, “que é um fresco da Alemanha
de 1888 a 1918 e em que confluem análise psicológica, poesia e ensaio
filosófico. A obra foi elogiada por Thomas Mann e Hermann Hesse.
A partir daí, Broch tornou-se um dos principais expoentes da literatura
centro-europeia, entre as duas guerras, ao lado de Kafka e Musil.”
O conhecimento dos assassínios
colectivos em campos de concentração europeus, levou Broch, decerto
amargurado, a decidir não continuar a escrever literatura, continuando, apenas,
a publicar ensaios críticos e filosóficos e poesia, prefaciados por Hannah
Arendt, antes de morrer em 1951.
Filosofia 1
“O irreal é o ilógico. E esta
época parece já não conseguir superar o clima do ilógico, do antilógico: é como
se a realidade tremenda da guerra tivesse suspendido a realidade do mundo. O
fantástico torna-se uma realidade lógica, mas a realidade dissolve-se na mais
ilógica das fantasmagorias. Uma época que é mais cobarde e tristonha do que
qualquer época precedente afoga-se em sangue e gases venenosos, multidões de
empregados bancários e especuladores atiram-se para o arame farpado, um
espírito humanista bem organizado nada impede, antes se organiza como Cruz
Vermelha e para produzir próteses; as cidades morrem de fome e cunham moeda com
a sua própria fome, mestres-escola de óculos chefiam pelotões de assalto, gente
da grande cidade vive em cavernas, operários fabris e outros civis rastejam a
fazer patrulhas de reconhecimento, e, finalmente, quando regressaram ilesos à
retaguarda, as próteses transformam-se de novo em especuladores (…)
O horror patético com que esta
época é designada como louca, o comprazimento patético com que lhe chamam
grande, procuram justificação na dimensão hipertrófica inconcebível e ilógica
dos acontecimentos que, na aparência, constituem a sua realidade. Na aparência!
Porque uma época não pode nunca ser louca ou grande, só um destino individual é
que pode. (…)
A grande questão é: como é que o
indivíduo, cuja ideologia, normalmente, visava verdadeiramente outras coisas,
pode compreender a ideologia e a realidade da morte e submeter-se a elas? (…)
Esta época tinha, algures, um desejo genuíno de conhecimento, tinha, de alguma
maneira, uma vontade artística genuína, tinha uma consciência social de
inegável precisão, como pode o ser humano, criador de todos estes valores e
participante neles, como é que ele pode “compreender” a ideologia da guerra,
acolhê-la e aprová-la sem contestação? Como pôde agarrar na arma, como pôde ir
para as trincheiras, para lá perecer ou para regressar de lá novamente para o
seu trabalho habitual, sem enlouquecer? Como é possível uma tal versatilidade?
Como é que a ideologia da guerra pôde, de todo em todo, encontrar lugar nestas
pessoas, como é que estas pessoas puderam, afinal, compreender uma tal
ideologia e a sua esfera de realidade? Já sem falar de uma aceitação
entusiástica, perfeitamente possível! Serão loucos porque não enlouqueceram?
(…)
Filosofia 2
“A posição preponderante do
estilo arquitectónico entre as características de uma época é uma das questões
mais singulares. E, em geral, esta posição de privilégio estranhíssima que as
artes plásticas conquistaram na história! Elas são, com toda a certeza, apenas
uma fracção muito pequena da pletora de actividades humanas de que uma época
está cheia, não são, seguramente, sequer uma fracção muito espiritual e, apesar
disso, sobrepujam todos os outros domínios do espírito no que toca ao poder de
caracterização, sobrepujam a literatura, sobrepujam mesmo a ciência, sobrepujam
mesmo a religião. O que perdura ao longo dos milénios é a obra das artes
plásticas, ela permanece o expoente da época e do estilo desta (…)
Se existe explicação possível,
ela tem de estar na essência do próprio conceito de “estilo”. Porque o estilo
não é, seguramente, algo que esteja limitado à arquitectura ou às artes
plásticas, estilo é uma coisa que atravessa da mesma forma todas as expressões
vitais de uma época (…)
Talvez fosse ocioso pensar nisto,
se não estivesse subjacente o problema que é o único que legitima todo o
filosofar: o medo do nada, o medo do tempo que conduz à morte (…) Pois, seja o
que for que o ser humano faça, fá-lo para destruir o tempo, para o revogar, e
essa revogação chama-se espaço. Mesmo a música, que só existe no tempo e
preenche o tempo, transforma o tempo em espaço, e a teoria de que todo o
pensamento ocorre no espaço, de que o processo de pensamento representa uma
combinação de espaços lógicos multidimensionais incrivelmente complexos, tem o
máximo de plausibilidade. Mas, sendo assim, torna-se claro que todas as
expressões que se relacionam directamente com o espaço possuem um significado e
uma evidência que nenhuma outra actividade humana alguma vez pode possuir (…)"
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